Mary toca Miguel

17 0 0
                                    

    _Seus pontos da cirurgia onde foi feita a retirada da pinta, aqui nas suas costas, estão com uma pequena secreção, dona Irene...
    _Deve ser por causa do calor, enfermeira...
    _Não sei, mas creio que você deveria fazer uma avaliação médica.
    _ Não vou fazer nada, não! Aí vão querer me internar de novo naquele hospital, que não tem o luxo que preciso. E vou ter que comer de novo aquela comida que é um lixo!
    _ Só estou alertando, senhora. Pela minha experiência, isso não deveria estar assim.
    _ Pois tu não sabe de nada! Tu não é médica! Eu tô tomando anti-inflamatórios pra não dar problema! E além do mais, o corpo é meu, e vou ao médico quando eu tiver vontade!
    _ Isso é desacato, senhora! Só estou cumprindo meu dever... Nossa profissão consiste em ajudar os médicos a salvar vidas...
    _ Teu dever é calar a boca e fazer meus curativos, enfermeira... Sou rica e meu marido tem influência nesse hospital! Se não me tratar como mereço, tu vai é pro olho da rua!
    A enfermeira calou-se, diante de tamanha estupidez de Irene.
    _Onde já se viu? Eu, uma rica e importante senhora da alta sociedade, tenho que obedecer uma simples serviçal do serviço de saúde! Nunquinha!
    Irene tirou uma carteira de cigarro da bolsa. Ao procurar o isqueiro, uma fisgada cortou-lhe a respiração...
    _Não pode fumar nesse recinto, senhora! É um estabelecimento de saúde.
    _ Pois eu fumo onde e como eu tenho vontade.
    Irene saiu do hospital despejando xingamentos sobre a enfermeira.
    _ Onde já se viu? Ela, uma simples enfermeira,  querendo me dizer o que eu preciso fazer e o que não devo fazer!
    Valderez nem respondeu. Estava tão absorto em seus pensamentos que nem ouviu Irene.
    _ Amanhã, se eu fizer curativos de novo com aquelazinha, vou fazer ela ser demitida... Ô, mulherzinha metida, essa daí!
    Irene já estava ficando impaciente com o silêncio de Valderez...
    _ Tô falando contigo, Valderez! Não me ouviu?
    _ Ouvi, sim. Estamos chegando em casa. O que acha de aproveitar que as crianças estão na escola, e"fazer um programinha extra"?
    _ De novo? Já fizemos ontem. E eu deveria estar no resguardo pós-operatório...
    _ Bahhh! Então tenho que procurar uma"diversão" com umas cinco mulheres da zona... Tô numa vontade... E se tu não quer, lá na esquina tem seis que me querem!
    _ Não tem que trabalhar?
    _ O trabalho vem até mim, mulher! Se alguém precisa da minha mercadoria, me procura!
    Irene sentiu-se acuada diante da ironia de Valderez... Arnaldo jamais usaria de chantagem alguma para ter relações com ela, pois sempre respeitou-a diante de uma negativa.  Resolveu ceder... Afinal, não queria perder a boa vida, o dinheiro, o status de mulher rica e da alta sociedade.
    No horário de saída...
    _ Crianças... Cada um de vocês receberá o parecer de avaliação escolar... O famoso"boletim"... Esse deverá voltar assinado pelo pai ou pela mãe, no início da próxima semana.
    _Putz! Tô de vermelha em matemática! Como vou entregar isso pro meu pai?
    _Não esquenta, Léo! É só pegar um documento do teu véio e copiar o nome dele... Já fiz isso um monte de vezes!
     _ Boa ideia, Lauro! Assim que eu chegar em casa, eu quebro essa!  Vou pegar um dos documentos do meu velho e resolver essa parada!
    No caminho de volta da escola, uma sirene cortou o ar...Um policial rodoviário sinalizou a parada do carro de Valderez.
    _ Mais essa! Hoje eu tô carimbado!
    _ Documentos, por favor! Do veículo e do condutor!
    Valderez pegou a carteira dos documentos no interior do porta-luvas, entregando os documentos solicitados. Após a abordagem, Valderez deu partida no veículo e resmungou em voz baixa...
    _ Que vão se ferrar, esses cornos!
    Mal Léo entrou em casa, já ficou na espreita, para ver onde Valderez deixaria a carteira dos documentos...  Teria que fazer a falsificação sem o conhecimento do pai. Decidiu procurar no interior da carteira um documento de menor importância, que Valderez não desse por falta.
    _ Oppa! Achei um cheque assinado pelo meu velho... Rapaaaz!!! Vou sair de uma fria e ganhar uma grana preta numa tacada só! Chega de contar moedinhas, com essa grana toda vou poder comprar um montão de bebida e ficar mais estiloso! As gatinhas vão saber o que é ostentação!
    Léo levou o cheque que encontrara entre os documentos de Valderez para seu quarto. Copiou cuidadosamente a assinatura do pai para o documento da escola que o pai deveria assinar.
    _ Eita, eu tô ficando bom nesse negócio de copiar o nome do meu velho! Ficou igualzinho... Isso ainda vai me dar a maior grana!
    Escondeu o cheque entre umas roupas empilhadas no armário; lá, ninguém mexeria.
    _Agora, vou dar uma "cutucada"na princesinha, pra comemorar!
    Léo tentou abrir a porta do quarto de Mary, mas encontrou-a trancada. Mary, sentada sobre a cama, prendeu a respiração quando ouviu a maçaneta mexer. Léo aproximou o ouvido da porta...
    _ Que droga! Ela saiu... Então, sem festinha de comemoração, por enquanto...
    Mary foi soltando a respiração devagarinho, para não fazer nenhum ruído. O alívio que sentiu a fez erguer os olhos ao teto do quarto e, em pensamento, agradecer a Deus. Léo, ainda no corredor, praguejou:
    _ Ela não perde por esperar! Quanto mais ela fugir, mais vou atrás dela! As mais difíceis são as que mais me excitam!
    Mary sentiu um amargor subindo pela garganta ao ouvir as últimas palavras de Léo. Fechou os olhos e imaginou-se no porão da velha casa, brincando de avião de ossos de porco com o irmão. Seu avião era tão silencioso quanto sua respiração. Cortava um céu azul, de ar puro e fresco. Sua imaginação conseguia atravessar as barreiras do tempo e do espaço... Um pedido silencioso a Deus:
     _"Deus, eu gostaria de abraçar o Miguel e o paizinho!"
     Mary respirou fundo e sentiu-se flutuar feito nuvem, na confiança de que Deus levaria seu coração para longe... Muito longe... Sentiu seu coração tocar o pai, e, em seguida, o irmão... Sentiu Miguel gelado, respirando com dificuldade, olhar parado... Apenas um cantinho da boca tinha um repetitivo movimento...
    _ Mig! Acorda, Mig! Tu tá dormindo de olhos abertos!  Temos que terminar a colônia de minhocas!
    _ Ele não tá dormindo, mana! Ele tá roxo!!! Tá passando mal... Tá tendo uma daquelas coisas da falta de açúcar que a mãe sempre tem... A tal da confusão... Não... É convulsão... Isssso! É um tipo de curto circuito no cérebro...
    _ Vai, mana! Chega de blá blá blá! Corre até a cozinha e traz o açucareiro e uma colher! Ligeiro! Ahhhh! E um pouco de água...
    Miguel estava sob efeito de uma severa hipoglicemia.
    _ Espera aí, mana! Deixa eu sentar no chão e pegar a cabeça dele no colo, aí a gente ajuda ele sem ele ter como se machucar!
    _ Abre a boca dele com a colher, mana! Com cuidadinho, como a gente faz com a mamãe! Vou colocar um pouquinho só de açúcar na boca dele, e pra ele não se engasgar, pingar um pouco de água!
    Lenir apoia a cabeça de Miguel sobre suas pernas e segura-lhe a mão. Lenice, cuidadosamente, colocou um pouco de açúcar na boca de Miguel... Em seguida, umas gotas de água...
    _ Pronto! O açúcar vai derreter mais ligeiro com umas gotas de água... Assim, como acontece quando a gente faz isso com a mamãe!
    Aos poucos, Miguel foi recuperando a cor normal na pele. Também voltou a respirar com regularidade. Olhou para as duas gêmeas... Parecia incrédulo!
    _ Eu me senti abraçando minha irmã, quando eu não consegui mais respirar... Eu acho que eu morri...  Mas vocês me trouxeram de volta! Aaa, eu amo vocês, meus anjos da guarda!
    As manas se entreolharam, em silêncio. Olharam para o céu... Algo chamou--lhes atenção: uma pequena nuvem... A única existente naquele infinito azul... Tinha o formato de uma menina de vestidinho e longas tranças...
    _ Foi Deus, Mig! Foi Deus que trouxe a Mary aqui, pra avisar a gente que tu tava passando mal.
    Miguel, como de costume, não esqueceu...
    _ Então, manas... Se foi Deus, precisamos agradecer esse Deus maravilhoso! Vamos?
    Seguiu-se um silêncio que dispensou palavras... Apenas a imagem das três crianças erguendo simultaneamente os rostos, em agradecimento a Deus, dizia tudo...
    _ E agora, meninas... Pra nossa colônia de minhocas... Acham que esqueci? Não pode faltar nada pras garotas do Léuri!
    _ O que vamos precisar, Mig? Nunca fizemos uma colônia de minhocas!
    _ Bom, primeiro, a caixa de vidro que eu trouxe. Ela tem uns buracos no fundo, por isso não serve mais pra aquário. Dentro dela, vamos colocar uma terrinha delas mesmo... Lá de onde elas vieram, do monte de adubo orgânico... Uns três dedos...
    _ Como? É pra botar adubo orgânico ou dedos? Te decide, guri!
    Miguel soltou uma gargalhada.
    _ Não, Lenir... Meu anjinho de tranças número dois... Adubo orgânico...
    _ Número dois? Por quê?
    _ Porque a Lenice nasceu primeiro, ué! Tu não é a gêmea número dois?
    Lenir colocou a mão no queixo, pensativa:
    _ Sim, eu queria ficar mais um tiquinho de tempo na barriga da mamãe, mas aquele Dr Everton não deixou!
    Agora foram os três cair na gargalhada. Lenice cutucou Miguel.
    _ Agora me explica! Porque misturou dedos com adubo orgânico?
    _ Eu explico. Assim, junta três dedos...
    Miguel junta três dedos da mão, deixando os outros dois separados.
    _ Está vendo esta medida? Dá uns cinco centímetros. Essa medida vamos colocar o adubo orgânico. Depois, as minhocas. Aí, pedaços de folhas, frutas, cascas, erva de chimarrão velha...
    As três crianças pareciam até estar construindo uma casa, tamanha era a interação...
    _ Agora, mais adubo orgânico... Vamos molhar um pouquinho e colocar umas folhas secas, pra colônia das minhocas ficar fresquinha.
    _ Onde vamos deixar nossa colônia de minhocas, Mig?
    _ O Léuri e as garotas dele devem ficar na sombra. Num lugar úmido e fresco.
     _  Então vamos colocar a colônia embaixo daquela figueira. É fresquinho e úmido. A família do Léuri vai ser grande, e eles têm muita coisa pra comer!
    As gêmeas se entreolharam:
    _Falando em comida...
    _ Vamos invadir a geladeira ou o pomar?
    Miguel saiu correndo...
    _O topo da goiabeira é meu! Lá tem as goiabas mais docinhas!
    Lenir emendou:
    _ Eu vou de guabiroba!
    _ E eu, de pêra!
    Tina observava à distância...
    _ A pureza da roça é tudo que uma criança precisa pra ser feliz!
   
   

   
 
   
   
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora