A coleção de Francisco

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Em Igrejinha...
Francisco estava inconformado. Entrou nas dependências da rádio, com o cenho franzido, resmungando:
_ Não é possível! Isso não tá certo! Não é justo!
Sentado à mesa de som, Juvenal cobriu o microfone com a mão.
_ O que aconteceu, guri?
Francisco estava desolado. Sentou-se tristemente.
_ No hospital... Não me deixaram ficar com a mamãe, só porque ainda não tenho dezoito anos... Isso não é justo! Pegaram minha carteira de identidade e viram que falta só um mês, e não deixaram eu ficar lá com a mãe, pra cuidar dela...
Juvenal interrompe a transmissão, preocupado.
_ Vou chamar o Arnaldo pra ficar responsável pelas coisas aqui. Vou imediatamente até o hospital, ficar com ela.
_ E a Valéria? E o Claudino? Como vamos cuidar deles? A tia Tina também tá no hospital, e pelo que a Lenice falou, é coisa muito séria também...
Juvenal olhou para o céu, pôs as mãos nos ombros de Francisco, e falou mansamente:
_ Filho... Chegou a hora de aprender mais algumas coisas sobre a vida... Sobre "confiar em Deus", acima de qualquer coisa. Vamos fazer nossa parte, dividir as tarefas, que vai dar tudo certo. Vou deixar o Arnaldo cuidando da rádio e do sítio. Tu e a Lenir vão cuidar da Valéria e do Claudino.
Diante das palavras de Juvenal, Francisco sentiu um tremor percorrer o corpo inteiro.
_ Eu e a Lenir? Sozinhos? Cuidando daquelas duas ferinhas?
Juvenal sorriu.
_ Não são "ferinhas", Francisco. São só duas crianças...
Francisco arregalou os olhos. Parecia estar em choque.
_ Duas crianças, que às vezes parecem dez, pela bagunça que fazem... E se... Eles vão carnear uma rã de novo???
Juvenal olhou seriamente para o filho.
_ Filho... Eu sei que tu tem pavor de sapo e rã, mas vamos rezar pra que eles não encontrem outra rã no banhado...
Francisco respirou fundo, olhando o céu.
_ Deus , leva todas as rãs pra bem longe do nosso banhado...
Juvenal sorriu.
_ Filho... A gente sempre sabia que um dia tu ia ter que enfrentar as coisas da maturidade, mas nunca sabíamos que seria assim. Não temos saída. Eu vou cuidar da Teresinha, no hospital, e tu vai ficar cuidando da Valéria...
Francisco, com a voz trêmula, tentou argumentar:
_ Pai... A Lenice vai cuidar da tia Tina, no hospital... Pelo que sei, a Lenir vai cuidar do Claudino... Tenho medo... A Valéria é uma menina...
Juvenal ergueu a voz e as sobrancelhas, seriamente, em tom de advertência:
_ Olha, Francisco... A Valéria é menina, sim. E por isso que recomendo que tu e a Lenir fiquem juntos pra cuidar das duas crianças. Não te esquece dos princípios que te ensinei. Respeita as crianças, e acima de tudo, respeita a Lenir!
Juvenal pegou o casaco sobre a cadeira.
_ Vou deixar o Arnaldo a par do que aconteceu e vou correndo até o hospital, ficar com a tua mãe.
Juvenal mal saiu pela porta, e dois verdadeiros redemoinhos entraram em disparada.
_ Eu ti pego, Dino! Esse caminhão é do Chico!
Francisco custou a acreditar que Claudino fugia de Valéria, segurando uma de suas miniaturas de caminhão. Arregalou os olhos, boquiaberto. Logo atrás das duas crianças, Lenir, ofegante, tentava convencer o irmão a devolver o mini-caminhão, apontando o dedo na direção da casa de Tina:
_ Claudino! Devolve já o caminhão pro Francisco! E já pra cadeira do pensamento! Ou vai ser pior pra ti!
Diante da voz imperativa da irmã, Claudino baixou os olhos e, a contragosto, colocou lentamente o mini-caminhão nas mãos de Francisco. Lenir não deu o assunto por terminado, apontando para o irmão:
_ E pede desculpas pro Francisco e pra Valéria! Agora!
Claudino baixou os olhos, timidamente. Lenir aumentou a voz, e repetiu, apontando para Francisco:
_ Agora! Pede desculpas! Ou...
O gaguejar infantil de Claudino deixou Francisco desarmado. Claudino baixou os olhinhos cheios de lágrimas, entendeu a mãozinha na direção de Francisco.
_ Disculpa, Chico...
Lenir não se deu por satisfeita. Com a voz incisiva, franziu o cenho para o irmão:
_ Promete que nunca mais vai pegar o que não é teu? Ou o "bicho mau"vai te levar pro inferno!
Claudino arregalou os olhos diante das palavras de Lenir. Duas grossas lágrimas caindo pela face:
_ Prometo... De verdade, mana... Desculpa, Chico... Não vou pegar mais teu caminhãozinho!
Claudino, àquelas alturas, já estava em prantos. Saiu correndo, em direção da casa de Tina. Francisco estava desconcertado.
_ Tu "pegou pesado" com o guri, Lenir... O que fez ele chorar daquele jeito?
Valéria encontrou a solução:
_ Vamo vê. A mamãe sempre pergunta quando choro "por que tu tá chorando?" Vamo perguntá pra ele, ora...
Francisco sentiu-se aliviado diante das palavras da irmãzinha.
_ Vamo conversar com ele...
_Isso se a gente achar ele. Ele se esconde toda vez que chora.
_ É só a gente ficar quietinho e escutamos o choro dele...
Francisco, Lenir e Valéria silenciaram. Logo escutaram a voz chorosa de Claudino. Lenir pediu silêncio:
_ Psssssiu... Ele tá "conversando com Deus. Vamos escutar!
Claudino, com o rostinho voltado para o alto, chorava copiosamente, atropelando as palavras:
_ Papai do Céu... "Não deixa o "bicho mau"me pegá, não ... Eu sei que eu não fui um"bom menino ", mas não me castiga... Me potege do"bicho mau"... Prometo nunca mais pegar os caminhãozinhos do Chico! Eu já vi a coleção de caminhãozinhos dele, mas prometo pra ti, Papai do Céu, que nunca mais vou pegar nenhum deles. Não deixa o "bicho mau"me pegá...
Francisco olhou para Lenir com o rosto livido , apreensivo. Um breve silêncio...
_ Acho que ele aprendeu a lição.
Lenir, Francisco e Valéria estavam prestes a se revelar do esconderijo, mas a voz infantil de Claudino dirigiu-se novamente ao alto, chorosa, continuando sua"conversa com Deus:
_ Aaaa, Papai do Céu... Quero te pedí pra fazê minha mãezinha ficá boa logo. Eu sei que ela tá muito dodói... Mas eu preciso da minha mãe aqui... Eu amo a mamãe...
Claudino olhou com surpresa para os três rostos que o fitavam com lágrimas nos olhos. Lenir quebrou o silêncio:
_ Que bonita essa "conversa com Deus"... Notei que veio do coração.
Francisco completou, abraçando o menino, com o rosto molhado:
_ E se o bondoso Deus permitir, nossas mamães vão voltar do hospital curadas.
Carinhosamente, Francisco afagou a cabeça do menino.
_ Obrigado por devolver meu caminhão, meu guri. Depois do Papai do Céu e de Jesus, a minha coleção de caminhões são meus maiores tesouros.

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora