O segredo de Edelvina

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    Após fazer o curativo de Irene com o látex da aveloz, Edelvina parecia tensa.
    _ Tenho que ir agora, Irene.
    _ Mas já? Nem botamo a fofoca em dia, e ainda não lavemo o chimarrão!
    _ É que hoje vou ganhar visita... Uma visita especial...
    A curiosidade de Irene ficou eminente.
    _ Mmmmm... É alguém importante? Eu conheço? Quem é? Me conta, vai!
    Edelvina ficou apreensiva, porém, acabou respondendo:
    _ Não conhece, não... É uma pessoa de longe. De fora do Rio Grande do Sul. Vai ficar lá em casa um bom tempo.
    Irene olhou deslumbrada.
    _ Tu vai ganhar visita de fora do estado e não vai me convidar pra conhecer? Deve ser político... Eles se escondem na casa dos parentes durante  três anos e no ano de eleição eles aparecem e vão visitar todo mundo!
    _ Não é político, não... É uma pessoa da família.
    _ Como assim? Tu tem parentes morando em Goiânia? Nunca me contou... Que chique!
    _ Bom... É parente, e não é...
    Irene olhou para Edelvina, em dúvida.
    _ Tá... É parente ou não é? Me explica melhor!
    _ Vai vir minha filha de Goiânia.
    Irene mostrou-se surpresa:
    _ Filha???  Mas tu teve só um filho, e era menino... Deve tá grande, já... Como é mesmo? Ahhhh, o Roberto.  Então, agora ele é Roberta?
    Edelvina corou diante da pergunta da amiga. Sentiu naquele momento que falara demais...
    _ Não... Tive uma filha mesmo.
    _Mas como tu teve uma filha, e eu não fiquei sabendo? Logo eu, que sempre fui tua fiel escudeira?
    _ Pois é que... Ela já veio me visitar mais vezes. Todos acham que ela é minha afilhada. Mas...
    Com os olhos ávidos por uma fofoca, Irene não resistiu e bombardeou Edelvina com perguntas:
    _ Me conta, vai! Como foi isso? Como tu teve uma filha? Foi antes do Roberto nascer ou depois? O Armando sabe dela?
    _ Tu não vai contar pra ninguém, né? Muito menos pro Armando!
    Irene cruzou e beljou os dedos indicadores.
    _ Juro! Me conta, vai! Conta, conta, conta...
    _Tudo começou a quase 30 anos... Eu tinha ido visitar uns parentes em Goiânia... Lá conheci o Eliel... Tivemos um relacionamento, e eu fiquei...
    _ Commmmo? Tu ficou grávida de outro???
    Diante dos olhos arregalados de Irene, Edelvina continuou:
    _Como eu já tava casada com o Armando, não poderia contar pra ele que eu tinha engravidado de outro homem... Ainda mais que o Eliel é "de cor"... Ia ficar muito nas vistas!
     Irene cobriu a boca.
    _ Que bafão!
    _ Tu não vai espalhar...
    _ Calma... Eu já passei quase pelo mesmo probleminha... Tive um caso com o Carlito... Aquele advogado que ia fazer o meu divórcio.
    _ Mas tu não ficou grávida!
    _ Tu não sabe a metade da missa, Edelvina! Fiquei prenha daquele doutorzinho, sim! Foi meio de propósito, e não por acidente... Mas eu pensei que ele ia casar comigo.
    _ Tá... Mas se tu ficou grávida... Cadê a criança? Também deu ela pro pai criar?
    Irene soltou uma sonora gargalhada.
    _  Nunquinha! E eu ia estragar meu corpinho lindo? Eu não!  
    _ Então...
    _ Eu"tirei" o nenê, ora! Foi tão simples... Bastou tomar aqueles chá que fazem menstruar e colocar cinta bem apertada, dia e noite. Aí, a cria não cresceu! Depois, quando deu o sangramento, foi sinal que o bichinho foi pras Cucuias!
    Edelvina, apesar de seus segredos semelhantes aos de Irene, ficou horrorizada com a simplicidade com a qual Irene referiu-se ao aborto que provocara.
    _  Santo Deus de eu fazer isso! Nunca! Eu até pensei nisso, mas eu sempre tinha medo que um dia o castigo viria pra mim, por matar um nenê... É uma vida...
    _ Castigo nada, Edelvina! Castigo é parir um filho e ele não ficar com a gente! Durante a gravidez, a gente carrega eles, tem a dor de parir, e eles estragam nosso corpo. E depois disso ficam pra cá e pra lá no colo do pai, e nem querem retribuir os nove meses que a gente passa carregando eles não barriga! Deveria ter uma lei que proíba o pai de chegar perto dos filhos da gente quando são pequenos! É nós, mulheres que botamo eles no mundo!
    _ Pois eu não concordo. Dei o nenê pro Eliel criar.  Ele foi o pai e criou a Eliane!
    _ Como assim?
    _ Consegui esconder a gravidez do Armando até o sétimo mês...  Sempre fui gordinha.
    Os olhos de Irene brilharam diante da revelação de Edelvina.
    _ Conta como foi...
    _ Depois do sétimo mês, inventei uma nova viagem pra Goiânia e pari lá. A Eliane cresceu com o Eliel.
    Irene estava ávida por mais revelações .
    _  Mmmm... E eu que pensava que só eu tinha histórias pra contar! Tu viveu um belo romance no Norte do Brasil  e ninguém sabia!
    _ Não foi no Norte, sua ignorante! Goiânia fica no meio do Brasil! Centro-oeste!
    _ Tá... Dá no mesmo... Que história essa tua! Daria uma novela... Isso vai dar "pano pra manga"!
    Edelvina sentiu-se incomodada com o vocabulário da amiga.
    _ Contei só pra ti... Se a história se espalhar, sei que foi tu... Aí tu me paga!
    _ Calma, Edelvina! Pra quem eu iria contar? Tu é a única pessoa aqui que eu tenho pra conversar. O resto do povo é tudo uma gentalha... Ainda mais agora, que veio essa gente "cor de cuia"pra cá! Deveriam proibir o povo de se misturar com esses daí...
    _ Mas tu sabe que o homem "de cor"é melhor que o alemão? O Eliel fez mais em uma semana que o Armando em um ano! O Armando sempre diz que "quer respeitar se eu não tô com vontade"...
    _O Arnaldo também sempre dizia isso... Que tédio!
    Irene soltou uma sonora gargalhada e saiu arremedando a frase de Edelvina:
    _ "Quero respeitar se tu não tiver vontade"... Me poupe! Alguns homens nem sabem o que é "uma boa pegada"!
    _ O Eliel sim que tem "pegada"!
    Um sorrisinho irônico aflorou nos lábios de Irene:
    _ Por isso que ficou grávida!  Não deu pra dizer "não"? Ou fingir uma dor de cabeça?
    _ Ahhhh... Isso eu faço seguido com o Armando! Com o Eliel não deu... Com ele "a macega pega fogo"!
    Edelvina olhou para o velho relógio de parede, ergueu-se da cadeira e fez menção de sair.
    _ Tenho que ir agora... Daqui a pouco minha filha chega e eu não tô em casa!
    _ Mas já vai? Tava ficando boa, a história...
    _E tu vê se não espalha o que te contei!  Pra ninguém, ouviu? Ou pode acabar com a boca cheia de formiga!
    _ Pode deixar, Edelvina... Minha boca é um túmulo! Mas...
    _ Mas, o quê, sua língua de trapo? Já dei o meu recado! Não brinca comigo, Irene!
    Irene baixou o tom de voz:
    _ Eu só ia dizer que tu é pra guardar o meu segredo também. O que eu te contei sobre o nenê que eu tirei ninguém sabia ainda!
    Edelvina ficou em silêncio apenas limitou-se a olhar para Irene, pensativa.
   

                        *

    _O Sr pode ficar aqui em casa, sim, Arnaldo! Capaz que vamos deixar de dar guarida pra ti, que sempre nos ajudou! É pra isso que existem os amigos!
    Juvenal emendou:
    _ Eu não tenho coragem de levar um homem que acabou de sair da faca do médico pra dentro da casa dele, onde aquela mulher tá... Tu não teria como te defender.
    Teresinha olhou para Arnaldo e sorriu.
    _ Seria como colocar um cordeirinho no mesmo curral de uma onça... Não sobraria nada!
    Juvenal aproveitou a deixa, olhou para o amigo e ironizou:
    _ Se bem que tu não parece nem um pouquinho com um cordeirinho, meu guri! Parece mesmo é um cavalo, com esse tamanho de pernas!
    Arnaldo sorriu.
    _ Um pangaré, então! Do jeito que eu tô rengue, depois dessa "facada do médico", tô longe de parecer um cavalo!
    Teresinha sorriu.
    _ Isso foi uma facada necessária, Sr Arnaldo... Quando se recuperar, daqui a uns dois meses de repouso e cuidados, o senhor vai tá firme e forte pra encarar a fera!
    _ Mas eu tô longe de ficar dando despesas pra vocês aí, Dona Teresinha! Assim que eu estiver um pouco melhor, vou ajudar nos afazeres... Nem que seja da padaria, da ONG, ou até cuidar das crianças, porque pra rádio não sirvo. A minha voz é como a de um quero-quero!
    Juvenal aproveitou a deixa do comentário de Arnaldo, e brincou:
    _ O "grande babá" vai entrar em ação! Aqueles dois vão te dar um trabalhão! Vão te deixar mais arriado que a cirurgia que fez!
     _ Tu te engana comigo, meu guri! Quem tu acha que controlou o Miguel e a Mary quando eles eram pequenos?
    Teresinha emendou:
    _ O Claudino e a Valéria precisariam é de um exército pra segurar eles, mas eu sei que o senhor tem jeito com crianças e vai botar essa duplinha nos eixos!
    _ Eu gostaria de não estar dando essas despesas pra vocês, mas infelizmente, não tenho com quem contar nesse momento. Tô na rua...
    _ Não tá na rua, não! Sabe que aqui sempre terá um prato de comida pro senhor e uma cama quentinha. Pode contar sempre com a gente... E tu tem teu filho...
    _ E não quero que o Miguel saiba o que tá acontecendo. O grande sonho dele era ser militar... E se ele souber desses  meus perrengues, vai pedir baixa.
    _ E se o Miguel telefonar pro ramal da tua casa? Vai saber que tu não tá lá...
    _ Eu espero que por enquanto ele nem tenha tempo pra ligar. Depois, assim que eu estiver um pouquinho melhor, vou até lá. Se ela não sair,vou ao menos pegar minhas roupas e meu carro.
    Tina entrou bem a tempo de ouvir as últimas frases de Arnaldo.
    _ Se estiver um pouquinho melhor, não vai nada, Arnaldo. Vai é ficar aqui até que esteja totalmente recuperado, nem que a gente tenha que te prender no chiqueirinho com o Claudino e a Valéria!
    Diante da expressão séria de Tina, Arnaldo brincou:
    _ Olha as farpas do ouriço, gurizada! Vou vestir minha armadura e usar meu escudo, ou acabarei vestindo paletó de madeira!
    Tina não se deu por vencida:
    _ Pois se for até sua casa é que vai usar paletó de madeira!
    Juvenal e Teresinha entreolharam-se, sorrindo.
    _ Mmmmmm... Esses dois... Sei não...
    _ Pensando bem... Fuga cancelada por enquanto, capitã! O marujo aqui só tava imaginando a cara de surpresa da Irene se me visse lá de repente...
    _ Pois essazinha vai te fazer andar na prancha e te dar de comer aos tubarões, marujo!
    _ Engano seu, capitã... Eu é que vou comer os tubarões dela... Eu tô com uma baita fome! Olha só aqui, quantos dentes... E eu garanto que estão afiados!
    Arnaldo sorriu, mostrando os dentes. Juvenal apressou-se em estender-lhe uma travessa de frutas.
    _ Opa, opa, opa! Nada de canibalismo, meu irmão! Ninguém vai comer ninguém aqui! Pra isso temos frutas fresquinhas!
    Entre prosa, risadas e uma rodada de mate, chegou a hora de Juvenal recomeçar o trabalho:
    _ Bueno! Vou pra rádio agora, substituir a Lenice! Ela deve tá achando que eu não vou mais trabalhar.
   
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora