Miguel chegou contando o ocorrido das gêmeas na escola:
_ Paiê! Ainda bem que eu sou amigo das manas! O Nino apanhou feio!
Arnaldo, com seu jeito calmo, logo advertiu:
_ A violência não leva a gente pra lugar nenhum, Miguel. Eu não ficaria feliz se tu tivesse brigado também.
_ Eu tava ajudando a professora a varrer a sala, pai. Aquilo aconteceu tão ligeiro que não deu tempo nem pra pensar em ajudar as manas.
_ Pois eu não aprovo, não. Eu até entendo que elas tinham motivo, porque o pai do Nino tava assediando a mãe delas... Mas daí a bater no guri...
_ Não, pai... Não foi por causa disso... O Nino chamou a tia Tina de bruxa.
Miguel narrou ao pai sobre Petruchio e o atropelamento do seu Zé.
_ Ele tá no hospital... Parece que tá muito mal... Aí o Nino falou que foi bruxaria da tia Tina...
_ Bruxaria não existe, meu filho... Isso é coisa que o povo inventa! E falando em hospital... Hoje à noite vou ficar com o Claudio, no hospital... Os médicos recomendaram que sempre tenha um familiar ou amigo perto... Tu quer dormir lá no Francisco ou na casa das manas? Não vou te deixar em casa sozinho.
_ Eu bem que gostaria de dormir lá nas manas... Mas...
_ Mas, o quê?
_ E se elas me baterem também? Elas são muito fortes...
Arnaldo caiu na gargalhada.
_ Bem capaz! Tu nunca falou mal da mãe delas! Elas bateram no Nino porque tinham motivo...
_ Tá, mas... Dessa vez eu vou dormir lá no Chico, tá? Mas não é por medo não, pai... Combinei umas coisas pra fazer com o Chico.
Arnaldo deu uma risadinha:
_ Sei...
_ Paiê! É sério!
_ Tá bom, meu guri! Eu acredito.
Ao anoitecer, Arnaldo passou na casa de Claudio e Tina.
_ Lamento, Tina... O Miguel me falou do ocorrido na escola.
_ Eu até entendo que elas queriam me defender, mas não quero que partam pra violência.
_ São crianças... Daqui a pouco eles aprendem que precisam resolver as coisas numa boa conversa!
Miguel correu até a casa de Teresinha e Juvenal.
_ Chico! Chico! Tu tá onde?
Francisco saiu do quarto, com o caderno de desenhos e um lápis de cor.
_ Tô aqui, Mig! Vem ver o que eu desenhei! Minha melhor amiga da escola de Caxias! Agora tô pintando ela...
Miguel acompanhou-o ao quarto, onde o amigo abriu-lhe o caderno onde tinha feito vários esboços e desenhos.
_ Olha, Mig! Aqui eu desenhei ela de cabelo curto, como ela tá agora... Eu não consegui fazer direito, e desisti...
_Mas tá bonita...
Francisco foi virando as folhas desenhadas... Todas pareciam ser a mesma menina. Até que parou de repente:
_ Esse! Esse eu tô pintando... Aqui minha melhor amiga ficou igualzinha como era antes do Léo cortar as tranças dela... Nas outras, não fiz as tranças...
Miguel arregalou os olhos, estático, diante do desenho do amigo..
_ Essa... Essa menina...
Francisco notou a reação de Miguel, que estava pálido, tremendo...
_ O que foi, Mig? É só o desenho da minha melhor amiga... Eu prometi pra ela que eu nunca ia esquecer ela... Tu também é muito amigo meu, não te preocupa!
Miguel conseguiu falar com dificuldade, tremendo...
_ Essa menina... Essa menina é minha irmã...
Agora foi a vez de Francisco arregalar os olhos.
_ Como??? Tua irmã? A Mary é... tua irmã?
Miguel baixou os olhos, tristemente:
_ Sim... Nossa mãe levou ela embora daqui, quando eu caí da árvore... Fiquei muito tempo sem caminhar, no hospital...O pai me disse que ela não queria um filho "aleijado"...
Francisco não sabia o que dizer diante da revelação do amigo. Miguel continuou:
_ O pai até procurou saber onde elas tavam, mas não conseguiu... Faz muito tempo... Ums cinco anos, acho...
_ Então, tu não tem mãe porque ela foi embora? E ainda levou tua irmã, que é a Mary?
_ Sim.
Os dois meninos começando a desvendar o que acontecra com Mary ... Um pequeno sorriso brotou dos lábios de Miguel.
_ Então, tu sabe onde a Mary tá... Que bom!
Francisco ficou meio confuso para explicar, mas foi falando lentamente:
_ A Mary foi estudar na minha escola em Caxias... Ela era minha única amiga lá... Depois...
_ Ela ainda tá lá?
_ Não... Aconteceram umas coisas na casa dela... O outro irmão dela...
Miguel olhou surpreso:
_ Outro irmão? O irmão dela sou eu!
Francisco explicou a Miguel sobre Léo, filho do padrasto de Mary.
_ O Léo era ruim com a Mary...
_ Como assim? Ruim?
_ Sim... Primeiro, cortou as tranças dela... Depois, queimou as mãos dela... Depois...
À medida que Francisco ia narrando sobre as atrocidades de Léo com Mary, Miguel ia ficando transtornado de raiva.
_ Não consigo acreditar, Chico! Minha irmã nas mãos dum tipo daqueles! O que mais aconteceu?
_ Ele machucou ela... Muito... E muitas vezes... Ela me contou...
Miguel estava transtornado!
_ Ainda hoje meu pai me disse que eu não devo brigar, mas com esse daí, eu vou brigar, e se eu encontrar com ele, vou bater nele sim!
_ Eu também já pensei nisso, Mig... Mas eu sou muito fraquinho... E o Léo é grandão!
_ Já sei, Chico! Lá na escola estão oferecendo um curso de Judô e um de Kung Fu... São artes marciais que ajudam a gente a ganhar força e músculos. Vou pedir pro meu pai pra me deixar entrar num deles! Vai comigo? Vamo defender a Mary juntos!
Francisco gaguejou:
_ Mary... Mary não tá mais aqui...
_ Como??? Aquele maldito matou ela?
A tremedeira nas mãos de Miguel denunciavam a raiva. O amigo sorriu.
_ Não, Mig... Ela fugiu da casa deles... Lembra quando meu maninho morreu?
_ Lembro... Mas o que morte do teu irmãozinho tem a ver com a minha irmã?
_ No dia do enterro, no cemitério, encontrei Mary...
_ Ela tá num cemitério? Então, ela... Morreu?
_ Não, Mig! Ela tava ajudando o velho zelador do cemitério. Quando ela fugiu, foi se esconder no cemitério, e ele achou ela dormindo lá... Parece que as filhas dele cuidaram da Mary ensinaram muitas coisas pra ela.
Para Miguel, aquela explicação estava meio confusa.
_ Zelador? Filhas?
_ Sim... Eles cuidaram bem da Mary, mas parece que uma senhora da Itália buscou a Mary pra cuidar dela.
_Itália?
_Sim. Ela falou que ia pra Itália, morar com a mãe do Pedrinho... E que ia voltar pra cá um dia... Ela viu teu pai no dia do enterro do mano...
_ Então, agora,ela tá na Itália?
_ Acho que sim... Ela prometeu que ia voltar... E eu prometi nunca esquecer dela... Fizemos um pacto...
_ Pacto?
Francisco narrou o episódio do vaso quebrado e do pacto de sangue que fizera com Mary.
_ Então, ela vai voltar...
_ Vai... Sei que vai... Eu conheço a minha melhor amiga... Quando ela promete, cumpre!
_ Mas eu vou encontrar esse Léo um dia... Tu entra comigo nas aulas de artes marciais?
_ Vou perguntar meu pai e minha mãe, Mig! Se eles me deixam também, nós vamo treinar bastante, pra ficar com bastante músculo... Assim...
Francisco ergueu o braço magrinho, colocando um par de meias enroladas na região do bíceps.
_ Eu acho que vou entrar na aula de Kung Fu... Eu vou ficar forte que nem o Bruce Lee... Ele tem uns músculos assim...
A conversa dos dois meninos foi interrompida pela voz de Lenice:
_ Tia Teresinha... O Chico tá aí?
_ Tá sim, amadas. O Miguel também tá aqui. O paí dele vai ficar com o Claudio no hospital e deixou ele dormir aqui.
_ A gente quer falar com ele... Nossa mãe vai falar com o Dr que trata do paizinho... Vai tentar uma autorização pra gente ir no hospital...
Lenir completou, chorando:
_Vai ser o nosso presente de aniversário...
Miguel olhou para a amiga, abraçou-a.
_ Confia em Deus, Lenir... Vai dar tudo certo. Vocês vão visitar o pai de vocês e ele logo vai ficar bom e voltar pra casa!
_ Vamo ver primeiro se deixam a gente entrar no hospital...
_ Nós nunca tivemos um aniversário sem ele...
_ E nesse aniversário vocês vão conseguir ir até lá. Tenho certeza!
_Nossa mãe vai tentar... Se o médico deixar... Só gostaríamos de ver o nosso paizinho...
No dia seguinte, após passar na escola onde as meninas estudam, Tina foi ao hospital.
_ Dr Paulo... Amanhã as minhas filhas vão fazer 12 anos... Eu gostaria de pedir pro senhor, se for possível, que o senhor consiga uma autorização pra elas visitar o Claudio... Seria um presente pra elas e pro Claudio também.
_ Sem dúvida, senhora. O paciente, apesar de não esboçar reação, ouve todas as coisas que falamos perto dele. Fará bem pra ele ouvir a voz das filhas.
_ Então?
O médico, ao ver a tristeza estampada nos olhos de Tina, respondeu:
_ Vou tentar, dona Tina. Acredito que, nesse caso, aqui no hospital, abrirão uma exceção. Vou conversar com a equipe responsável e retorno pra senhora.
_ Obrigada, Dr Paulo.
Tina estava apreensiva com a resposta do médico, pois sabia que era importante esse encontro entre as filhas e Claudio...
_ Então?
_ Consegui uma licença especial pra elas entrarem amanhã, assim que iniciar o horário de visita... Mas será permitida a permanência delas junto ao pai somente por meia hora.
_ Combinado, Dr. Combinarei com o Tonho, padrinho da Lenir, que nos traga amanhã... Assim que elas tiverem que sair, o Tonho leva elas e deixa na escola. E eu vou ficar de acompanhante dele.
O dia que se seguiu recebeu as manas apreensivas.
_ Será que teu Dindo Tonho vai se atrasar?
_ Que nada, Lenice! Tu sabe que meu dindo só não botou asas na caminhonete porque é contra a lei!
Tina interrompeu a conversa:
_ Estão prontas? O Tonho chegou!
_ Eu tô, mãe!
_ Eu também! Tamo levando nossa Bíblia pequena pro pai, pro caso dele acordar e querer ler um pouco.
Um nó apertou a garganta de Tina, pois ela já sabia que Claudio não conseguiria ler mais. Embarcaram na caminhonete, e Antônio sorriu:
_ Agora eu tenho que adivinhar de novo qual delas é minha afilhada. Nunca sei quem é quem...
Lenir tocou o ombro do padrinho:
_ Sou eu! Pra ninguém se confundir, vestimos roupa diferente. Eu tô de azul e a Lenice tá de verde...
_ Mas bahhh! E agora? Tô perdido! Eu sou daltônico!
Lenir arregalou os olhos:
_ Daltônico? Que tipo de profissão é essa?
Antônio sorriu:
_ Não, minha pequena... Ser daltônico não é profissão. Eu sou químico... Daltônica é uma pessoa que não diferencia algumas cores.
_ Temos um colega de aula que tem isso. O João também não cosegue ver algumas cores certinho. Às vezes a gente ajuda ele a achar a cor certa.
_ Então vocês são ajudantes da professora! Parabéns!
_ E em casa, ajudantes da mãe e da tia Teresinha. Agora, que o pai tá no hospital, quando não temos dever de casa, a gente ajuda na padaria e na faxina da casa.
_ A prosa tá boa, mas chegamos ao hospital. Bem no horário de visita. Vou esperar vocês aqui, e levo até a escola.
Os corações das duas meninas ficou a ponto de saltar do peito, assim que adentraram o quarto onde Claudio estava. Tinham planejado falar tanta coisa para o pai, porém, ao vê-lo assim, prostrado, sedado, ligado à sondas de alimentação e oxigênio, o nó apertou a garganta delas.
_ Se quiserem conversar com ele, filhas... Ele vai ouvir tudo... Ele tá no remédio, por causa da pressão intracraniana...
As meninas trocaram olhares e, trêmulas, seguraram as mãos do pai.
_ Paizinho... Fica bom logo, pra voltar pra casa... A nossa casa não tem graça sem o senhor lá...
Lenir colocou entre os dedos do pai o pequeno livro sagrado que levara.
_ Aqui, paizinho... Se acordar e quiser ler um pouco...
A mãe, que observava tudo à distância, não conseguiu segurar as lágrimas. Virou-se de costas para que as filhas não notassem seu desespero.
_ Paizinho... Vamos conversar com Deus, pra Ele cuidar bem do senhor, pra ficar bom logo, logo...
Um longo silêncio seguiu-se, cortado apenas pela respiração dos presentes. O guarda do hospital lembrou:
_ Acabou a meia hora delas, senhora...
Tina enxugou as lágrimas.
_ Sim,seu guarda... Já vou levar elas até o estacionamento e volto. Dê só mais um minuto pra elas.
As meninas estavam ali, segurando a mão de Claudio, como se estivessem paralisadas... Sentia-se que era realmente o momento derradeiro da despedida.
Tina conduziu as filhas até a caminhonete de Antônio.
_ Só deixar elas na escola. Depois da aula elas voltam à pé com o Miguel e o Francisco.
_ Certo, comadre! Deixa comigo!
As gêmeas entraram em silêncio na caminhonete. Antônio, ao notar a tristeza das meninas, tentou transmitir um pouco de segurança.
_ Então, vocês ajudam a mamãe...
_ Sim. Quando podemos... Ajudamos na padaria, na casa e nos bichos.
_ Vocês gostam de bichos?
_ Sim.
_ Vou dar um dinheirinho pro aniversário de vocês... Se quiserem comprar alguma coisa, ou um bichinho...
_ E onde a gente compra os bichinhos?
_ Sábado vai ter uma feira agropecuária no CTG... Vou conversar com a mãe de vocês e levar vocês lá... Aí podem escolher o bicho que querem. Vai ser meu presente...
_ Podemos convidar o Mig e o Chico pra ir com a gente? Eles são nossos pares na dança gauchesca.
_ Claro,meninas! Cabe todo mundo na caminhonete!
Antônio sorriu ao ver que conseguiu animar um pouquinho as meninas. Elas saltaram da caminhonete para a escola sorrindo.
_ Obrigada, Dindo Tonho! Até sábado!
Antônio, ao encontrar Tina, deixou-a a par do combinado na feira agropecuária.
_ Essa visita à feira vai fazer as crianças esquecer um pouco essa fase triste, comadre. Elas vão ver bichinhos que talvez não tenham visto ainda.
O sábado iluminado pelo sol abrigava várias famílias que faziam a exposição de seus animais no pátio do CTG. Antônio estava feliz com a alegria das crianças.
_ Olha, Mig... Um coelho...
_ Ali tem porquinhos...
_ Olha um casal de galinha garnisé!
_ Eu gostei foi do ganso! Parece que não é de verdade... Tão bonito...
Antônio passou a tarde com as crianças na feira. Resultado: quatro crianças, um porquinho, um casal garnisé, um coelho e um ganso... Tudo na caminhonete, no retorno da feira.
_ Manhê!!! Comprei um porquinho! O Dindo Tonho disse que era pra cada um esvolher um bicho... Ele deu de presente pra todos nós...
Tina e Teresinha tiveram que se segurar para não rir na hora que desceram os animais da caminhonete.
_ O Chico escolheu o casal de galinha garnisé! O galo cantou no ombro do Chico... Tão bonito!!!
_ Eu trouxe um coelho. Só falta um nome pra ele!
Antônio sorriu:
_O Miguel escolheu o ganso, pra deixar nadar no açude. Não vai dar muito trabalho. E realmente é presente pra eles. Elas estão de aniversário, mas a equipe toda merece presente, porque ajudam a mamãe!
_ Então, só me resta agradecer, compadre! Que Deus o abençoe sempre!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...