Lenice e Lenir sentiam o coração em pandarecos. Ainda custava acreditar que não poderiam nunca mais brincar com a Pitanga. Lenice estava desconsolada:
_ Não vai ter outra vaquinha tão mansinha como ela. Parecia até que ela gostava quando a gente brincava com ela. Ela chegava pertinho, toda querida, quando brincávamos no potreiro. Quando o pai montava o Canela, a gente montava a Pitanga!
Lenir logo pensou no amigo.
_ O Mig é que vai ficar triste...
A frase de Lenir foi entrecortada por soluços da menina. Claudio, cevando um mate com a esposa na cozinha, ouvia a conversa das meninas.
_ Tina... Ouviu as manas? Elas estão desconsoláveis!
_ Vocês não vão buscar o Juvenal e o Miguel lá em Caxias? Levem elas junto! Terá lugar na caminhonete e elas vão esquecer um pouco a tristeza da perda da Pitanga, pelo menos por algumas horas.
Claudio olhou com ternura para Tina:
_ É por isso que te amo, minha fada... Tu sempre é a âncora que segura o barco onde estamos nos momentos de turbulência.
Com carinho, Tina roçou as costas da mão no rosto de Claudio, olhando fundo nos olhos dele.
_ É o amor verdadeiro, meu guri! E essa âncora vai segurar nosso barco enquanto o bondoso Deus permitir!
Cada momento, cada gesto, cada beijo, parecia renovar o amor de Claudio e Tina.
_ Amo tu, minha guria!
Claudio adentrou o quarto das filhas, tentando disfarçar o sentimento de tristeza que tomara conta deles daquele dia.
_ E aí? Quem vai comigo e o Arnaldo buscar o Miguel e o Juvenal? Assim vocês podem conhecer a família do Juvenal! E na volta, vocês poderão olhar as lâmpadas de iluminação pública da beira do asfalto.
Os rostinhos das duas crianças se iluminaram quase que imediatamente:
_ Eeeeebbbbba!!! Eu conto as luzes do lado direito e a Lenir as do lado esquerdo!
Lenir olhou para a irmã e resmungou, fazendo beicinho:
_ Só porque tu nasceu meia hora antes que eu, tu sempre escolhe, né?
_ Então, se quiserem ir junto, vão colocar uma roupa mais grossa, porque no outono esfria muito durante a noite. Vamos voltar quando estiver mais friozinho. Arnaldo e eu queremos conversar com o Juvenal e a esposa juntos, pois temos uma proposta pra eles, que devem tomar a decisão juntos. Não cabe a nós dividir um casal, e sim, unir!
Claudio, Arnaldo e as gêmeas... O caminho para Caxias mais parecia ser o caminho de um funeral. Enfim, chegando ao destino, semblantes tristes e olhos marejados assustaram Juvenal:
_ Santo Deus, meus amigos! Que caras de enterro são essas? Morreu alguém?
Claudio e Arnaldo se entreolharam, depois olharam para as gêmeas.
_ Infelizmente... Sim.
Juvenal ficou sério de repente:
_ Desculpa a brincadeira... Eu não imaginava... Se aprocheguem e contem o ocorrido!
Em circunstâncias normais, as meninas entrariam correndo porta adentro, ao encontro de Miguel. Porém, elas se limitaram a um olhar cabisbaixo. Pareciam em transe. Miguel notou a tristeza estampada nos olhos das manas e já sabia que era algo sério e não seria o momento para fazer brincadeiras. Sua maturidade, apesar da pouca idade, era surpreendente:
_ Vem aqui, Francisco. Quero que conheça "as manas"... Minhas melhores amigas!
Francisco fixou os olhos incrédulos nas duas meninas à sua frente. Olhou para Lenir, e em seguida ficou observando Lenice em silêncio, como se quisesse ler seus pensamentos...
_Elas estão tristes porque alguém morreu, né, tio?
Claudio e Arnaldo entreolharam-se, em silêncio. Em seguida, Claudio com a voz embargada, coloca mão no ombro de Francisco.
_Infelizmente, sim. Juvenal sentiu a seriedade do momento e apressou-se em desviar o assunto:
_ Vamos cevar um mate antes da viagem. Assim conversamos mais com Teresinha. Ela ainda não decidiu se concorda em morar na região metropolitana.
Teresinha, que estava à espera do marido e dos amigos na cozinha, esperou que as crianças saíssem.
_ Decidi sim. E posso dar minha resposta agora mesmo!
A firmeza com que falou a frase chegou a assustar Juvenal, pois no dia anterior a esposa ainda estava indecisa sobre o convite de Claudio e da esposa..
_Pois então, minha prenda! Fale!
Teresinha mostrou firmeza na voz:
_Eu e as crianças ficaremos aqui.
Até aquele momento, Juvenal acreditava que teresinha o acompanharia com as crianças, em função de uma condição melhor para seu tratamento de adaptação à prótese da perna amputada. Encarou Teresinha, surpreso.
_ O que te fez tomar essa decisão?
_ Olha... Pra falar a verdade... Prefiro não falar o motivo.
Juvenal mostrou-se confuso sobre a decisão da esposa. Já não queria mais ficar longe dela e dos filhos, mas diante da resposta firme de Teresinha, decidiu:
_ Então, eu vou parar com as sessões de fisioterapia e venho pra cá. Não consigo viver longe de ti, minha prenda...
_ Não! Não deve parar com a fisioterapia! Acho que é coisa minha mesmo... Tô com medo, pelos meninos...
Os três homens se entreolharam, sem compreender. Teresinha continuou:
É por causa do Francisco e do Alessandro... O Juvenal falou que era pata o Francisco fazer par de dança gaúcha com uma menina branca. A dança gaúcha foi inventada pelos portugueses, que escravizaram nossos antepassados. Não quero que meu filho pratique uma dança de brancos. Logo, estaremos voltando no tempo e...
Teresinha interrompeu a frase e olhou no rosto de Claudio, baixando o semblante em seguida. Claudio compreendeu o sentido da frase interrompida.
_ Minha esposa Tina quer contratar a senhora com carteira assinada... Para nós, tudo será conforme a lei exige. Tudo legalizado...
_ Mesmo assim... Nós nunca tínhamos planejado de morar na casa de brancos. Nossos costumes são outros... Ademais... Tem os meninos. Eles já sofrem racismo aqui, que dirá numa região onde só tem brancos.
Juvenal não compreendia o medo de Teresinha...
_ Mas tu acha que eles teriam me salvado do acidente se fossem racistas? E tu mesma disse que a melhor amiga do Francisco é branca.
_ A Mary não tem nada a ver com isso! Ela é daqui. Sinto que ela realmente sente um carinho sincero e verdadeiro pelo Francisco.
Arnaldo, que até então permanecia calado, ao ouvir o nome da filha, ergueu-se de um salto da cadeira.
_ Como... Como falou que se chama a melhor amiga do Francisco?
Arnaldo estava branco... Tremendo da cabeça aos pés. Parecia que o sangue fugira de suas veias. Teresinha olhou Arnaldo com preocupação:
_O que há com o senhor? Sente-se mal?
_ Mary... Minha filha...
_ Sua filha também se chama Mary? Não é um nome muito usado... A menina que tá ajudando o Francisco na escola se chama Mary... Ela é um amor de guria! Ela realmente ajuda o Francisco em muita coisa...
Arnaldo aperta os olhos, em um gesto pensativo:
_ Lembro que um dia estivemos na escola onde a senhora trabalha. Vi ao longe Francisco conversar com um menino que era a cara da minha amada Mary...
Teresinha ficou séria.
_ A única criança da escola que conversa com Francisco é Mary. Uma menina que tinha um cabelão comprido, sempre preso em longas tranças... Ela veio transferida não sei de onde... Pena que...
Arnaldo sentiu um arrepio...
_ "Pena que", o que?
Teresinha baixou o olhar tristemente, ao lembrar das diversas vezes que encontrou Mary chorando.
_ Mary, de longe, parece mesmo um guri, com aquele cabelo cortadinho rente. Pelo que sei, alguém tentou machucar ela, cortando as lindas tranças compridas que ela tinha.
Àquelas alturas da conversa, Arnaldo já sentia o coração querer sair do peito e abraçar a filha que tanto amava.
_ Ela tinha cabelo comprido e fazia tranças? É a minha Mary! Eu sei! Eu sinto!!! Onde ela mora? Como ela tá?
Teresinha ficou paralisada diante da revelação de Arnaldo. Estava a ponto de falar que sabia que Mary não era uma criança feliz e que aparentava sofrer muito, mas Miguel e Francisco adentraram correndo na cozinha...
_ Já peguei as manas no pega-pega!!! Só falta tu, Chico!
Arnaldo ergueu a mão bem à frente de Miguel.
_ Opa, opa, opa!!! Correr aqui na cozinha não!!! Pega-pega é brincadeira de pátio! E que negócio é esse de dar apelido para os outros? Pelo que sei, o nome dele é Francisco...
_ Mas pai... A gente tava brincando de pega-pega paralítico... Só falta eu pegar o Chico!
Arnaldo olhou sério para Miguel, segurando seu braço:
_ Migueeeel!!!
Miguel parou a frase para respirar:
_ Pai! O nome dele é muito comprido! Aí, a Lenice achou que Chico era mais fácil falar...
_ Ahhhh! Então por preguiça de falar o nome inteiro de um guri, tem que dar apelido pra ele?
Miguel, na inocência, tentou justificar:
_ Ô, pai! Elas me deram o apelido de Mig e eu gostei! Agora deram o apelido de Chico pro Francisco... E ele gostou! Falou que agora se sente igualzinho a nós!
Miguel parecia mais uma locomotiva ao falar, tamanha a pressa para explicar o motivo de dar apelido ao amigo e continuar correndo atrás dele.
Arnaldo pôs a mão no queixo, pensativo:
_ Faz sentido... Inclusão... Todos se sentem iguais...
Teresinha interveio:
_Perdão, seu Arnaldo... Mas posso dizer que na escola todos deixam o Francisco "de lado", e evitam brincar com ele, por ele ser diferente... Ou talvez por ele ser... De cor...
Teresinha demonstrava tristeza pelo fato de sempre ver o filho sendo excluído das brincadeiras pela sua condição"de ser diferente"...
_ Perdão, dona Teresinha! Mas vivo dizendo pro Miguel não correr dentro de casa e não dar apelidos às pessoas.
A resposta de Teresinha foi mansa, tranquila:
_ Quanto a isso, não se preocupe, seu Arnaldo. Nossa casa é simples e não tem muito que quebrar!
Arnaldo respirou fundo:
_ Podem brincar, então... Mas devagar... Deixem a casa inteira!
Miguel saiu em disparada... Arnaldo voltou ao assunto anterior, em tom mais sério ainda:
_ Mas me diga, dona Teresinha! Fale-me de Mary!
_ Pois não, seu Arnaldo! Como eu dizia... Mary era a única criança que demonstrava ter amizade sincera com o Francisco. Mas ultimamente ela andou tendo alguns probleminhas, acho... Andou faltando aula...
_ Probleminhas? Minha filha... Doente?
_ Não sei... Um certo dia até esqueceram de buscar ela na escola...
Arnaldo aparentava ainda não acreditar no que Teresinha revelara. Juvenal e Claudio, ali presentes, também custavam a crer que a melhor amiga do Francisco era a filha que Arnaldo tanto procurava. Claudio ergueu-se da cadeira:
_ Precisamos voltar, dona Teresinha! Peço que realmente pense na proposta da minha esposa. Temos uma casa à disposição, emprego com carteira assinada pra senhora, e seu marido estará mais acessível aos tratamentos e terapias médicas.
Teresinha ficou em silêncio... Olhou para Juvenal e com a voz firme respondeu:
_ Eu tenho que pensar nos nossos filhos... Eles não podem entrar em outra cultura. Seria contra meus princípios.
Juvenal, que até então tinha ficado em silêncio, expôs sua opinião:
_ Olha, Teresinha... Acho bonito que tu proteja nossos filhos do mundo, mas eles fazem parte do mundo, e um dia não estaremos aqui pra proteger eles... Pense bem...
_ Eu e os meninos estamos bem aqui... Nada nem ninguém vai me tirar daqui, pra viver numa casa de brancos. Não vou deixar meus filhos frequentar uma cultura de brancos, que no passado escravizaram nosso povo!
_ Essa "casa de brancos"me acolheu quando o hospital me deu alta. Esse"povo branco"me tirou debaixo daquela árvore, quando o temporal quase me matou...
Àquelas alturas, Juvenal, já com lágrimas nos olhos, não sabia mais o que argumentar... Teresinha permanecia irredutível:
_ Eles cumpriram a ordem de Deus ao te tirar debaixo da árvore! E ao te dar guarida durante o tratamento, já pensaram logo que, pela nossa cor, toda família poderia pagar essa conta. Tenho meu emprego aqui e com direitos trabalhistas e tudo. Que garantia vou ter se eu e os meninos nos aventurarmos numa cidade estranha, numa vida incerta?
Àquelas alturas, Juvenal, cabisbaixo, já não argumentava mais. Claudio sentiu que deveria dar o assunto por encerrado. Decidiu chamar as crianças, que estavam brincando no cômodo ao lado:
_ Miguel! Manas! Vamos levantar âncora? Amanhã é segunda-feira!
As meninas saíram resmungando:
_ Aaaa, paiê!!! Logo agora que o Chico ia mostrar a coleção de bolinhas de gude dele pra gente?!
_ Verdade, pai! Ele tem cada desenho bonito no quarto dele! Eu queria desenhar bonito assim!
Miguel saiu do quarto de Francisco, segurando o caminhãozinho favorito dele.
_ O Chico e eu combinamos que quando a gente crescer, vamos ser caminhoneiros, igual o Sr Juvenal era antes do acidente.
As crianças pareciam não ter freios nas palavras. Estavam eufóricas para contar os planos já traçados por eles. Lenice adiantou:
_ Eu e o Mig vamos fazer par no CTG, e quando a Lenir estiver bem boa do machucado que deu nela, quando caiu do Canela, ela e o Chico vão fazer o par mais bonito do CTG!
O entusiasmo das crianças era tanto que Claudio e Arnaldo não tiveram coragem de falar-lhes que Teresinha e os meninos não iriam se mudar de Caxias. Juvenal sentiu um nó apertar a garganta ao ver que Francisco estava sorridente, abraçado aos novos amigos. Francisco, timidamente, pergunta Juvenal:
_ O Mig e as manas podem brincar mais um pouco, pai?
_ Só até eu arrumar umas coisas que preciso levar. Depois, papai precisa ir. Amanhã tenho treinamento com a prótese no fisiatra.
As quatro crianças sumiram correndo. Arnaldo reclamou:
_ Miguel! O que combinamos? Já aqui!
O menino voltou, torcendo as mãos...
_ O que combinamos sobre"não correr dentro de casa"?
_ Desculpa, pai! Vou beeeem devagarinho agora...
Miguel virou-se lentamente, e saiu andando na direção do quarto de Francisco, imitando um autômato. A brincadeira de Miguel aliviou um pouco a tensão daquele momento.
Juvenal colocou sobre a mesa da cozinha uma caixa, com os objetos que tinha planejado levar. Com o semblante triste, dirigiu-se a Teresinha:
_Pense, minha prenda... Não precisa decidir hoje... Sei que o Alessandro tem mais uma cirurgia pela frente e que tá com gripe. Não deixe fazerem a cirurgia se ele estiver doente ainda. Disseram lá no hospital de Canoas que pode dar problemas sérios.
_ Na última cirurgia deu tudo certo. Nessa também vai ter que dar! Uma gripezinha de nada não vai fazer diferença. E se eles cancelarem essa, tenho que encaminhar tudo de novo!
Juvenal sentiu que a aspereza das palavras de Teresinha ainda refletiam sobre o assunto anterior. Com uma sombra no olhar, acomodou a caixa na caminhonete de Claudio. Colocou a mão no ombro do filho:
_ Chega aqui, Francisco! Cuida bem do teu irmão e da tua mãe. Talvez logo eu volte pra ficar aqui com vocês, direto. Se a mamãe não quiser sair de Caxias, vamos respeitar a escolha dela.
Francisco, timidamente, estendeu o caminhãozinho favorito dele ao pai:
_ Aqui ó, pai! Leva! Pra tu não esquecer de mim... Nem do mano e nem da mamãe!!!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...