Tina estava terminando de passar o café.
_ Francisco... Miguel... Já estão prontos? Podem me fazer um favorzinho?
Miguel respondeu prontamente:
_ Claro, dona Tina! O que a gente é pra fazer?
_ Eu vi que o gato das manas, o Lombriguinha, entrou escondido na cozinha... Poderiam fazer o favor de pegar ele e levar lá pra fora? Não gosto de gatos na cozinha enquanto preparo uma refeição. Tenho que terminar o café e arrumar a mesa ainda.
Francisco olhou curiosamente sob a mesa, onde Lombriguinha ronronava preguiçosamente sobre uma cadeira.
_ Tá aqui...
Miguel não perdeu tempo. Com o gato nos braços, fez sinal para Francisco abrir a porta. Os dois meninos sumiram porta afora.
_ Só soltem ele lá fora, pra que ele não volte. E depois, lavem as mãos. Tem um tanque com água limpinha lá fora! Aaaa! E não sujem suas roupas... Vão estragar essa chiqueza toda!
Mal Tina acabara de falar, e os dois meninos já estavam lá fora, com o gato nos braços. Miguel sorriu, malicioso:
_ Sabe o que vamos fazer pra esse gato não entrar mais na cozinha? Ele vai aprender o lugar dele...
Francisco ficou curioso, observando o gato... Depois olhou para Miguel...
_ Tive uma ideia! Vamo dá um baita banho nele. Assim ele aprende a não invadi a cozinha!
O pobre animal estava no colo do menino, crente que nada estava por vir, além de carinho... Porém, no momento em que aproximaram-se da água, pressentiu que algo muito sério estava acontecendo alí. Lombriguinha arregalou os olhos, olhou para Francisco, como se pedisse socorro... Em seguida cravou as unhas em Miguel.
_Ai Lombriguinha! Isso dói!
O pobre e indefeso animal ainda tentou, sem sucesso, fugir das mãos dos meninos. Mas sentiu-se afundado nas frias águas do tanque. Àquelas alturas, nem miar não conseguia... O pobre bichano não esperava tomar banho com aquela água tão fria e saiu correndo em disparada:
_Miaaauaaauaau!
Miguel soltou uma gargalhada.
_Tu viu, Chico? O Lombriguinha aprendeu a cantar!!!
Lombriguinha correu na direção do galpão de depósito de espigas de milho, todo ensopado. Seus olhos arregalados pareciam duas bolinhas de gude. O pobre gatinho parou por uma fração de segundo, como se estivesse travado, encarando os dois meninos. Em seguida, disparou novamente.
_ Isso, gatinho obediente! Já aprendeu que teu lugar é lá no galpão do milho, caçando rato!
Tina estranhou a demora dos dois meninos:
_ Que demora pra levar o gato lá pra fora e lavar as mãos... Tudo bem que a água do tanque deve estar gelada, mas...
Tina parou de falar ao ver os dois meninos na soleira da porta. Ela não fazia ideia da travessura que eles haviam executado.
_Vamos ao café, crianças. As meninas já vêm também. Temos umas coisas pra organizar lá no CTG ainda. E tenho que passar na casa da Lurdes, que ficou de fazer o bolo de aniversário do Miguel.*
Na casa de Francisco, dona Terezinha travava uma luta silenciosa contra a dor e infecção, causadas pela picada da aranha. Juvenal, apesar de sentir-se incapaz de ajudar de alguma forma, procurou em seus livros de soluções caseiras, alguma que daria uma resposta para tentar acalmar as dores da esposa.
_ Só não consigo ler as letras miúdas... Só os títulos... A falta que esse olho me faz, em um momento desses...
Teresinha, com o pequeno Alessandro no colo, mostra-se preocupada:
_ Não tô tão preocupada com a ferida da picada da aranha, Juvenal. Eu tô mais preocupada é com o Alessandro... Tá com um pouco de febre... Não quis tomar a mamadeira... E ele tem cirurgia marcada para essa semana!
Juvenal ergueu os olhos do livro, onde, com dificuldade, tentava encontrar uma receita de pomada cicatrizante:
_Essa semana vou falhar as terapias então... Tu precisa de mim aqui... Tá com esse problema da picada da aranha..
_ Não, Juvenal... Não quero que falte as terapias... Eu dou um jeito... Minha mãe me ajuda.
_ Mas tu não disse que o Alessandro tem cirurgia marcada pra essa semana? É meu dever de pai e de marido tá aqui, quando vocês precisam de ajuda!
Teresinha olhou com ternura no fundo dos olhos negros de Juvenal, mas não teve coragem de contestar... Apesar de Juvenal ter perdido uma perna e a visão de um olho, apenas o fato dele estar presente, já daria um amparo psicológico, tanto para ela quanto às crianças.
_Eu amo tu, Juvenal... Exatamente por isso... E o fato de ficar aqui, já me dá força pra deixar fazer a cirurgia do Alessandro.
_ Temos que ter fé nesse Deus maravilhoso, Teresinha. Ele sabe o que faz... Ele é soberano...
_Quando o Francisco voltar, vou falar pra ele que tu vai ficar aqui essa semana. Quem sabe assim ele esquece essa cisma de ir dançar aquela dança de brancos, naquele CTG...
_ Mas Teresinha... Ainda não mudou esse pensamento?
Juvenal não queria contrariar a esposa em um momento de dor e preocupação dela, porém, também não achava certa a maneira que ela encarava o fato do filho dançar músicas gauchescas.
_Eu tinha até mudado, sim... No dia que o Francisco sumiu embaixo da escola eu tinha prometido que o deixaria dançar... Prometi, mas voltei atrás!
Com o olhar sério, Juvenal parecia não acreditar no que ouvira .
_ Quê? Quebrou uma promessa? Logo tu, que sempre foi tão devota?
Teresinha encarou Juvenal com firmeza, e uma certa frieza:
_ Pois a promessa foi minha e acho que ninguém precisa cobrar! Fui eu que decidi não cumprir!
_Eu cumpriria, se eu tivesse prometido... Mas não posso responder pelas tuas promessas...
_ Pois eu acho que nós já passamos problemas que chega, com o autismo do Francisco, porque ninguém aceita ele como ele é... Depois, com o teu acidente... E agora, com os problemas do Alessandro, eu decidi que vou traçar o caminho dos nossos filhos, e não confiar em Deus nenhum!
Juvenal, surpreso, não podia acreditar que Teresinha falara aquilo de uma maneira tão ríspida e fria.
_ Minha vontade é de estar sempre aqui, tanto que esta semana vou faltar todas as terapias no hospital, porque sei que o Alessandro vai fazer a cirurgia e tu tá com esse braço ruim. Quando minhas terapias terminarem e minha prótese estiver adaptada, se vcs não vierem morar lá, voltarei pra cá.
_ Pois eu tô cansada, Juvenal! Não gosto nada dessa ideia desse povo branco querer se misturar com a gente...
_ "Esse povo branco"salvou minha vida, Teresinha... E me deu guarida quando eu não tinha absolutamente ninguém pra me ajudar. Foi Deus que colocou eles no meu caminho.
Teresinha falou em tom de desânimo:
_Pois eu acho que teu Deus nos abandonou, Juvenal... Parece que toda desgraça da cidade foi descarregada na nossa casa, na nossa família...
_ Não, Teresinha. Deus escolheu esse caminho pra nós trilharmos com fé e não desistirmos de confiar que Ele é o Deus soberano.
_ Então, porque esse Deus deixa tanta dor entrar na nossa família? Eu tô achando que não é Deus que tá escolhendo nosso caminho, mas sim, o...
Juvenal ergueu a sombrancelha, como se pedisse para a esposa não completar a frase.
_ Não fale no "mal"... Isso invoca ele a agir, e o torna mais forte... Deixe o "mal" no esquecimento...
Teresinha, àquela altura, sentiu que estava ficando alterada com o rumo da conversa. Resolveu mudar de assunto:
_Eu vou trocar as fraldas do Alessandro, e trocar esse curativo do braço... Tá doendo muito... Tá aumentando cada dia mais...
_ Quer ajuda?
Teresinha olhou surpresa para Juvenal, pois pensou consigo mesmo: como poderia ele fazer algo, com os movimentos das pernas limitados pela ausência de uma perna... E também pela visão limitada, pela ausência da visão em um olho...
_Se tu quiser, depois me ajuda com meu curativo, porque às vezes eu não consigo fechar ele direito.
Teresinha ausentou-se da cozinha para fazer a troca de fralda de Alessandro. Quando voltou, Juvenal já aguardava a esposa, com o material de curativos.
_ Quero ver como tá esse teu braço, Teresinha. Não fico nem um pouco tranquilo, sabendo que tu tá com esse machucado grande aí, e eu, com os braços perfeitos.
Teresinha colocou Alessandro no cavalinho de vime perto do fogão à lenha. Sentou-se em frente ao marido e estendeu o braço lesionado. Ele abriu o curativo cuidadosamente, e assustou-se com o tamanho da lesão.
_ O médico não te deu um remédio forte pra melhorar isso aí? Parece realmente que tá aumentando cada vez mais... E tá muito inchado!
_O médico me deu Nebacetin pra passar, quando eu fui consultar. Não me deu mais nada... Dói muito... E fica latejando dia e noite... Parece até que vai estourar...
Duas grossas lágrimas desceram pelas faces de Teresinha, tamanha era a dor que a troca do curativo causara na mulher.
_ Pois amanhã tu vai tentar consultar de novo, Teresinha. Ele tem que te receitar uma coisa que faça mais efeito. Talvez um antibiótico!
_ Amanhã não posso, Juvenal. Amanhã tenho que levar o Alessandro pra fazer os exames pré-operatórios pra cirurgia. Vou tentar depois da cirurgia do guri...
Juvenal olhou para Teresinha, baixando a voz, tristemente:
_ Se eu tivesse condições de cuidar de vocês, nada disso estaria acontecendo... Mas aquela árvore, naquela noite, mudou tudo na nossa vida...
Diante das palavras do marido, Teresinha ergueu a voz:
_ E tu ainda diz que é Deus que nos dirige a vida? Por isso eu tô desacreditada de tudo! Por isso que não me importam mais as promessas que fiz... Deus nos abandonou naquela noite que tu sofreu o acidente... Eu até tentei pensar positivo, mas agora não acredito mais em nada!
Juvenal encarou tristemente a esposa, após ouvir mais uma expressão de falta de fé. Limitou-se a perguntar:
_ Pra quando tá marcada a cirurgia do nenê?
_ Pra quinta-feira. Ele vai baixar quarta-feira e vai fazer quinta, cedinho.
_ Vou ficar aqui essa semana, Teresinha. Tu vai precisar de ajuda. Tanto com o nenê operado, quanto com os curativos. Semana que vem, quando tu e o nenê estiverem melhores, volto pras terapias. Hoje de noite o Francisco volta pra casa e vai gostar de saber que vou ficar.
_ Ele vai gostar, sim.
Juvenal fez a assepsia da região lesionada do braço de Teresinha, colocou a pomada indicada e fechou o curativo. A preocupação era nítida.
_E vamos ver se conseguimos curar essa ferida! O pulso é um lugar perigoso pra se ter uma ferida... Imagina se pega na veia...
O domingo pareceu areia entre as mãos, tamanha a rapidez que o tempo passara. Quando Claudio trouxe Francisco, ficou surpreso com a decisão de Juvenal de ficar. Mas respeitou.
_ Nesse caso, acho que eu faria o mesmo, meu amigo! Nesse momento, tua mulher e teus filhos precisam de ajuda. Caso precise de alguma coisa, só falar!
Juvenal estava pronto para responder, quando Teresinha interveio:
_ Não precisamos de nada, seu Claudio! Obrigada.
_ Bom... Sendo assim, vou pegar a estrada de volta pro rancho! A gente se fala, Juvenal! E, já sabe... Se precisar, é só falar...
Teresinha, que àquelas alturas, já tomara a iniciativa de dispensar a ajuda de Claudio, ainda emendou:
_ Não carece se preocupar, seu Claudio! Se precisarmos de ajuda, temos o nosso pessoal daqui mesmo... Não precisamos pedir ajuda de alguém de tão longe... E ainda... Brancos...
Juvenal, àquelas alturas, olhava para Teresinha com total olhar de reprovação... Claudio, sem jeito, saiu em silêncio.
_ Teresinha... Esses "brancos"salvaram a minha vida... Eles ajudariam a gente, sim... E de coração...
Teresinha pegou Alessandro no colo.
_ Vou dar banho no nenê. Amanhã tenho que levar ele cedinho e em jejum pra fazer exames.
_Eu vou ficar com o Francisco, então. Vai ser mais fácil pra ti. Sei que ele tem aula de tarde...
_ Eu deixaria ele na casa da minha mãe antes dos exames, mas, já que tu tá aqui, não preciso sair tão cedo.
Juvenal olhou com carinho para Teresinha. Apesar de desacreditada pela dor, via nas feições da esposa a força invisível de alguém que não costuma desistir. Apenas ficou triste, ao lembrar das palavras que Teresinha falara no dia anterior, sobre não crer que Deus possa ser soberano a tudo. Para Juvenal, o destino de cada ser era obra somente do Deus soberano... E a esposa, infelizmente, já não pensava da mesma maneira.
Os dias que se antecederam ä internação hospitalar de Alessandro passaram muito rápidos. O cirurgião estava otimista, porém, tomou suas precauções:
_ Os exames pré operatórios do nenê estão todos certinhos. A senhora pode me dizer se ele teve gripe ou febre nas últimas duas semanas?
Teresinha, temendo ter que remarcar todos os exames e o procedimento, omitiu:
_ Não, Dr. Não teve nada...
_ Então, vamos efetivar a baixa dele. Amanhã cedinho ele será buscado no leito para o bloco cirúrgico. As enfermeiras lhe darão todas as orientações necessárias.
Teresinha, com Alessandro no colo, segurando a mala de roupas, dirigiu-se até o setor responsável pela internação. Sentiu-se confiante. Porém, uma pontinha de remorso por ter omitido o fato de Alessandro ter tido febre alguns dias antes... Resolveu não pensar:
_ Agora, que tá tudo encaminhado, não vou voltar atrás, só por causa de uma febrezinha...
Após ter efetuado a baixa, Teresinha e Alessandro foram encaminhados para o leito 12 B do setor de pediatria. Ali, já no quarto, sentou-se e suspirou:
_ Amanhã, meu guri... Amanhã cedinho, as coisas vão tomar o rumo certo.
Teresinha ficou ali, não sabe quanto tempo,olhando para o filho que dormia no leito do hospital. Sentiu-se leve de repente... Parecia flutuar... Encontravam-se, ela e Alessandro, no interior de um túnel de luz... Uma voz ao longe:
_ Teresinha... Teresinha... Onde estás? Sempre senti tua fé e tua firmeza... Agora, só sinto o vazio, o frio...
Teresinha procurou a origem daquela voz, porém,sentiu apenas uma mão no seu ombro...
_ Mãezinha... O teu nenê acordou...
Teresinha despertou diante da voz doce da enfermeira. Porém, ficou atônita ao lembrar do sonho que tivera durante aquele breve cochilo...
VOCÊ ESTÁ LENDO
INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...