_ Como está minha filha, Doutor?
_ Ainda não posso fazer uma previsão das consequências que a queda de cavalo poderá causar na menina, uma vez que ela bateu a cabeça ao cair, mas faremos alguns exames e, após os resultados, poderemos dar ao senhor um diagnóstico mais preciso.
Claudio sentiu o coração apertado. Lenir sempre fora mais próxima a ele... Às vezes tinha pesadelos à noite e invadia a cama do casal para sentir-se protegida pelo pai.
_ Doutor... Faça o possível e o impossível para ela ficar bem. A Lenir sempre teve uma imunidade mais baixa que a Lenice, porque nasceu só com um quilo e meio. A Lenice pesava um pouco mais de dois quilos. Elas foram prematuras... Sempre precisaram de cuidados redobrados, tanto na saúde como nas travessuras.
O médico deu uma risadinha ao ouvir as últimas palavras de Claudio.
_ Sei exatamente como é; tenho três filhos. Mas pode ficar tranquilo, Sr Claudio. Farei tudo que estiver ao meu alcance.*
_ Aquela enfermeira rogou uma praga pra mim! Consultei hoje com o Doutor e ele disse que as bolinhas que apareceram nos pontos da cirurgia são todos pequenos tumores...
Irene acendeu um cigarro e saiu do quarto, corredor afora, furiosa:
_ Eu fiz aquela biópsia... Ela tinha dado resultado negativo! Esse médico mentiu pra mim!
Lili escutou apenas a última frase de Irene, e comentou:
_ Os médicos são todos assim! Mentem que a gente tá curada e a gente sente que tem ainda umas dez viroses dentro das veias... Ainda bem que as farmácias vendem uma porção de remédios sem receita!
_ Mas eu vou processar esse médico e ganhar uma nota com o processo!
_ Isso! Assim tu vai ter dinheiro sobrando pra montar uma farmácia em casa!
_ E ele ainda disse que vou ter que fazer outra cirurgia, e nova biópsia...
_Nãão!!! Nada de cirurgia agora! Tu tá grávida! Vai te tratar com uns remédios, mas sem operar! Não quero que mate meu neto!
_ Esse teu neto veio na hora errada, dona Lili! Ele vai estragar meu corpo, que tava lindo e escultural depois da lipo!
Lili encarou Irene com uma seriedade fulminante.
_ Então não abre as pernas, sua-
Irene e Lili estavam prestes a partir para uma agressão, mas Lili encarou fixamente Irene:
_ Faça o que quiser com teu corpo, mas depois que sair dessa casa! Enquanto estiver aqui, vai fazer o que eu mando!
A possibilidade de ser expulsa da casa de Valderez e Lili fez Irene calar-se. Lili deixou-a sem reação e saiu.
_ Tááá... E agora os outros vão decidir o que eu vou fazer da minha vida?! Eu sempre dominei a todos, tudo sempre foi feito como EU planejei! Agora vem essa dona Lili me dizer o que vou fazer com minha vida... Nunquinha!!!
Irene acendeu outro cigarro, atirando a bituca do cigarro anterior com raiva nos ladrilhos. Seu nervosismo transparecia em suas mãos trêmulas, e ela sequer notou a presença de Mary.
_ Tá tudo bem, mãe?
_ E tu acha que tá tudo bem, sua filha da §*₪៛₹?!
_ Mããããe!!! Mas minha mãe é a senhora!
Mesmo levando um xingamento que não entendia, Mary teve que se controlar para não rir, pois sua mãe tinha chamado a si mesma por um nome que ela sabia ser feio.
_ Tu cala esse bico, guria! Quem decide se tá tudo bem aqui sou eu! Tu deveria tá brincando com o Léo, e não ficar me azucrinando aqui!
Mary sentiu um arrepio de horror ao escutar a voz da mãe se referir ao Léo daquela maneira... Sem pensar, deixou escapar uma frase que fez Irene arrepiar:
_ Mas mãe, me dá uma última chance!
As palavras "última chance" ecoaram forte na cabeça de Irene... Pareciam latejar cada vez mais fortes, repetidas vezes. Irene sentiu surpresa e arregalou os olhos:
_ O que tu sabe sobre isso?! Então foi tu a culpada que eu tive aquela parada cardíaca quando fiz as cirurgias?! Eu devia ter imaginado que tu tava por trás disso, fica pelos cantos, rogando praga! De castigo, já pro teu quarto!!! Vou pedir pro Léo levar almoço pra ti, porque hoje não quero mais te ver na minha frente! Tu já tá que nem aquela cria do diabo do teu irmão!
Mary sentiu as lágrimas brotarem ao lembrar do irmão. Sabia que Miguel a defenderia em uma situação dessas.
_ Mas mãe...
_ Nem um mas, nem meio mas... A partir de hoje tu e Léo vão ir sozinhos pra escola! Ele já tem barba na cara e sabe o caminho, e tá na hora de tu largar da minha saia, guria!
Mary fez menção de retrucar, porém Irene simplesmente franziu o cenho, apontou o dedo para o quarto de Mary e bufou.
_ Agooooora!!!
Mary baixou a cabeça e entrou no quarto silenciosamente. Sentou-se na cama e ergueu os olhos.
_ Deus... Eu tô tão triste! Gostaria tanto de ter uma família feliz...
Retirou da mochila o pequeno livro sagrado recebido de Teresinha. Abriu e leu um pouco... Depois de alguns minutos lendo, seu olhar voltou novamente para o alto.
_ Deus... Preciso abrir meu coração para o Senhor...
Mary ficou ali, sentada, conversando com seu Deus. Sua apreensão foi-se dissipando aos poucos. Sequer escutou quando Léo abriu a porta de seu quarto. Nas mãos, uma bandeja com dois pratos e dois copos com suco.
_ O que é isso, Léo?
_ Graças à tua desobediência à tua mãezinha, tenho que fazer um trabalhinho extra de mordomo, princesinha! Aí aproveitei e trouxe o meu prato também. Odeio comer com meu velho... Parece que ele lê o pensamento da gente!
_ Mas, já tá na hora do almoço?
_ Quase, mas eu já me antecipei, porque de hoje em diante o vento vai soprar ao meu favor!
A menina ficou confusa.
_ O que o vento tem a ver com o meu almoço?
Léo soltou uma risadinha irônica:
_ Tua megera me disse que tu tá de castigo por tempo indeterminado... Que eu tenho que ser tua sombra... Levar comida no quarto, levar pra escola, de volta pra casa...
Mary sentiu o sangue gelar nas veias mais uma vez. A ideia de que Léo estava autorizado de entrar em seu quarto a qualquer hora do dia ou da noite fez ela sentir-se perdida. Parecia que o pensamento procurava uma saída, mas não conseguia pensar em nada... Parecia que seu cérebro estava anestesiado. Olhou para o prato e o copo.
_ Não tô com fome...
_ Melhor comer, princesinha! Vai precisar de força pra caminhar até a escola. A partir de hoje, nós vamos à pé. Ordens da rainha má!
Léo soltou outra gargalhada. Mary sentiu as lágrimas subirem...
_ Olha pelo lado bom da coisa! Tu tá vivendo um verdadeiro conto de fadas! Tem a rainha má, teu quarto é a torre... E eu sou o príncipe que te salva!
A menina respondeu sem pensar:
_ Tu? Um príncipe? Parece mais o dragão...
Léo sentiu o sangue subir à cabeça. Encarou Mary como se tivesse levado um tapa no rosto.
_ Tu não perde por esperar, princesinha! Tu me paga!
Léo saiu, batendo a porta:
_ Esteja pronta pra escola em meia hora! Temos que caminhar!
Mary respirou fundo. Sentiu um certo alívio por ter tido coragem para responder à altura para Léo, porém, temia que ele se vingasse.
_ Deus... Obrigada por me dar coragem... Ainda tenho medo, mas vou confiar na promessa de Jesus, que li nesse Teu livro sagrado!
Naquele momento, parecia que os horizontes se abriam para Mary, como que por encanto, sentia pela primeira vez a coragem de encarar o que viesse pela frente.
_ Sinto agora, Jesus, que o Senhor tá comigo...
Mary sentou-se diante do prato e comeu até o último grão de arroz e bebeu todo o conteúdo do copo de suco... Fazia tempo que não comia com tanto apetite.
_ Agora, Senhor Jesus... Ao banho e pra escola... A professora Mara me espera!
Mary sentiu que aquele momento de fé que seu coração dirigira a Deus fora um divisor de águas em sua vida.
_ Ahhhh... Como é bom sentir o amor de Jesus! Parece que meu coração tá usando uma armadura!
Quando Léo chegou ao quarto de Mary, olhou surpreso, pois ela estava pronta, de mochila no ombro, botina e boné...
_ Nossa, parece um soldado armado! Cadê a princesinha?
Era exatamente assim que Mary se sentia... A fé a fizera sentir a força de um soldado treinado para uma guerra.
_ Morreu! O dragão queimou ela, e as cinzas dela se transformaram no soldado que tu tá vendo agora!
Mary sentia uma confiança nunca sentida antes... Léo olhou para aquela imagem confiante e bufou:
_ Não perde por esperar, soldadinho de chumbo! Vai cair no fundo do rio!
As palavras que Léo lhe dirigia já não a atingiam. Sentia que algo a protegia de alguma forma. Apenas o barulho dos passos e do trânsito quebravam o silêncio entre a casa e a escola. Francisco esperava no portão:
_ A professora já chamou, Mary!
Léo percebeu o amigo de Mary, e não pôde deixar de fazer o seu comentário:
_ Então é por causa desse guri que tu tá assim comigo?
_ Nada a ver, Léo... O Francisco é só meu colega. Eu ajudo ele, porque ele é autista...
_ Ele é um oportunista, isso sim! Foi ele que te fez ficar assim, né? Ele me paga!
Francisco olhou Léo sem compreender. A voz da professora Mara pareceu salvar a situação:
_ Todos para a sala!
A criançada saiu em disparada em direção à sala, exceto Francisco e Léo. Os olhos desafiadores de Léo pareciam prender os passos de Francisco.
_ Fica longe da minha irmãzinha, cafezinho!
Francisco fez menção de sair da presença de Léo, porém, um gesto rápido do pé de Léo fez Francisco perder o equilíbrio e cair no pátio da escola. Ergueu-se olhando Léo, sem compreender o que se passava.
_ Mary está precisando de ajuda, e eu vou ajudar ela!
Léo sentiu um certo desafio nas palavras de Francisco.
_ Vocês dois me pagam! Não perdem por esperar!
Léo virou-se e saiu portão afora... Francisco sentiu que aquilo não era certo.
_ Vai faltar aula?
_ Vai cuidar da tua vida, cafezinho!
A aula transcorreu tranquilamente, porém, no horário de saída das crianças, Léo ainda não retornara à escola. Mary esperava, sentada à porta da sala de aula. Mara estranhou:
_ Ué... Você ainda está aqui? Todos já foram embora. Só estamos eu, a dona Teresinha e o Sr Júlio...
_ Acho que ninguém vai me buscar... Vou sozinha pra casa.
_ Nada feito! Eu te levarei até em casa!
_ Acho que minha mãe não tá em casa...
_ Deve ter alguém em casa. Vamos?
Chegando à casa onde Mary morava com a mãe, Mara batia palmas incessantemente. Chamou...
_ Ô de casa! Tenho que pegar o meu menino na creche...
_ Pode me deixar aqui, professora. Eu espero alguém chegar...
_ Nada feito! Vou deixar um bilhete na caixa de correspondência, com meu endereço, e você vem comigo. Uma criança não deve ficar sozinha na rua, mesmo em frente à sua própria casa.
Mary olhou para o céu e sentiu novamente aquela sensação de proteção... Mara notou o olhar de Mary e emendou:
_ Vamos, quero te apresentar o Henrique, meu filho...
Na porta da creche, Mary olhou com surpresa o abraço de Mara ao pequeno Henrique. O garoto tinha olhos negros feito jabuticabas, pele escura e cabelos lisos e tão pretos que pareciam azulados.
_ Esse é teu filho, professora?
A menina olhou surpresa para Mara, que tinha olhos azuis, pele branquinha e cabelos loiros levemente cacheados.
_ Eu não posso ter filhos, e o Henrique foi encontrado em uma aldeia atacada por invasores de terras. O serviço social nos concedeu a adoção do Henrique, e esse pequeno tesouro enche com amor a minha casa e minha vida!
_ Que história linda, profe!
Mary estava cada vez mais maravilhada... O caminho entre a creche e a casa parecia muito curto, pois logo pararam em frente à um chalé verde-folha com janelas vermelhas. Nas paredes inúmeros desenhos de personagens infantis decoravam a moradia...
_ Profe... É outra creche?
_ Não, amada... Essa é minha casa... Eu, o Henrique e o pai dele moramos aqui.
_Que lindo! Deve ter muito amor nessa casa! Eu gostaria de viver num lugar assim!
Entraram na casa simples, onde a sala era um verdadeiro castelo de brinquedos de madeira.
_ Meu marido é mecânico, mas ele ama criar brinquedos de madeira. Aqui pode achar de tudo! Vem! Tira os sapatos e sinta a vida fluir pelos pés! Nessa casa, a energia positiva entra pelos pés e vai até o coração...
Mary sentiu-se em outra dimensão. A paz que emanava daquele ambiente a fazia sentir como se estivesse nas nuvens.
_ Eu gostaria de viver assim...
Mara olhou Mary com ternura e ficou sem palavras, pois lembrara das marcas de queimaduras nas mãos da menina. A voz de Jorge quebrou o silêncio:
_ Onde está meu guri?
O marido de Mara pegou o pequeno Henrique nos braços, girou e beijou-lhe o rosto. Em seguida, abraçou e beijou a esposa.
_ Olha, Henrique! Temos visitas! Hoje vamos brincar até capotar!
_ Esta é Mary, ela é uma aluna minha.
_ Deixa só o escoteiro chefe aqui tirar essa inhaca de graxa, que nós vamos acampar aqui na sala...
Mara sorriu e dirigiu-se até a cozinha:
_ Vou preparar a cesta de suprimentos, chefe!
Mary entrou na brincadeira... Segurou no ar, uma pequena aeronave de madeira:
_E eu vou contar uma boa história de aviões pra esse pequeno guerreiro!
As brincadeiras na casa de Mara levaram a cabeça de Mary para uma outra história... Jorge e Mara rolavam com ela e Henrique no tapete da sala...
_ Temos que armar uma barraca, senhorita Mary... Todo bom acampamento tem que ter barraca! Me ajuda?
Mara segurava um lençol azul, com estampas de estrelinhas coloridas... Quatro cadeiras, com as pontas amarradas aos encostos... Parecia um acampamento mesmo...
_ Chefe Jorge vai fazer fogueira de faz-de-conta!
Jorge tirou umas folhas de papel celofane vermelhas de uma gaveta, amassou-as em frente à barraca...
_ Agora, umas histórias sobre animais da floresta... Quem se habilita?
Mara tirou da estante um livro enorme, com capa e folhas coloridas...
_ O urso Zé Colmeia...
O pequeno Henrique ergueu os bracinhos, em um gesto de comemoração:
_ Eeeeeeeee!!!
Por algumas horas, Mary esqueceu dos dramas diários vividos... Aquela família humilde, simples e feliz mostrava a ela que a felicidade é um bem que nenhum dinheiro consegue comprar!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...