A reforma da padaria

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     A igreja estava lotada... A marcha nupcial tocada no harmonium da pequena capela de Serra Grande, no interior de Igrejinha, enchia o ambiente de paz.  Rosas brancas envoltas em fartos laços de tule branco enfeitavam os bancos enfileirados até o altar. Lá, a Pastora estava de frente para o altar, aguardando o horário de celebrar mais uma união.
    _ Será que a noiva vai tá bonita?_ perguntavam as crianças aos seus pais.
    De repente, o badalar dos sinos misturou-se à marcha nupcial. Um casal que apareceu na porta da igreja deixou os convidados de queixo caído. A noiva, linda, ostentava uma trança loira que lhe caía na cintura, entrelaçada com minúsculas flores brancas. Segurando o véu, no alto da cabeça, uma coroa de gerânios brancos. O homem que a acompanhava estava elegantemente vestido, ostentando um sorriso largo que Irene conhecia muito bem.
    _ Arnaldo! Então é isso? Tu tava me traindo esse tempo todo com essa biscate!!!
    Irene tentava em vão, do fundo da igreja, focar seu olhar no rosto da noiva.
    _ Quem é essa kenga que tomou o meu lugar?
    Como se fosse chamada pelo pensamento, a noiva virou o rosto na direção de Irene, e sorriu largamente.
    _ Espera aí... Eu conheço esse sorriso...
    O olhar insistente de Irene parecia prender o olhar da noiva que, paralisada, ficou ali diante dos presentes, estática.
    _ Maryyyyyy!!!
    Irene arregalou os olhos, colerizada. Saltou do banco onde se encontrava e partiu em direção à noiva, arrancando-lhe o véu.
     _ Então é tu a biscate que sempre foi a amante do meu marido? Eu senti desde o começo que tu não prestava!  Tu não merece usar véu! O véu é símbolo de pureza...
    A agressividade de Irene chegou ao extremo quando, enraivecida, rasgou o vestido da noiva, deixando-a só de roupa íntima.
    _ Tu não merece vestir branco, traidora! Agora sei que foi por isso que tu sempre tava no colo dele quando era uma criancinha ranhenta! Já tava tendo relação com ele naquela época!
    Um jovem, cujos olhos azuis Irene conhecia muito bem, tirou seu próprio paletó, para vestir a noiva que chorava copiosamente.
    _ Miguel! Eu te proíbo de proteger essazinha, que sempre foi amante do meu marido!
    Miguel estava estarrecido diante da situação, apontando para um jovem moreno de fraque na lateral do altar.
    _ Ela é minha irmã! E vai casar com o Francisco! Não com meu pai!
    _ Tu tá sempre protegendo esse bando de traidores! Tu é da mesma laia que eles! Tá sempre do lado do véio!
    Os convidados entreolharam-se, cochichando. Miguel olhou para Irene com os olhos faiscando, em seguida virou-se de frente para os presentes.
    _ Peço perdão por estragar esse momento tão feliz da minha irmã, mas vocês sabem o que essa digníssima dama fez antes de fugir de Igrejinha?
    Diante do ar curioso dos convidados, Miguel continuou:
    _ Essa mulher traiu meu pai com o advogado dela, e engravidou dele... E tomou umas ervas e usou cintos apertados pra cometer aborto, ao saber que o doutorzinho não queria mais ela...
    Diante da revelação bombástica de Miguel, a admiração fez os presentes voltarem a cochichar.
    _ Assim que meu pai descobriu, ele tentou se enforcar... Eu subi no pé de sinamomo e cortei a corda, mas caí lá de cima.
    Duas grossas lágrimas queimavam as faces de Miguel. Irene tentou justificar.
    _ Eu não poderia criar um filho sem pai! Por isso fiz aquele nenê do Carlito morrer antes de nascer!
    _ E quando a senhora viu que eu e meu pai estávamos feridos, a ponto de morrer, pegou minha irmã e fugiu com um vendedor de adubos!
    Os convidados olhavam, ora para Miguel, ora para Irene. Pareciam esperar mais revelações. Irene sentiu-se acuada diante da verdade.
    _ Isso é uma maldade o que tu tá fazendo comigo! Eu sou só uma pobre vítima!
    _Maldade é fazer o que a senhora fez, quando levou a mim e à minha irmãzinha pra viver no mato durante 3 longas semanas, só porque não queria mais ter contato com seu marido... Meu pai... E nós dois sabemos que as noites de chuva embaixo daquela acácia foram as mais frias e tenebrosas das nossas vidas! Toda vez que sinto fome ou frio parece que ainda tô lá...
    Àquelas alturas, Mary chorava copiosamente nos braços de Arnaldo. Os presentes recomeçaram a cochichar e apontar Irene. Miguel continuou:
    _ Sem contar que na escola todos apontavam os dedos pra gente, dizendo que nossa mãe era uma...
    Irene olhou para Miguel e Mary.
    _ Se é assim que vocês dois me tratam, a partir de agora, eu não tenho mais filhos!
    Miguel, com os olhos cheios de lágrimas, olhou firmemente para Irene.
    _ Então, se a senhora diz isso,  nós dois somos órfãos de mãe, a partir desse exato momento!
    A Pastora,  que estava de costas até aquele momento, virou-se, deixando à mostra o rosto de Maria. Irene olhou para ela, colerizada.
    _ Tu??? Tu não é Pastora coisa nenhuma! Tu é uma mãe desnaturada que deixou teu filho comigo no lixão pra se livrar do filho! Também deve ser amante desse véio aqui!
    No auge dos seus devaneios, o pesadelo de Irene havia chegado ao extremo da loucura. Maria, apontando  para Irene, decretou:
    _ A partir desses teus atos de repúdio aos teus filhos, não posso aceitar que tua alma seja salva através de uma criança inocente. A tua última chance acabou de ser rasgada feito o vestido dessa pobre noiva! Ainda hoje o Ângelo voltará ao Pai!
    Irene já não sabia o que fazer, tampouco o que falar. Começou a gritar:
    _ Não pode fazer isso! Eu mereço perdão! Eu preciso desse perdão!
    Com o suor escorrendo pelo rosto, Irene implorava, agarrada à túnica da Pastora.
    _ Me dá mais uma chance, pelo amor de Deus!
    Irene olhou para os rostos pasmos dos convidados, que meneavam a cabeça em sinal de reprovação.
    Irene saiu correndo do interior da  igreja. Lá fora, entrou em uma floresta repleta de atrozes cipós espinhentos que sangraram-lhe o corpo inteiro. Aos olhos de Irene, de cada orifício que fluía sangue, brotaram enormes furúnculos purulentos.
    _ Não podem fazer isso comigo! Isso dói demais! Eu preciso de mais uma chance! Eu quero mais uma chance!!!
Aaaaai!!!
    Com os próprios gritos, Irene despertou suando frio...  Enxugou o rosto com as costas da mão.
    _ Ainda bem que foi sonho! Ainda tenho chance de me redimir com Deus.
    Porém, ao olhar para o cantinho do viaduto, no colchão onde Ângelo deveria estar dormindo, notou que o colchão estava vazio.
    _ Não pode ser! Ele era minha última chance de me redimir pra Deus! Deus... Eu preciso de perdão!!!
    Aquele pesadelo ficou ali, girando em seu pensamento. Enquanto sentia as lágrimas queimarem suas faces, perguntas martelavam sua cabeça: Onde foi parar Ângelo?  Onde estaria Mary? E como estariam Arnaldo e Miguel?
    Longe de Caxias, Arnaldo despertou de um salto e entrou no quarto do filho, sorridente.
    _ Temos que levantar, Miguel. 
    _Que alegria é essa, pai? Sonhou com um passarinho colorido?
    Arnaldo sorriu.
