As tranças de Mary

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    _ É pra ti, Mary! Esse presentinho não sou eu que estou dando pra ti... É Deus... E ele te ajudará nos momentos mais difíceis da tua vida.
    Mary segurou o embrulho que Teresinha lhe pusera nas mãos, com a expressão de alguém que encontrou um tesouro... Colocou-o cuidadosamente entre o material escolar, no interior da mochila. O trajeto percorrido por Mary, Léo e Valderez parecia interminável. Estava apreensiva para descobrir o conteúdo do embrulho, principalmente porque vinha das mãos de Teresinha, a pessoa que fazia a melhor merenda que já comera.
    _ O que a princesinha esconde aí?
    _ Um presentinho que Dona Teresinha me deu!
    Léo, cheio de sarcasmo, não perde a oportunidade:
    _ Deve ser comida! Afinal, ela, pobre de maré, capaz que te daria uma coisa que não fosse comida!
    Valderez guiava em silêncio, sua expressão deixava claro que não gostava de Mary.
     _ Não sei, Léo. Depois eu abro. Sei que é...
    _ Quero ver agora!
    Léo tomou o embrulho de Mary e o abriu. O sorriso debochado dele parecia mostrar que era ele quem ditava as regras.
    _ Mas não tá certo, Léo... Isso é meu!
    _ É nosso, princesinha! Aqui não é nada teu!
    Mary baixou o olhar, consternada, porém, não fez menção de tirar o embrulho das mãos de Léo. Lembrou do irmão... Ele também não brigaria por um embrulho.
    _ Isso parece um livro! Eu odeio livros!
    Léo jogou o pequeno livrinho no colo de Mary.
    _ Livros... Só os tantãs carregam livros! Eu carrego outros bagulhos!
    O tom irônico de Léo, e a denominação "tantãs" dita por ele para pessoas que amavam livros como ela, deixou Mary triste. No fundo, tinha pena de Léo, porque ele jamais experimentaria as maravilhas de uma boa leitura...
    _ Pois eu carrego livros! Prefiro livros a esses teus "bagulhos"!
    Os olhos de Léo faiscaram de raiva, pela resposta de Mary. Puxou uma das tranças de Mary:
    _ Essa resposta vai te sair caro, princesinha! Muito caro!
    O carro de Valderez cruzou o gramado em frente à mansão.
    _ Chegamos, crianças.
    Mary segurou seus pertences escolares sob o braço e subiu correndo a escadaria, parecendo fugir de algo, ou de alguém...
    _ Não adianta correr, princesinha! Eu te pego de qualquer jeito!
    A porta trancada à chave transformava o quarto em um refúgio para Mary... Ali sentia-se segura... Sentou-se sobre a cama, pegou o pequeno livro que Dona Teresinha colocara em suas mãos. Abriu-o, e leu as frases que a bondosa mulher escrevera:
    _" Mary! Este livro vai te ajudar a fazer sempre a escolha certa... Ele será teu sapato quando te faltar o chão, ele será teus olhos quando te faltar a luz, ele será tua bússola se te faltar o rumo... Confia sempre em Deus!
    Com carinho, Teresinha."

    Sentiu que realmente precisava de algo que lhe desse arrimo, pois com a ausência de Irene, sentia-se sozinha entre estranhos. Sentia falta de Miguel e do pai... Lembrou de Francisco, que rezava quando se sentia sozinho...
    _ Eu gostaria de saber rezar, mas eu nunca vi minha mãe rezar...
    Lembrou-se de Irene... Das noites frias, dormindo na barraca de lençóis, da fome... Ergueu os olhos, como se alguém a chamasse do alto, e o coração falou alto:
    _ Papai do céu... Eu gostaria tanto de ter uma mamãe boa, que me ensinasse as coisas... Como fazer... Como rezar... Eu ia gostar de ter uma mamãe como o Francisco tem...
