O arrumador de ossos

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      Ao passar na casa de Tina, Arnaldo mostrou-se apreensivo:
     _ Amanhã o Miguel vai ter alta, mas não sei como vamos fazer. Ele não conseguiu fazer a cirurgia ainda, e não deve caminhar...  E o pior ainda, que ele não vai conseguir ir na escola...
    _ Pois as manas podem passar as atividades pra ele fazer em casa. Assim, ele não perde o conteúdo...
    _ Mas as meninas precisam te ajudar... Tu precisa delas.
    _ Olha, Arnaldo... Tu já me quebrou tanto galho, que somos nós que estamos devendo essa ajuda pra ti!
    _ Mas vocês já me ajudaram tanto quando a Irene nos abandonou!
    _ Isso é passado! Bem que se faz a alguém, é Deus quem paga! Não se cobra nunca!
    _ Tá... E as faltas do Miguel na escola? Será que ele não vai repetir de ano, por falta?
    _ Falta um mês pra terminar o ano letivo... Como eu sei que ele sempre foi assiduo, não vai fazer falta... Mas vai e pede um atestado médico pra levar pra escola.  Pra tudo tem um jeito... Na escola vão entender...
    _ Tu não existe, Tina! Ainda bem que Deus colocou a gente no mesmo caminho!
    _ Pois eu digo o mesmo, Arnaldo... E Deus sabe exatamente o que faz... Mas fica tranquilo, Arnaldo ... As manas podem levar a lição pro Miguel, ma tua casa. Ou o Miguel pode até ficar aqui em casa, até recuperar todos os conteúdos que ele perdeu nos dias que esteve no hospital.
    _ Mas só até que ele recuperou os conteúdos... Não posso ficar sem meu guri por perto por muito tempo... Somos só nós dois!
    _ Pois venha aqui quando tiver saudades dele, Arnaldo!
    _ Mas não fica bem... As pessoas vão falar...
    _ Pois essas pessoas que falem o que queiram! Elas não entendem os preceitos de Deus, que pede que nos ajudemos uns aos outros...
    _ Elas vão interpretar mal, e tu pode ficar mal falada...
    _ Pois eu não devo explicação pra eles... Só pra Deus e pro Claudio, que tá sempre presente em nossas vidas, mesmo depois de ter falecido... O Claudio faria o mesmo por vocês!
    _ Eu tenho que ir, Tina. Vou ter que procurar uma cadeira de rodas pra alugar... O Miguel tá proibido de caminhar antes da cirurgia... E já avisaram que essa cirurgia vai demorar, porque as filas do SUS estão enormes...
    _ As manas podem ir um dia ou dois lá na tua casa, depois, quando ele estiver um pouco melhor, ele vem pra cá... Mas tu já pensou em levar o Miguel até um massagista? Conheço um que é conhecido como "arrumador de ossos"...
    Arnaldo olhou para Tina com esperança.
    _  Sabe que não é má ideia? Me dá o nome e o endereço dele... Levo o Miguel lá, assim que ele sair do hospital!
    _ Ótima ideia! Assim ele não corre o risco de ficar na cadeira de rodas por meses... Só até pararem as dores... Depois, devagarinho, ele volta a caminhar. Vai ter as férias inteiras pra isso!
    _  Mais uma vez... Não sei como te agradecer, Tina... O Miguel é a única coisa que ainda me mantém firme!
    _ Pois mais uma vez te digo: "Agradeça somente a Deus, que colocou a gente no mesmo caminho!"
    Naquele dia, Arnaldo chegou em casa sentindo que tinha uma luz no final do túnel... Sentiu claramente que Deus permitia que encontrasse maneiras de encontrar a luz.
    Na manhã seguinte, na recepção do hospital Bom Pastor, Arnaldo aguardava a alta de Miguel. O coração saltou quando a voz impessoal anunciou:
    _ Responsável pelo paciente Miguel Beckmann...
    _ Eu mesmo! Miguel é meu filho!
    _Por aqui, Sr... O médico que atendeu seu filho vai lhe dar algumas instruções!
    Arnaldo seguiu a enfermeira até o quarto de Miguel. O médico repetiu as recomendações:
    _ Aqui estão os encaminhamentos pra cirurgia, as receitas e o atestado médico, pra levar pra escola.  A princípio, guardar leito e nada de caminhar, pois o deslocamento do quadril foi severo.
    Arnaldo ouvia o médico falar, mas seu pensamento estava em Tina, e no que ela falara sobre o "arrumador de ossos"...
    _ Tá certo, Dr. Vou encaminhar logo!
    _ Mas já vou lhe avisar que a fila do SUS está grande... Pode dar até um ano, ou dois... Caso der algum problema maior, traga-o no plantão...
    Arnaldo colocou Miguel no banco traseiro do carro.
    _ Pronto, filhão! Se doer muito, me avisa, que venho te ajudar a mudar de posição!
    _ Pode deixar, paí... Sou forte como um touro!
    _ Até um touro tem seu ponto fraco, Miguel... Se precisar, fala!
    Dessa vez, o caminho de volta do hospital fez Arnaldo sentir que não estava sozinho.
    _ Amanhã vou te levar até um massagista... O médico falou que tua cirurgia demora pra ser feita... A fila do SUS tá grande...
    _  Massagista?
    Arnaldo jamais escondeu nada do filho. A sinceridade sempre fora o marco de partida para um bom relacionamento entre os dois.
    _ Um "arrumador de ossos"...
    _ Agora confundiu tudo, pai... O que é um"arrumador de ossos "?
    Miguel desatou a rir. A gargalhada dele cortou o ar.
    _ Ué, filho... Eu aqui achando que tu tá com dor, e tu desata na risada? O que te deu, guri?
    _ Aaaaaa, paizão... Acho que a minha cachola ainda tá cheia de soro, daquele hospital... Quando o senhor falou"arrumador de ossos", eu imaginei um tio velho e feio, que trabalha no cemitério, e vive abrindo os túmulos, pra ver se os esqueletos tão completos... Pra mim, isso seria um"arrumador de ossos"...
    Foi o momento de Arnaldo cair na gargalhada.
    _ Quanta imaginação, Miguel! Vou explicar: Teu quadril não tá fora do lugar? Esse massagista vai recolocar tudo no seu lugar, sem operar...
    _ Ahh bom... Achei engraçada a profissão de "arrumador de ossos"... Me faz rir, só de imaginar! Imagino se eu tivesse tirado meu queixo do lugar, eu ia ficar todo torto... Assim... 
    Miguel sorriu e fez uma careta:
    _ Bom te ver sorrir de novo! Sinal que tá feliz...
    _ E como posso não tá feliz? Vou ter as melhores professoras do mundo de novo pra mim! As manas explicam a matéria melhor que a professora! Papai do Céu é maravilhoso por me dar amigas que nem as manas...
    Arnaldo sentiu sinceridade nas palavras simples de Miguel.
    _ Que maravilha, que esses amigos te fazem se sentir tão bem!
    _ Bem? A gente é como se fosse irmãos!
    _ Meu filho... Vocês estão cumprindo a lei de Deus! Deus quer que vivamos como irmãos...
    _Ô, pai... Só falta uma coisa... Seria perfeito se a mana estivesse aqui com a gente...  Eu, as manas, o Chico... E a maninha...
    Arnaldo calou-se por um longo tempo. Sentiu mais uma vez o peito doer. Mais uma vez os olhos encheram-se de lágrimas. A saudade que sentia da filha já não cabia em seu coração.
    _ Tamo chegando... Amanhã mesmo vou te levar no massagista...
    Miguel piscou para o pai:
    _ Já sei, pai... O "arrumador de ossos"... Será que vai doer? Meu esqueleto aqui dentro tá meio bagunçado!
    _ Olha, filho... Acredito que vá doer, sim... Mas é melhor arrumar logo, do que ficar meses com dor, "guardando leito", como diz o Dr. O médico já falou que a fila tá grande!
    Miguel olhou para o pai, sorrindo:
    _E lá vem o senhor de novo com essas palavras complicadas, pai... O que é "guardar leito"?
    _ É ficar de cama, por algum motivo de doença... É uma expressão que os médicos usam pra "falar bonito"!
    _ E eu não quero ficar muito tempo na cama, não! Pra mim, cama é só pra dormir!
    Arnaldo levou Miguel até o interior da casa.
    _ Por enquanto, precisa ficar na cama, sim... Depois que eu te levar no massagista, vamos ver se alugo um par de muletas pra ti voltar a caminhar...
    _ Obbba! Vou ser o pirata, das pernas de pau, de novo...
    Mais uma vez, um aperto atravessou o peito de Arnaldo... A lembrança da queda da árvore que Miguel sofrera a 5 anos atrás parecia tão recente.
    _ Então, meu pirata favorito... Como é mesmo que teus amigos te chamam? Ahhhh, sim... Pirata Mig... O que vamos fazer de almoço hoje? Vamos fritar um tubarão, ou um jundiá serve?
    Miguel sorriu:
    _ Bom, pai... Se é pelo tamanho da minha fome, o senhor precisa ir pescar um tubarão...
    _ Ok, marujo! Tu fica quietinho aqui, no barco, que o capitão aqui vai tentar pescar um tubarão...
    _ Se achar um, pai... Tubarão não vive em açude!
    Arnaldo pôs a mão na cabeça:
    _ Aaaaaa... É mesmo! O capitão aqui tá ficando velho, e não lembra mais das coisas... Fica de olho no barco, marujo, que vou ver se consigo umas minhocas pra pescar um jundiá!
    _ Mmmm... Esse jundiá vai me dar coragem pra enfrentar o "velho arrumador de esqueleto", amanhã!
    Arnaldo piscou para Miguel:
    _ É essa a intenção, pirata Mig!
    A pescaria fez Arnaldo refletir sobre tudo que estava ocorrendo. Juvenal pedira demissão da rádio, para ajudar no sítio... A bebezinha de Teresinha nascera... O nascimento de Claudino... O incêndio... A nova lesão de Miguel...  A saudade de Mary... Olhou o céu com melancolia:
    _ Deus... Sei que são muitas provações... Permita que um dia tudo se encaixe, conforme a tua vontade...
    Após meia hora, Arnaldo entrou em casa feliz:
    _ Olha, pirata Mig... Consegui pegar dois tubarões! Um pra ti e um pra mim! Agora, a pior parte da pescaria: limpar, temperar e fritar!
    _ Eu até ia te ajudar, pai, mas...
    _ Sem cogitação, pirata Mig! Um tubarão já te deixou de cama... Agora, chegou a hora do capitão aqui se vingar! Vamo botar ele na panela!
    _ Iebbbba!
    _ Depois, de tarde, as meninas vêm aqui, pra te passar a matéria da escola que tu perdeu enquanto tava no hospital. Assim, tu não fica atrasado...
    _ Podemos... Fazer pipoca enquanto estudamos? As manas sabem fazer uma pipoca deliciosa!
    _ Ok, marujo! No almoço, tubarão... No lanche, pipocas! E amanhã, massagista!
    _ Corrigindo! "Arrumador de ossos"!
    O dia seguinte exigiu muita coragem de Miguel e de Arnaldo. De Miguel, porque a sessão de massagem para recolocar o fêmur no encaixe gerou muita dor... De Arnaldo, por ver o filho chorar de dor...
    _ Por hoje chega, campeão! Vamos fazer o encaixe aos pouquinhos, senão a dor vai ser muito forte! Vamos marcar pra vocês voltarem em uma semana, assim não vai ser tão dolorido!
    _ Melhor que esperar um ano ou dois, com dor...
    _ Com certeza, Sr Arnaldo! Em umas três a quatro sessões ele vai conseguir usar muletas e começar a dar os primeiros passos!
    _ Deus te ouça, amigo! Deus te ouça!
   
   

    

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora