No lixão

2 0 0
                                    

    _ Pois eu não iria conseguir cuidar de uma pessoa aleijada... Como é o teu nome?
    Irene lembrou-se da queda de Miguel, da árvore onde Arnaldo tentara suicídio. A sensação de que um filme passara em sua memória a fez recordar...
    _ Meu nome é Maria. E esse é o meu anjo... O Ângelo... Apesar dele não ter as pernas, é um amor de menino. Nós vivemos aqui... Eu separo lixo reciclável num lixão aqui perto.
    _ Maria???
    Irene arregalou os grandes olhos azuis. O nome de Mary, no registro de nascimento, era Maria, mas como a mãe nunca gostou do nome, sempre chamou-a por Mary.
    _ Sim. Maria. Por que?
    _ Esse nome me lembra alguém...
    Irene preferiu omitir sobre sua filha... Afinal, considerava ela e Miguel uma página virada de sua vida.
    _ Mas por que tu saiu da casa do teu marido? Não era mais fácil internar o nenê num lar que cuida de crianças aleijadas? Assim, tu teria um conforto melhor pra viver!
    Maria, àquelas alturas da conversa, já estava pronta para responder à altura da pergunta de Irene. Porém, decidiu não alterar sua conduta nem seu tom de voz diante de Ângelo.
    _ Olha, minha senhora... Aquele que não aceita meu filho, também não precisa me aceitar... E se Deus me deu a missão de cuidar dele, eu vou cuidar, enquanto eu viver! Nem que eu tenha que morar num viaduto e vender recicláveis a vida toda!
    Irene estava surpresa com a determinação de Maria em cuidar do filho.
    _ Tá... E esse lixo que tu vende vale a pena? Dá dinheiro?
    Maria olhou-a desconfiada:
    _ Dá o suficiente pra comprar comida pra mim e pro meu filho. Não dá pra alugar um lugar pra morar, mas confio em Deus, que um dia nós vamos sair daqui!
    Irene olhou para Ângelo com ar de desdém:
    _ Eu acho que eu não ia me contentar em viver do lixo e dormir embaixo de um viaduto! E ainda com uma criança aleijada... O que tu ganha com isso?
    Diante da petulância de Irene, Maria perdeu a paciência.
    _ Olha aqui, senhora... Não sei quem a senhora é, nem de onde veio. O meu filho é "especial", e não "aleijado"... E se Deus me confiou ele assim, é porque sabe que sou capaz de cuidar dele!
    _ Mas Deus poderia ter te dado um filho normal, e não aleijado! Assim, tu estaria vivendo com teu marido, com comida farta e cama quentinha...
    _ Minha senhora... Nunca mais use esse termo pra se referir ao Ângelo! Outra coisa... Separar e vender reciclados não é "viver do lixo"! Se todas as mães fizessem sua parte, lutassem pelos seus filhos como eu tô lutando, o mundo seria melhor!
    Irene fez menção de ir embora.
    _ Eu vou sair desse lugar horrível! Deve ter até sarna e pulgas aqui!
    Maria já não escutava as asneiras da mulher. Arrumou a cama improvisada com papelão, pegou o pequeno Ângelo e deitou-se, abraçada ao filho. Irene ficou olhando a cena, disfarçadamente. Reparou que a rua estava escura e deserta, e optou por improvisar uma cama ali mesmo, com papelão. Parecia-lhe que mal tinha pegado no sono, quando a voz doce de Maria chamava o filho.
    _ Vamos, meu amor... Se a gente for cedinho até o lixão, vamos pegar as primeiras cargas de lixo, e catar bastante recicláveis pra vender pra comprar comida.
    Irene olhou ao redor...
    _ Vocês não vão tomar café primeiro? Eu tô com fome!
    _ Pois o que nós chamamos de  "nosso café", vai ser comprado depois de catar e vender recicláveis... A senhora acha que isso aqui é hotel? Se a senhora quiser comer alguma coisa, vai ter que trabalhar!
    _ Trabalhar? Eu? No lixão? Nunquinha!
    _ Pois a escolha é da senhora... Eu consigo comprar comida pra mim e pro meu filho todos os dias, graças ao lixo. Agora, se a senhora quiser passar fome ou comer, a escolha é tua!
    Irene sentiu o estômago roncando... Como Maria explicou que teria que fazer o recolhimento e venda de sucatas para ter dinheiro, resolveu:
    _ E... Onde é esse lugar onde dá pra pegar o lixo pra vender?
    _ Se tu quiser trabalhar... Eu mostro onde é o lixão, mas o recolhimento e a venda do que tu achar é por tua conta!
Eu tenho a responsabilidade de cuidar e arrumar comida pro meu filho, e não a senhora, que acabou de chegar e já me sentou as patas!
    _ Eu tô com fome... E não tenho mais cigarros... Tenho que arrumar dinheiro.
    _ Então, mãos à obra! E vai tirando esses sapatos de salto e calçar essas galochas, porque tu vai atolar no lixão!
    Irene olhou para as galochas com desdém.
    _ Galochas? Eu?
    _ É pegar ou largar! Eu e o Ângelo tamo indo!
    Irene seguiu Maria e o filho até o lixão. Afinal, não tinha mais dinheiro, e no momento, a única maneira de ganhar alguns trocados era a coleta e venda de recicláveis.
    _ As caçambas de lixo ainda não chegaram. Estamos com sorte hoje!
    Assim que chegou a primeira caçamba com o lixo recolhido na cidade, Maria deixou o pequeno Ângelo sob a sombra de uma árvore próxima, apressando-se para fazer a seleção dos materiais recicláveis ali depositados... Irene ficou olhando com nojo.
    _ Eu não vou botar as minhas lindas mãos nesse lixo! Deus me livre!
    _ Não fale no nome de Deus em vão, senhora... E se quiser comer ou ter algum dinheiro, vai botar suas mãozinhas lindas de dondoca no lixo, sim! É isso ou morrer de fome! Escolhe!
    Após o comentário ríspido de Maria, Irene passou a separar os recicláveis que encontrava. Quando chegou a segunda caçamba de lixo, as duas mulheres já tinham separado quase toda sucata a ser reaproveitada.
    _ Hoje tivemos sorte! Não vieram outras pessoas ainda, pra disputar a sucata!
    _ Tem mais gente que vive do lixo?
    _ Tem... São famílias inteiras que sobrevivem com a venda de recicláveis. Quando não precisam disputar o lixão com a invasão de urubus.
    _ Urubus?
    Um lampejo fez Irene lembrar do pesadelo que tivera ao parder o bebê.
    

                         *

    _Ainda bem que tenho amigos, Teresinha. O Alceu e o Arnaldo estão se revezando pra fazer as entregas da padaria.
    _Se o Juvenal ainda pudesse dirigir, a gente daria um jeito pra comprar um carro e ele poderia fazer as entregas.
    _ Quando o Alceu tá trabalhando lá no Antônio, o Arnaldo leva.
    _ Falando no Alceu... A esposa dele tá acamada... Quase perdeu os nenês...
    Tina inclinou-se diante do forno, para conferir as bolachas. Ao erguer-se, teve que segurar-se em uma parede próxima, para não cair.
    _ O que aconteceu, Tina? Não tá se sentindo bem?
    _ Uma tonteira danada quase me derrubou! Acho que baixou a pressão...
    _ Mmmm... Já sentiu isso antes?
    _ Só quando eu tava grávida das manas... E...  Aquele dia no hospital... Quando o Claudio...
    Tina calou-se, ao lembrar daquele fatídico dia...
    _ E não te passa pela cabeça de tu tá grávida também?
    _ Eu? Grávida? Impossível... Minhas regras estão descendo todos os meses, normal...
    _ Isso não quer dizer nada, Tina. Na gravidez do Francisco, minhas regras desceram nos primeiros meses também. Só descobri que eu tava grávida quando começou a crescer minha barriga. Procura um médico e faz um exame... Se estiver, vai ter que te cuidar... E vai ser a lembrança mais bonita que Claudio deixou pra ti!
    Diante das palavras de Teresinha, Tina preocupou-se:
    _ Mas... Se eu estiver, como vou fazer sem o Claudio? A padaria e tudo o mais?
    Teresinha olhou carinhosamente para a patroa:
    _ E pra que tu acha que tu tem amigos? Ter um filho não é problema... É uma benção!
    Tina lembrou-se dos dois estranhos apertos de mão que Claudio dera em Alceu... Em seguida, havia dado um aperto semelhante na mão dela...
    _ Vou pedir pro Alceu, quando ele for fazer as entregas da padaria amanhã, pra ele tentar marcar consulta pra mim. Se Claudio realmente deixou essa benção pra mim, tenho que cuidar bem dela.
    No dia seguinte, ao voltar das entregas da padaria, Alceu entregou o comprovante de consulta.
    _ Como o médico me conhece, eu consegui marcar pra amanhã. Expliquei a tua situação e os sintomas... Assim, quanto mais cedo souber o resultado, melhor vai ser!

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora