Roupas pretas

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    As paredes sobre o alicerce, no pátio de Tina, iam de vento em popa. Com a betoneira a todo vapor, os pedreiros iam e vinham, ora carregando tijolos, ferragens, concreto ou ferramentas. O trabalho incessante do grupo de voluntários ergueu a construção em uma semana. Claudemir respirou aliviado.
    _ Agora, que o telhado já está posto, podemos trabalhar até em dias de chuva.
    _ Vamos terminar o mais rápido possível... Assim, liberamos a equipe de trabalho pra outra construção, e um grupo pequeno vai ficar pra fazer os detalhes da construção, o reboco e a pintura.
    _ A pintura vai ser feita em duas etapas... Uma equipe de voluntários vai pintar o fundo e um pintor profissional vai fazer o restante.
    Claudemir ficou curioso.
    _ Pintor profissional? E quanto ele vai cobrar?
    Arnaldo sorriu.
    _  Calma... Conheço um ótimo profissional das tintas... Ele é esposo da professora de dança das crianças. Disse que não cobraria pelo serviço...
    _ Ahh sim...  Um pintor de primeira! Com um trabalho que nem o dele, não precisamos nos preocupar!
    Edson completou:
    _ Ainda temos que fazer a rampa de acesso pra deficientes físicos e idosos. O pessoal que vai até a ONG certamente vai ter alguma dificuldade de locomoção!
    _Vou buscar o trator, pra facilitar o serviço. Fica mais leve para os pedreiros e vai ser muito mais rápido!
    _ Vai ser um trabalho de primeira! A rampa de acesso é uma excelente ideia!
    _ Ela não vai beneficiar só uma família, mas a comunidade inteira... É difícil para os deficientes e idosos conseguir ajuda do poder público... Com a ONG, a ajuda virá mais rápido e direcionada direto aos que precisam, sem envolver políticos!
    O dia seguinte encontrou Lenice em polvorosa.                   
    _ Manhê! Manhê! Veio uma família morar pertinho do cemitério... A menina é da nossa idade! É magrinha e tem pernas compridas... E tem cabelo comprido, como nós...
    Tina deu de ombros.
    _ Tá... E o que eu tenho a ver com isso? Depois de perder teu pai, a palavra "cemitério"me faz ficar triste...
    _ É que... Ela falou que o passatempo favorito dela é arrumar os vasos dos túmulos que o vento derrubou... E ela falou que arrumou o túmulo do papai e...
    Tina olhou para a filha com carinho.
    _Desculpa, amada... Eu tô com os nervos à flor da pele, por causa da radioterapia... Esse maldito câncer... Tô preocupada com vocês, com o Claudino...
    Lenice abraçou a mãe.
    _ Mãezinha... Eu também tô triste que o paizinho não tá mais aqui pra nos ajudar... Mas eu não quero ver a senhora triste... Desculpa por falar em cemitério... Mas a Sueli é muito top! Ela tem doze anos também... Na verdade, quase treze...
    Tina inclinou-se diante de Lenice, ajeitando-lhe a blusa.
    _ Filha... Eu peço que me desculpe... Esse tratamento parece que não tá fazendo efeito, e eu tô com muito medo... Medo de precisar deixar vocês...
    A menina olhou fundo nos olhos da mãe.
    _ Ahh, mãe... Confia no Papai do Céu! Não é isso que o papai falaria pra senhora?
    _ Foi exatamente isso que o Arnaldo me falou no outro dia, filha...
    _ Mas então, mãe...  Acredita no tio Arnaldo... Qual é o problema? Não é só fazer a  parte da senhora,  confiar em Deus, e pronto? Simples assim... Não sei o que é tão complicado...
    _ Mas é tão difícil, com tudo que tá acontecendo... Foi o câncer quem levou teu pai...
    _ O papai cumpriu a missão dele aqui, mãe! Agora temos que cumprir a nossa! "Bola pra frente", como diz o professor de Educação Física, quando alguém segura a bola no campinho. O jogo da vida continua, mãe! Em outras palavras, se não remar, o barquinho afunda!
    Tina olhou para a menina, surpresa. Não imaginava que uma criança de doze anos teria uma maturidade tão grande para a idade dela diante das circunstâncias em que se encontravam.
    _ Tem razão, filha... Tô vendo que vocês estão amadurecendo...
    Lenice ergueu a perna.
    _ Amadurecendo... E crescendo... Ô mãe! Viu como ficou minha calça na canela?
    Em seguida, a menina ergueu os braços, mostrando a manga da camiseta bem mais curta que o braço.
    _ E olha nossas camisetas! Elas não querem crescer junto com a gente... Já puxei, estiquei... Mas elas se recusam a crescer!
    _ Desculpa, filha... Sei que as roupas de vocês estão pequenas, mas agora eu não tenho como comprar roupa... Vamos ter que nos virar com o que temos.
    _ Mas mãe...  Eu tava falando da Sueli...
    _ Desculpa, filha... Como ela é? Ela é querida?
    _ É um pouquinho diferente... Só isso...
    _ Diferente? Como?
    _ É... Ela gosta de usar roupa preta... Mas fica bonita de roupa preta! Ela é legal!
    _ Tá... E vocês sabem o motivo que ela gosta de vestir roupa preta?
    _ Sei lá... Sei que ela perdeu a vovó dela a pouco tempo... Mas não sei se é esse o motivo...
    _ Deve ser... Tem pessoas que sentem muito forte o luto da perda de uma pessoa querida.
    _ A Sueli viu que nossas roupas tão pequenas,  aí ela disse pra gente que tem roupa que não serve mais pra ela. E ela falou que daria pra gente, se a senhora aceita...
    _Se eu aceito? É claro que aceitamos!
    _ Mas... Não se Importa se é roupa preta?
    _ A cor da roupa é o que menos importa, filha. Não é ela quem determina o caráter da pessoa!
    Lenice saiu saltitante.
    _ Iebbbba! Vou falar pra mana! Amanhã vamo falar pra Sueli que o pai dela pode trazer a roupa que não serve mais pra ela! Vamos ser um "trio de preto"!!!
    _ "Trio de preto"? Mas eu não quero que vocês deixem os outros amigos de lado ppr causa de roupa... Isso é coisa de adolescente irresponsável!
    _ Deixar a Dani, a Pérola, o Mig e o Chico de lado? Nunquinha! Nosso bando só tá aumentando, mãe! Vamo dar um jeito de todo mundo usar roupa preta!
    Arnaldo e Miguel chegaram bem na hora de ouvir a última frase de Lenice.
    _ É esse"bando"que tá me preocupando, Tina... Eles estão ficando numerosos... Os adolescentes estão se multiplicando... Parece que estão em todos os cantos, saltitando... O Miguel também tá querendo escolher só roupa preta! E se todos vestirem roupa preta... Vão parecer um bando de pulgas...
    Tina sorriu pelo modo de Arnaldo colocar as palavras. Ele iluminou-se ao ver o sorriso da amiga.
    _ Iebbbba! Ultimamente eu tô ganhando na loteria! Toda vez que te vejo, consigo arrancar um sorriso teu! Tô riccccco! Se continuar arrancando sorrisos de ti assim, assim, vou ficar milionário!
    Tina esboçou outro sorriso. Arnaldo pôs a mão no peito, simulando dor.
    _ Dois prêmios num dia só é demais pro meu coração!!! Assim vou infartar!!! É hilário!!!
    Tina simulou um empurrão no ombro do amigo.
    _ Bobão! Pára! Tu não existe!
    Arnaldo arregalou os olhos, olhando para todos os lados.
    _ Eeeeeu? Onde estou? Quem sou eu? Não tô me vendo... Não tô sentindo meus pés, nem minhas mãos...  Acho que me perdi no espaço cósmico! Eu não existo!!!
    Tina, após a brincadeira de Arnaldo, caiu na gargalhada. Ele parou em frente a ela, estático. Em seguida, segurando a mão da amiga, fez uma reverência.
    _ A a a acho que acabei de me encontrar, minha nobre senhora...
    Tina resolveu entrar na brincadeira.
    _ É mesmo, nobre cavalheiro? E onde estás?
    _ Estou aqui, no paraíso... Diante de uma guerreira de coração valente!
    Tina ficou séria de repente, fazendo um muxoxo.
    _  Não vale... Tu tá caçoando de mim , Arnaldo... Não sou valente! Sou a mulher mais medrosa que já vi... Tenho medo de deixar meus filhos órfãos...
    _ Uma mulher forte, que me faz rir quando fica emburrada como agora...
    _ Taaaaa... Pode rir de mim...
    _ Não quero, não!
    Tina ergueu os olhos, surpresa.
    _ Não quer rir de mim? Mas... Acabou de dizer que tu ri quando eu fico... 
    Arnaldo pousou a mão sobre a boca de Tina, suavemente.
    _ Psssiu... Não compreendeu, minha nobre senhora... Não quero "rir de você"... Quero "rir com você"...
    Tina afastou-se de repente.
    _ Quer me desarmar, nobre cavalheiro? Conseguiu! Não tenho mais argumentos...
    _ Iebbbba!
    Um novo sorriso desenhou-se no rosto de Tina.
    _ Mas me diga, Arnaldo... Posso saber qual é o motivo pelo qual quer sorrir comigo?
    Arnaldo ficou sério de repente.
    _ Sabe que nem eu sei o motivo? Só sei que toda vez que chego perto daqui, sinto muito forte a presença do Claudio... E me vêm à cabeça a promessa que fiz pra ele, de proteger e cuidar da família dele... Deve ser isso...
    Tina ergueu os olhos para o céu.
    _ É possível... Ele deve estar te lembrando tua promessa a cada vez que tu chega aqui... E Deus também deve te lembrar... Afinal, toda promessa é uma dívida!
    _ Deve ser... Bom... Vontade Divina não se contesta! Se cumpre! Enquanto o bondoso Deus me permitir, vou cuidar de vocês!
    _ E se Deus não te permitir, vou me virar sozinha!
    _ Deixa isso pra Deus decidir, Tina... Deus criou as farpas para o ouriço de defender dos inimigos, e não dos amigos!
    Arnaldo virou-se para sair, porém, parou de repente.
    .Amanhã tem radioterapia... Posso levar um ouriço pra pegar o ônibus pra capital?
    Tina corou, mas esboçou um sorriso.
    _Pode sim...
    _ Aí, guria! Esse sorriso vale tudo! Mesmo horário de sempre?
    _ Combinado, vou estar pronta!
   
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora