Cinco anos passaram-se. Arnaldo e Miguel chegaram ao ponto onde o ônibus militar aguardava os novos recrutas para uma longa jornada até o quartel de Santa Maria.
_ Pai... Promete que vai se cuidar? Vou ligar de vez em quando, agora que tem um telefone comunitário instalado na Serra Grande. Só ligar pra lá e pedir pelo nosso ramal...
Arnaldo bateu suavemente no ombro de Miguel:
_ Filho... Tu vai é cumprir as ordens dos teus superiores lá do quartel a partir de hoje! Tu sabe que teu velho aqui se vira muito bem sozinho!
_ Mas eu tô preocupado, que o senhor vai ficar sozinho... Aquela dor que o senhor tava sentindo no outro dia pode ser um problema sério! Vai se matar trabalhando pra dar conta de tudo...
_ Não vai ser uma dorzinha chata no estômago que vai me matar, meu guri... Ademais, o Chico e o Juvenal tão sempre lá em casa. Posso pedir uma mãozinha pra eles!
_ Deveria ter se declarado pra tia Tina. Aí sim, eu sairia tranquilo... Ela iria cuidar bem do senhor... Ela sempre cuidou bem de mim.
_ A Tina tem o sítio, a padaria e o guri dela pra cuidar. Ela não teria obrigação de cuidar de mais um capenga como eu!
_ Mas o Juvenal, a tia Teresinha, as manas e o Chico também ajudam muito ela. Sei que o senhor seria muito feliz com ela.
_ Tu sabe que, oficialmente, eu não sou um homem livre, e que tua mãe pode voltar e fazer a Tina sofrer com as maldades dela... E eu jamais iria querer ver a Tina sofrer... Por isso, prefiro nem me declarar pra Tina.
_ Pai... Já se passaram tantos anos... A mãe não volta mais... Além do mais, assim o senhor não iria ficar sozinho...
_ Filho... Se estiver nos planos de Deus, da gente ficar juntos um dia, eu vou ficar muito feliz. Mas sem ter certeza do paradeiro da tua mãe, não vou arriscar.
_ Pai... Eu acho que Deus, quando traçou teu destino, esqueceu de colocar a data do senhor e da tia Tina ficar juntos! A gente nota de longe que vocês foram feitos um pro outro.
_ Tudo tem sua hora, filho.
_ Não vai ser fácil o senhor viver sozinho... Vai ter que fazer tudo... Não vou tá mais aqui pra cozinhar pra nós.
Arnaldo sorriu.
_ O quartel vai precisar de um cozinheiro de mão cheia... Além do mais, não vou estar sozinho. Tenho Deus comigo sempre!
Miguel parecia irredutível...
_ Era só o senhor ter tido coragem...
_ Tu também não teve coragem de se declarar pra Sueli...
Miguel rebateu:
_ Mas pai... Quando eu pensei que tivesse criado coragem pra falar com ela, aí ela mudou daqui... Pena...
_ Eu soube... Mas ao menos sabe-se por que se mudaram?
_ Eu só soube que veio um caça talentos no esporte que levou a Sueli e a família dela pra São Paulo, pra jogar vôlei com a equipe mirim do Colégio Bandeirantes. Lembra que a Sueli arrebentava no vôlei?
_ Lembro.
Miguel olhou para o horizonte.
_ Quem sabe, um dia a Sueli não vai ser jogadora da seleção brasileira de vôlei?
Arnaldo sorriu.
_Resumindo... Ela foi embora, aí o teu barquinho do amor afundou!
Miguel fez um muxoxo para Arnaldo.
_ Fiquei triste, sim... Mas o senhor já me provou que quando a gente gosta de uma pessoa, quer a felicidade dela... E foi o que eu fiz! Se estiver nos planos de Deus...
Arnaldo interrompeu:
_ Sei... Talvez um dia vão se encontrar de novo...
_E se não estiver...
Miguel parou a frase e bateu suavemente no ombro do pai.
_ Tudo bem... Tem tanta guria legal por aqui! Quem sabe...
_ Epa, epa, epa! Quer dizer que já tá vendo novos horizontes!
_ Novos horizontes? Lá vem o senhor com suas palavras difíceis!
_ Eu só tô dizendo que tu aprendeu que não precisa ter pressa e sair atropelando todas as gurias por aí... O mais importante, agora, é confiar em Deus e cumprir tua missão!
_ Mas claro, pai! Depois de tudo que já passamos, tá mais do que provado que "Deus deixa escorregar, mas não deixa cair"!
Arnaldo segurou o ombro do filho com firmeza, apontando para o ponto de ônibus dos novos recrutas.
_ Chegou a hora de separar o joio do trigo, meu guri! Vai e faz o teu melhor! Faça a diferença!
_ Pai... O senhor ainda vai ter muito orgulho de mim!
_ E não te esquece do mais importante... Aconteça o que acontecer... Sempre confie em Deus, acima de qualquer coisa!
_ Até qualquer dia, pai... Se cuida, tá?
_ Vai, marujo! Novos mares aguardam o teu barco! Vai com Deus!
Os olhos de Arnaldo encheram-se de lágrimas, ao ver Miguel entrando no ônibus rumo ao quartel de Santa Maria.. O breve e melancólico aceno marcou a despedida de uma convivência que Arnaldo sabia que jamais voltaria. Olhou para o céu...
_ Deus... Fiz o meu melhor pra cuidar desse guri... Agora, é com o Senhor!
O retorno do trajeto de Sapiranga a Igrejinha levou Arnaldo a um turbilhão de lembranças... A partida de Irene, levando Mary... A descoberta do diabetes do Miguel... O acidente no açude... As pescarias do filho com as manas... O carinho que Tina dispensava a Miguel... Um estranho torpor fez Arnaldo parar no acostamento...
_ Mas o que tá acontecendo comigo, meu Deus? Parece que tô fervendo feito radiador! E essa dorzinha no estômago de novo...
Arnaldo pousou a cabeça sobre o volante.
_ Parece que eu comi pedras no almoço! Meu Deus... Me ajuda!
Suando frio, a dor fez Arnaldo encolher-se, comprimindo a região abdominal com ambas as mãos.
_ Meu Deus... Me ajuda... Deus, me ajuda...
Ainda com o suor escorrendo pelo rosto, Arnaldo sentiu a dor aumentando. Com as pernas trêmulas, saiu do carro.
_ Algum problema, senhor?
Arnaldo não havia reparado na chegada da viatura do policiamento rodoviário. Ainda pálido pela dor, com a mão comprimindo o estômago, respondeu:
_ Uma dor desgraçada no estômago que quase me mata... Tive que parar, ou poderia causar um acidente...
_ O senhor fez bem. Pode me mostrar os documentos, por favor? Os seus e os do veículo.
Após conferir a documentação do carro e de Arnaldo...
_ Tudo em ordem com a documentação. Posso dar uma olhada rápida no seu veículo?
_ Claro.
Minutos depois...
_ Parece que está tudo certo com o carro também, seu Arnaldo! Está indo pra onde?
_ Eu tô voltando pra casa. Fui levar meu filho pra pegar o ônibus dos novos recrutas para o quartel de Santa Maria.
O policial sorriu.
_O senhor criou um futuro colaborador da ordem do nosso país? Parabéns!
_ Obrigado, senhor. Só cumpri meu dever de pai... A mãe dele abandonou ele quando ele tinha só sete anos...
O olhar de admiração do policial rodoviário parecia encontrar uma solução para a situação de Arnaldo.
_ Não poderá conduzir o veículo nesse estado, senhor. Vou escoltá-lo agora mesmo até uma Unidade de Pronto Atendimento... Assim, vai descobrir o que tá te assolando o estômago!
_ Mas senhor... Eu já tô melhorando...
_ Não se esqueça que sou responsável por manter a segurança do trânsito. Isso inclui os condutores de veículos também. Caso o senhor não possa dirigir, vou levá-lo na viatura até a UPA.
_ Tudo bem, senhor... Acho que consigo dirigir, sim.
_ Vou acompanhar o senhor ao atendimento na UPA, assim o senhor será atendido logo, com exames e tudo, caso seja necessário! Tudo será agilizado, pois terei que voltar ao meu posto em seguida.
Prontamente atendido, após uma série de exames, Arnaldo recebeu o resultado:
_ Senhor Arnaldo Engelmann... O senhor tem uma severa inflamação na vesícula biliar. Sem contar, dezenas de cálculos. Vou encaminhar o senhor com urgência para fazer uma cirurgia para extirpar a vesícula biliar, ou pode até ir a óbito.
Arnaldo olhou com desespero para o médico, depois, para o policial rodoviário. Sentia-se como se estivesse em um beco sem saída. O policial brincou:
_ Então, senhor Arnaldo... Livrou-se de um acidente de trânsito e vai cair no bisturi de um gastroenterologista?
_ Eu não esperava isso, meu Deus... Eu não poderia fazer nenhuma cirurgia... Logo agora que o Miguel...
_ Meu amigo... Pra fazer um bom bolo, temos que ter coragem de quebrar os ovos! Vai em frente... Marca tua cirurgia e faz! Ou quando teu filho voltar de férias do quartel, vai visitar o senhor no cemitério!
VOCÊ ESTÁ LENDO
INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...