    _ Quase isso... Outra hora te conto! Tenho que levar a Tina até a cidade, pra ela pegar o ônibus pra radioterapia. Aí tu já fica lá nas manas e podem ir juntos pra escola.
    _ Iebbbba!!!
    _ Depois, na hora do almoço, tenho uma reuniãozinha com o pessoal das duas igrejas de Serra Grande, aí tu pode ficar lá na Teresinha, com o Francisco.
    _ Das duas igrejas, pai? Mas não são religiões diferentes?
    Arnaldo olhou sério para o filho.
    _ Sim, filho. São religiões diferentes... Mas aprenda uma coisa! Temos um só Deus e Ele pede pra gente ajudar o próximo, quando ele precisa. E a Tina tá precisando de ajuda!
    _ Mas quem vai ajudar?
    _ O Claudemir e o Edson vão ajudar a Tina. Já tá tudo planejado... Quando ela voltar da radioterapia vai ter uma surpresinha...
    Miguel ficou curioso.
    _ Surpresinha? Vão dar um presente pra ela?
    Arnaldo sorriu.
    _ De certa forma, sim... As duas comunidades vão se juntar. Vai ser um presente muito especial.
    _Mmmmm... Tô curioso, agora...
    _ Ahhhh, não me enrola, piá!  Eu não vou contar nada! Tu é fofoqueiro de carteirinha e vai correndinho contar pras manas!
    Miguel fez um muxoxo.
    _ Aaaa, pai! Tu sabe que minha boca é um túmulo! Eu não conto nada pra ninguém...
    _ Prefiro não arriscar, Miguel. Túmulos, às vezes, são violados e saqueados. E vê se toma esse café, pra não assaltar a geladeira da Tina, nem da Teresinha.
    _ Aaaaaa, paí!
    Arnaldo põe a mão no queixo.
    _Falando em "geladeira da Tina"...
    A curiosidade de Miguel aguçou-se mais uma vez.
    _ O que tem a geladeira da Tina? Alguma coisa a ver com a surpresinha que tu me falou?
    _ Não, não... Nada a ver... Deixa de ser enxerido, piá! Toma logo esse café e vamo lavantar âncora, marujo! Hoje o dia vai ser proveitoso!
    _ Eu vou aproveitar também, pai. Eu, o Chico e as manas combinamos de um dia limpar a casa da tia Tina.
    _ Tô orgulhoso de ti, meu guri! É isso aí!Trabalho de equipe!
    _ E num outro dia vamo faxinar a casa da tia Teresinha!Já que ela tá sempre ocupada com os nenês... Aí sim, que nossa missão vai ficar completa!
    _ Isso é ótimo, sabia? Um dia, quando tu tiver casa e esposa, vai saber ajudar ela, e serão felizes...
    Miguel olhou para Arnaldo, com os olhos marejados.
    _ Paiê... Será que um dia eu vou achar alguém que vai gostar muito de mim, a ponto de ser feliz?
    _ Por que diz isso?
    _ Minha mãe não fez o senhor feliz, pai... O senhor jogou sua vida no lixo, casando com ela ...
    _ Eu agradeço a Deus por ter você, meu guri! Se eu não tivesse casado com sua mãe, tu não existiria...
    _ Arnaldo segurou o queixo do filho, sorrindo.
    _ E sei que Deus um dia vai trazer tua irmã de volta pra nós!
    Após deixar Miguel na casa de Teresinha, Arnaldo, ao levar Tina até o ônibus, notou que seu rosto estava triste, desanimado.
    _ O que aconteceu, amiga? Por que essa carinha triste?
    _Nada, não, Arnaldo... Só tô desanimada. Parece que o tratamento não tá fazendo efeito... Tenho um mau pressentimento...
    _Pressentimento não é destino, amiga! E o destino é Deus quem determina e nós que cumprimos! E tu tá cumprindo o teu, Tina.
    _ Mas eu tô achando tão difícil cumprir o meu destino e o de mais três crianças sozinha...
    _ Tu não tá sozinha, Tina. Tu tem Deus e a todos nós, que te queremos bem...
    Tina respirou fundo. Aos poucos, a serenidade voltou ao seu semblante.
    _ Eu não sei o que eu faria sem Deus e sem amigos...
    Arnaldo sorriu, brincando.
    _ Seria como um graveto seco no topo de uma árvore num dia de tempestade...
    _ Eu? Graveto???
    Tina sorriu.
    _ No mínimo, eu seria o próprio tronco... Não tenho aparência de graveto...
    Arnaldo segurou o queixo de Tina.
    _ Viu como eu te fiz sorrir, amiga? Sou o melhor palhaço da paróquia!
    Um sorriso tímido brotou no rosto de Tina.
    _ Obrigada, Deus... Obrigada por me dar amigos como tu, Arnaldo.
    _ E agora, vê se entra nesse ônibus e mostra pra esse câncer que é Deus que manda na tua vida, e tu que manda no teu corpo!
    Tina esboçou um sorriso mais confiante diante das palavras de Arnaldo.
    _ Obrigada mesmo. Tu é um amigão!
    _ Eu prometi pro Claudio que eu não te deixaria cair.. E não vai ter doença que te derrube! Agora vai, e mostra tua força! Firme e forte, amiga!
    Conforme o combinado, a reunião com as diretorias das duas igrejas foi realizada.
    _Toda essa ajuda vai levantar a família toda! A madeireira vai fazer uma parte... Precisamos de pessoas pra ajudar a reforma...
    Edson e Claudemir prontificaram-se:
    _ Nós vamos fazer os detalhes que faltam. Vamos fazer também uma rampa de acesso para pessoas especiais... O acesso à cadeirantes é importante.
    Arnaldo fez uso da palavra.
    _ Eu tô preocupado com a despensa da família. Enquanto ela estiver fazendo a radioterapia, não poderá trabalhar...
    Osvino sugeriu:
    _ Eu tenho uma ideia! Vou fazer minha festinha de aniversário e vou pedir pro pessoal trazer mantimentos pra doar pra família dela, ao invés de presentes pra mim...
    Ana emendou:
    _ Que excelente ideia, seu Osvino! Eu também vou ter aniversário daqui a duas semanas... E vou fazer o mesmo que o senhor! Assim, nada vai faltar...
    À tardinha, dois caminhões carregados de material de construção estacionaram no pátio de Tina. As crianças ficaram curiosas.
    _ O que é isso, tio? Quem comprou isso? Minha mãe não tem dinheiro pra pagar essas coisas.
    Os funcionários da madeireira descarregaram todo o material.
    _ Já está tudo pago, meninas! Agora, só construir!
    As crianças entreolharam-se.
    _Tudo pago? Construir? Não entendi...
    _ Vamo terminar de arrumar a bagunça que deu depois da faxina, gente! A mãe tá quase chegando!
    Ao aproximar-se de casa, ao retornar da radioterapia, Tina estranhou quando viu aquele material de construção em seu pátio.
    _ Ué... Alguém descarregou material de construção por engano aqui.
    Arnaldo sorriu.
    _ Negativo! É uma das nossas surpresas pra ti!
    _ Como? Surpresas? Então...
    _ Sim... Estava tudo planejado! As duas diretorias das igrejas da Serra Grande fizeram promoções pra comprar tudo isso. O Claudemir foi que teve a ideia e puxou à frente do plano...
    _ Eu não consigo acreditar...
    _ Pois pode acreditar, sim! Vamos reformar tua padaria! E vai ficar melhor que era antes do incêndio... Com rampa de acesso... Tudo certinho!
    _ Mas... O trabalho de pedreiro custa caro...
    _ Vai ser trabalho de equipe! Deixa com o pessoal lá das igrejas e com Deus! Tu só precisa cuidar bem dos teus filhos e fazer o tratamento certinho...
    _ Mas... Não tenho palavras...
    _ Nada de"mas"...  As únicas palavras que queremos ouvir é "obrigado a Deus" e"eu tô curada"!
 

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