    Mary ficou olhando o teto do quarto, como se esperasse uma resposta imediata... Fechou os olhos... Seu subconsciente pareceu entrar em um ambiente de luz e de paz, tão calmo... Escutava apenas o cricrilar dos grilos e o canto dos pássaros ao longe. Parecia flutuar sobre uma grande nuvem de tranquilidade...
    _ Hora de jantar, princesinha!
    A voz irônica de Léo pareceu derrubar Mary da sua nuvem. Não saberia dizer quanto tempo passou desde que entrou no quarto.
    _ Só tenho que refazer minhas tranças. Já tô indo, Léo!
    _ Deixa que eu faço pra ti, princesinha! Sou craque em arrumar cabelos!
    Inocentemente, Mary destrancou a porta para Léo entrar. Porém, não imaginava as intenções do garoto...
    _ Senta bem aqui no banquinho, na frente da cômoda.
    _ Vou buscar a escova, deixei na mochila...
    Enquanto Mary procurava a escova, sem que ela percebesse, Léo trancou a porta e pôs a chave no bolso.
    _ Aqui está...
    Léo passou a escovar o cabelo de Mary, olhando o reflexo no espelho da cômoda. Fez lentamente uma das tranças. Passou a mão lentamente nos ombros de Mary...
    _ Tu ainda vai ser minha, princesinha! E vai ser agora...
    _ Eu? Não! Não! Não!
    Mary saltou do banquinho, em direção à porta. A ideia de ser tocada por Léo lhe dava nojo. Queria fugir...
    _ Não adianta querer fugir, princesinha! Tranquei a porta! E a chave tá aqui! E não precisa gritar... Meu pai não tá aqui, e tua mãe tá no hospital ainda! Ninguém vai me impedir!
    Mary sentia-se como naquelas noites no mato com Miguel e Irene, porém, agora, sem o irmão e a mãe... Respirou fundo e olhou para a janela...
    _ Serão vários metros pra tu voar até o chão, princesinha! Acho que não vai sobreviver...
    Acuada, Mary buscou uma saída... Juntou as mãos e dirigiu o olhar ao teto do quarto, onde parecia procurar a saída...
    _ Não temos alçapão de saída no teto, princesinha!
    Mas Mary não procurava um alçapão. Conversava mentalmente com Deus: "Deus, não sei rezar, mas eu sei que o Senhor não vai deixar nada de ruim acontecer comigo..."
    _ Essa agora! Virou pedra! O que deu nessa guria?
    Léo tocou o ombro de Mary, desconcertado...  Ela parecia realmente petrificada... Ficou pensativo por um momento...  Um sorrisinho irônico mostrava que as intenções de Léo não eram nada boas.
    _ Não vou ter oportunidade melhor!
    Léo dirigiu-se até a cômoda, e sem que Mary notasse, tirou da gaveta uma tesoura...
    _Vai ficar bonitinha, princesinha!
    Sorrateiro e ágil, foi por trás de Mary, segurando a trança já feita... Cortou-a logo abaixo da orelha de Mary.
    _ Isso é só um aperitivo do que vou fazer, se não me deixar te tocar...
    Mary olhou pasma a longa trança na mão de Léo.
    _ Quero o resto também...
    Léo segurou a outra mecha de cabelo de Mary e cortou-a também.
    _ Isso vai me dar uma graninha! É a primeira das muitas coisas que vou tirar de ti se não deixar eu te tocar!
    Léo jogou a tesoura na gaveta, tirou a chave do bolso e destravou a porta.
    _ Eu não estou brincando, princesinha!
    Mary sentiu seu pensamento tão rígido quanto pedra... Não conseguia pensar, tampouco compreender o motivo pelo qual tudo estava ocorrendo. Sentiu a cabeça doer, e seus passos estavam paralisados. Lentamente, tentou andar, mas as pernas não obedeceram. Passou as mãos na nuca... e sentiu que as longas tranças já não estavam ali. Duas grossas lágrimas desceram pela face de Mary.
    _ Não é justo, meu Deus... Não é!!!
    Sentou-se sobre a cama e abriu o pequeno livro que Teresinha lhe dera... A leitura calma aquietou-lhe o coração.
     No dia seguinte, Mary não sabia como arrumar os cabelos para ir à escola. Escovou-os cuidadosamente enquanto observava seu reflexo no espelho e respirou fundo. Olhou para o alto e uma prece silenciosa fez com que Mary buscasse no fundo do coração coragem para seguir.
    _ Deus... Perdi só os cabelos, mais nada... Obrigada, Deus...
    _ Vamos lá, ex Rapunzel! A carruagem te aguarda! Vem rápido, ou ela vira abóbora!
    A ironia de Léo já não incomodava Mary como antes. Parecia que as palavras dele não a atingiam da mesma forma.  Sentia-se como se estivesse com o coração coberto por uma capa protetora. Em outras circunstâncias, responderia, explicando que a Rapunzel não tem carruagem de abóbora, e sim a Cinderela. Porém, faz do silêncio seu escudo. Colocou o seu pequeno livro cuidadosamente entre o material escolar. De mochila no ombro, dirigiu-se até o carro de Valderez. Ele logo reparou em seus cabelos:
    _ Cabelo novo, Mary? Quando cortou?
    Mary limitou-se a olhar para Léo. O silêncio dizia tudo.
    _ Mais uma das tuas travessuras, Léo?
    Léo baixou os olhos diante das palavras do pai... Valderez completou o trajeto de casa até a escola em silêncio.
    _ Porque cortou o cabelo, Mary? Era tão bonito!
    Mary não conseguiu responder nem para Francisco. Preferiu o silêncio. Francisco levantou-se da carteira de repente, saindo pela porta da sala... Atravessando o corredor em silêncio, como se estivesse sendo guiado, parou em frente à porta da sala do diretor Júlio.
    _ Francisco! Faz dias que você não aparece aqui!Antes da Mary estudar aqui, vinha todos os dias! Quer conversar?
    Francisco sentou-se diante do pote de balas de goma, como fazia antes de conhecer Mary. Porém, dessa vez não tirou nenhuma... Seu olhar ficou parado diante de Júlio.
    _ Algum problema, Francisco? Pegue uma balinha de goma e fale...
    Francisco permaneceu em silêncio. Seu olhar estacionado no pote de doces demonstrou que algo não estava bem.
    _Quer conversar, Francisco?
    O diretor Júlio já notava quando algo não estava bem com Francisco. Quando o menino ficava como se estivesse em outra dimensão, era porque algo não estava bem.
    _ A mamãe... Meu mano nasceu e tá doente... Ficou no hospital... A Mary cortou o cabelo bonito... E tô com saudade do papai...
    _ Logo teu maninho estará bom, Francisco... Vi que Mary cortou o cabelo... Faz parte... As pessoas mudam o visual...
    Júlio não tinha mais argumentos para tirar a tristeza do olhar de Francisco. Mas tentou...
    _ Logo teu pai estará de volta da viagem... O trabalho de caminhoneiro não é fácil.
    Francisco, no entanto, não sabia do acidente sofrido por Juvenal... Talvez tenha pressentido que o pai não estava bem...
    _ Meu pai não deu notícias faz dias...
    No hospital, longe dali,  Juvenal lutava entre a vida e a morte... O traumatismo craniano que sofrera, infelizmente, tivera sequelas... Os médicos tentaram salvar o olho esquerdo, porém, sem sucesso... Quanto à perna atingida pela árvore, sofrera diversas fraturas expostas...
    _ Pobre homem, Arnaldo! Temos que avisar a família dele...
    _ Mas como saber onde mora a família?
    _ Já sei, Arnaldo! Conheço tudo na região, por causa das entregas de erva mate... Vou pedir informações no hospital, através dos documentos que encontramos no caminhão...
    _ Então amanhã faremos isso... Agora, se me permite, Claudio, eu gostaria de conversar contigo...
    Claudio ergueu a sombrancelhas, curioso.
    _ Pois fale, meu amigo! Algum problema?
    _ Não e sim... Bom, é sobre Miguel...
    _ Miguel? O que há com ele?
    _ Olha, um tempo atrás ele caiu de uma árvore... Machucou a barriga e ficou com um problema sério. O médico falou que atingiu o pâncreas, que regula a glicose... Essas coisas...
    _ E?
    _ Em casa já teve crises e eu consegui ajudar ele... Mas me preocupa na escola... Aí pensei nas tuas meninas, que são muito amigas dele.
    _Mas elas só têm onze anos...
    _ Eu sei! E são muito inteligentes... Seria só avisar a professora se notarem que ele não está bem.
    _ Mas isso nem precisa pedir! Conheço a Lenice e a Lenir... Por um amigo, elas farão qualquer coisa pra ajudar!
    _ Lenice sumiu, professora! Ela foi ao banheiro e não voltou!
    _ Fiquem aqui, e façam a lição do quadro negro.
    A professora Sirlei encontrou Lenice trancada no banheiro, chorando copiosamente.
    _ O que aconteceu, amada?
    _ Eu vou morrer, professora!!!
    Sirlei, apavorada com a situação, tenta abrir a porta do banheiro.
    _ E posso saber porque diz isso?
    _ Eu tô sangrando !!!
    _ Como assim? Explica pra mim, Lenice... Você se machucou?!
    _ Não! Não! Tô sangrando aqui!
    A menina entreabriu a porta do banheiro e apontou para a sua região íntima. A professora não sabia se chorava ou se ria da situação. Notou que, na realidade, Lenice estava tendo sua primeira regra... Deu uma risadinha... A menina olhou para a professora, desolada...
    _ Eu tô aqui, sangrando... Eu sei que vou morrer... E a senhora ri de mim?!
    Sirlei, a essas alturas, não sabia o que falar. Mas resolveu, primeiramente, explicar:
    _ Lenice! Lenice! Você só tem onze anos, mas acredito que tua mamãe nunca falou para você sobre regras.
    _ Regras? Sim, ela falou... Lá em casa temos muitas regras: não trazer brinquedos pra cozinha, não levar comida pro quarto, não brigar...
    Lenice foi contando nos dedos...
    _Não são esse tipo de regras, amada...
    _ Aaaa, temos outras regras! Quando eu e a Lenir queremos um brinquedo novo, temos que doar um dos nossos brinquedos pra uma outra criança.
    _ Vou explicar, Lenice... Esse sangramento eu também tenho... Todos os meses!
    _ A senhora também vai morrer, professora?!
      Mais uma vez, Sirlei não segurou a risadinha.
    _Calma, amada! Todas as meninas, quando crescem, como você e a Lenir, "ficam mocinhas"... Todos os meses passam a ter esse sangramento... Deus fez o corpo feminino para ter filhos, e esse sangramento mensal é um sinal de que o corpo da menina está amadurecendo aos poucos para isso.
    _Nossa mamãe só nos falou das regras da casa, professora.
    _ Eu tiro o chapéu para a mamãe de vocês, Lenice... Ela ensinou vocês a serem dedicadas e educadas!
    _ Minha mãe não usa chapéu, professora. Quando ela vai pra horta, só usa boné...
    _ É um modo de falar, Lenice... Venha comigo, vou arrumar um absorvente para você. Sempre carrego comigo.
    _ Absor... O quê?
    Sirlei tira um absorvente higiênico da bolsa e fala para Lenice para que serve.
    _ Então isso é um absorvente? Eu e a mana achamos um pacote desses no armário da mamãe, e ficamos apostando pra ver se alguém descobriria pra que serve. A gente pensou que isso serviria pra fazer curativos de machucados bem grandes...
    Sirlei segurou a vontade de rir.
    _Vou ver se encontro alguém para te acompanhar até em casa. Acredito que a merendeira já terminou seu trabalho na cozinha, e pode ir com você.
    _ E a Lenir?
    _ A Lenir poderá sair no fim da aula, como sempre. Para ela não ficar sozinha na carteira, vou colocar ela ao lado do Miguel, pois ele é um menino tranquilo e educado como vocês.
   

  

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