Tio Paulo

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    Ainda no hospital, após a mamada, Claudino dormia tranquilamente nos braços de Tina.
    _ Que benção do bondoso Deus, enfermeira... A ecografia dizia que ele tava morto... O milagre da vida se fez nesse nenê...
    _ Deus tá distribuindo vida essa semana nesse hospital. Tá nascendo criança todo dia. Hoje de manhã nasceram dois meninos gêmeos. São umas gracinhas!
    _ Me diga uma coisa, enfermeira... Sabe o nome da mãe desses meninos?
    _ Claro, senhora Tina. Eu que atendi ela na sala de preparo! O nome dela é Débora.
    _ E... Deu tudo certo? Ela e os meninos estão bem?
    _ Estão ótimos, senhora! Conhece ela?
    Tina, feliz com a resposta da enfermeira, comentou:
    _ Ela é minha vizinha e comadre. O marido dela foi meu aluno e é padrinho de uma das minhas gêmeas.
    _ Que maravilha, senhora! Então, a tua vizinhança ganhou a visita oficial da cegonha, praticamente de casa em casa!
    _ E bota visita nisso. Outra vizinha minha teve a nenê anteontem aqui.
    _ Uma senhora morena? O esposo dela tem um pequeno problema na perna, não?
    _ Sim. Ele perdeu parte da perna e a visão em um dos olhos num acidente... Usa prótese pra caminhar...
    A enfermeira examina o prontuário da paciente:
    _ A senhora e o seu filho vão ganhar alta hoje, senhora. O pediatra vai lhe orientar sobre o nenê. O obstetra do hospital já assinou sua alta e vai lhe dar um retorno pra remover os pontos da cesárea. Gostaria de avisar alguém pra levar vocês pra casa? O pai dos gêmeos ainda deve tá por aqui, no hospital.
    _  Que bom... Assim vou aproveitar e subir até em casa com o Alceu, quando ele voltar pra casa...
    _ Eu vou conversar com ele, pra passar aqui antes de voltar pra casa.
    Pelo retrovisor do carro, Tina e Alceu perderam a vista da cidade. Cada curva da estrada fazia Tina olhar para Claudino, para ver se estava tudo bem.
    _ Estamos quase chegando, meu guri... Logo tu vai conhecer as manas, o Chico, tia Teresinha...
    À medida que o carro de Alceu se aproximava da casa, Tina viu que algo estava errado. Ela sentiu  o sangue gelar em suas veias ao se deparar com o cenário da padaria incendiada. Mais uma vez aquela sensação de sentir o chão faltar sob seus pés...
    _ A padaria...
    _ Parece até que...  Pegou fogo...
    _ Queimou tudo... O que... O que será que aconteceu aqui?
    Tremendo da cabeça aos pés, Tina tentou se acalmar, para compreender o que acontecera ali. Entrou na casa, acomodou Claudino no berço, segurando a região operada na cesareana, dirigiu-se até a parte que era a padaria.  Juvenal, que tentava resgatar o que o fogo não havia destruído,  explicou o que acontecera.
    _ Eu tô tentando limpar, mas tá difícil!
    _ E... E as crianças? Alguém se machucou?
    _ Graças a Deus, não... Mas todos poderiam ter sofrido queimaduras graves. Eles falaram que tinham colocado garrafas plásticas e pilhas velhas no forno, que fez tudo explodir e espalhar o fogo. Eles mesmos que apagaram o fogo. Tavam os quatro pretos que nem carvão!
    O susto deu lugar ao alívio, ao saber que ninguém se ferira.
    _ Ainda bem que as crianças não se machucaram. Elas estão na escola?
    _ Sim. Já devem tá quase chegando. Nem queriam ir pra aula hoje. Tavam tristes e preocupadas com o que aconteceu.
    E agora? Como faria ela, com o bebê recém nascido, as manas, sem a única fonte de trabalho... E sem Claudio, que sempre tinha solução para todos os problemas? Respirou profundamente e olhou para o céu:
    _ Deus... Me dai forças pra seguir... Tá difícil...
    Tina lembrou-se das alterações no exame de mamografia e ergueu os olhos. Sentiu-se mais uma vez sem rumo.
    _ Deus... Não me deixe fraquejar! Permita que eu confie em ti sempre...
    Na curva da estrada de chão, Tina avistou Francisco e as manas, voltando da escola, de cabeça baixa. Eles ainda estavam tristes pelo ocorrido na véspera. Ergueu os olhos novamente para o céu.
    _ Obrigada, Deus...  Milhões de graças a ti, meu Pai! Pelas crianças não terem se machucado...
    Os olhares de tristeza das crianças fizeram-na chorar mais uma vez. Era um misto de alívio por ver que estavam todos bem, e de preocupação pelos dias que se seguiriam.
    _ Vamos confiar em Deus. É o que nos resta!
    _ Vou pedir demissão da rádio, e levar o sítio da senhora adiante! Não entendo muito de roça, mas aprendo!
    _ Mas é o teu trabalho, Juvenal!
    _  As exigências do contrato deles pede que eu consiga vários patrocinadores pra rádio, e não tenho tempo pra isso.  Minha família e a tua precisam de mim!
    _ Mas Juvenal... Não posso permitir isso!  É o teu único ganha-pão... Não vou conseguir te pagar... E tu tem as crianças...
    _ Pois não precisamos de luxo, Tina! Se muitos sobrevivem com o que plantam no lavoura, tenho fé que juntos, vamos vencer mais essa batalha! A Teresinha me falou do tratamento que a senhora vai ter que fazer agora, e quero retribuir ao seu Claudio por ter salvo a minha vida no dia que sofri o acidente!
    Tina calou-se diante dos argumentos de Juvenal, pois notou que a decisão estava tomada. Entrou na casa com as meninas. Lenice e Lenir correram até o berço do bebê, mas ao notar que ele dormia, olharam para a mãe com ar de preocupação.
    _ Devagar, meninas... Vocês vão ter muito tempo pra cuidar dele. Ele é um pequeno hóspede que vai ficar muito tempo com a gente!
    _ E ele vai de colo em colo voando, mãe! Ele vai ser o nenê mais feliz da face da Terra! Olha que bochechas lindas, mana!
    _ Agora deixem ele dormir. Vamos conversar, enquanto vocês duas vão organizando o almoço! Em primeiro lugar, eu vou ensinar duas pequenas incendiárias a acender fogo sem queimar a casa.
    As meninas baixaram os olhos e calaram-se diante da palavra "conversar", pois já sabiam que a mãe realmente conversaria sobre o ocorrido durante a véspera na padaria.
     _ Vocês precisam ser um pouco mais responsáveis. Quando a gente acende fogo, precisa ter três coisas: material certo, cuidado e respeito.
    _ Mas a gente usou material que queima fácil, mãe... O ruim foi depois... O fogo não andava... Aí jogamos aquelas coisas lá.
    _ Me digam: abriram a trava da chaminé?
    _ Trava da chaminé? Nnnnão... Que que é isso?
    _ Trava da chaminé é uma placa de metal que a gente encaixa na base da chaminé, pro calor do forno não fugir durante o uso do forno. Se acender fogo sem puxar a trava da chaminé, o fogo não flui, e sai pela boca do forno.
    _E... Foi o que aconteceu, mãe. O Mig tinha deixado lenha seca na boca do forno e o Chico jogou garrafas de plástico e umas pilhas velhas pro fogo flúir... Mas explodiu pra boca do forno... Aí deu o incêndio...
    Tina abraçou as filhas.
    _ Deus sabe como eu iria sofrer se vocês tivessem se queimado, ou até morrido, porque eu prometi pro pai de vocês que eu as guardaria com a minha própria vida!
    Os olhos das meninas estavam banhados diante das palavras de Tina, ao lembrar o pai.
    _ Mãe... Desculpa, mãe...
    _ Depois, de tardezinha, vou mostrar pra vocês como dar banho no nenê e trocar a fralda dele. Mas agora... Uma aula de "como acender um fogo em segurança"! Depois, podem fazer o almoço.
    Após o sermão "carinhoso"de Tina, as manas acabaram acertando o jeito certo de acender fogo e fazer o almoço em segurança.
    _ Mãe... O tio Paulo tá aqui!
    _ Pois peça pra ele entrar, filha. Tô dando de mamar pro nenê!
    _ Lenice correu até a porta.
    _ Pode entrar, tio Paulo! A mãe tá lá dentro...
    _ Obrigado, Le... Nice ou Nir? Eu nunca sei... Vou chamar de Lelê, aí acerto!
    _ Lenice...
    Paulo, irmão de Tina, era brincalhão. Sempre bem humorado.
    _ E onde tá a melhor irmã que eu tenho?
    _  Claro, né? Sou tua única irmã... Tô aqui, mano véio! O que te traz aqui, mano?
    O tratamento de Tina com o irmão sempre fora incomum. Paulo deu uma risadinha:
    _Gostei da pergunta, mana... Foram meus pés!
    A gargalhada de Paulo espalhou-se no ambiente. Mas logo calou-se, ao notar que o sobrinho adormecera mamando. Começou a falar novamente, agora, em tom bem baixinho, enquanto a irmã colocava o bebê no berço:
    _ Agora, falando sério, mana! Eu acabei de me aposentar no trabalho de químico, por problemas de saúde. Aquele acidente que sofri a dois anos me deixou surdo num ouvido, e eu não escuto mais os apitos da caldeira da Agrolatina! Entre fazer o trabalho mal feito e pedir um afastamento remunerado, resolvi fazer uma perícia e consegui me aposentar.
    _ Então?
    _ Eu sei que tu precisa se reerguer, mana! E eu vou te ajudar a lavrar tuas lavouras e plantar as sementes de verão!
    Foi a vez de Tina sentir os olhos se encher de lágrimas.
    _ Mano... Não posso te pagar... A padaria pegou fogo ontem... Eu não posso aceitar...
    _ E eu pedi pagamento? Se eu não ajudasse minha única irmã num momento desses, minha vida não valeria a pena! Vou ajudar e pronto!
    _ Não sei como agradecer, mano... Realmente, agora, eu preciso de ajuda... Descobri um câncer no seio que tenho que tratar agora que o nenê nasceu...
    Paulo olhou para a irmã incrédulo.
    _ Bahhh, mana! Tu puxou uma pedra do barranco e caiu o barranco inteiro! Vai te benzer, maninha!
    _ Não é azar, mano! É o caminho de Deus... Vai ser difícil percorrer esse caminho, eu sei... Mas eu confio nesse Deus, que vou superar!
    _ É assim que se fala, maninha! E agora, me dá licença, que vou pra casa! Amanhã cedinho eu tô aí, pra começar o "mexe"nas roças! Já vou arrumar umas sementes boas e adubo pras plantações e trazer com meu trator!
    _ Mas eu não tenho dinheiro pra comprar adubos e sementes agora...
    _ E eu falei que tu tem que pagar, querida? Falei que vou "trazer", e não "vender"!
    Paulo deu outra risadinha e abraçou a irmã.
    _ Tu não existe, mano!
    _ Claro que existo, mana! Olha eu aqui! Meio surdo e barrigudo, mas firme como uma rocha!
    Paulo bateu no peito, entrou no carro e partiu. Tina seguiu o carro do irmão com os olhos, até perdê-lo de vista.

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora