A bruxa

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    O médico foi categórico.
    _ Pelos sintomas, sua esposa está com o mal de parkinson. Ela apresenta comprometimento nos movimentos, tremores, entre outros sintomas.
    Macega gaguejou diante do médico. Tentou pronunciar o nome que ouviu, sem compreender:
    _ Park... O quê? O que a Irene tem a ver com o parque? Ela tem verdadeiro horror a parques de diversões!
    _ Não é "parque", senhor. É Parkinson. É uma doença, e não um brinquedo. É um distúrbio do sistema nervoso central que afeta o comando dos movimentos, entre outros males. Mas, pra gente ter certeza, vou pedir para que ela faça alguns exames.
    Macega sentiu um aperto na garganta, ao indagar sobre os exames.
    _ Exames? E quanto vai custar pra ela fazer esses exames? Não temos dinheiro!
    _ Bom... A princípio, vou pedir só uns exames de sangue, pra ver se esses sintomas não são causados por outra enfermidade ou alguma carência de vitaminas. Depois, vou solicitar uma tomografia computadorizada.
    Macega e Irene, trêmulos diante da situação, não encontraram mais palavras. O médico finalizou:
    _ Eu peço que o Sr mantenha sua esposa sempre acompanhada , caso ela perca os sentidos novamente. Aqui está a requisição para fazer os exames de sangue. Voltem para consultar assim que tiverem o resultado do exame de sangue.
    Bastante abatido, o casal deixou o consultório.
    _ Temos que mudar nosso jeito de vivê, muié. Tu tem que comê melhor, pra esses exames que o Dr pediu não dá alterado.
    Irene soprou a fumaça do cigarro.
    _ Comer o quê, homem?Se o sovina do Arnaldo deixou a despensa vazia pra nós, e não temo grana pra comprar comida!
    _Temos que "descolar" umas coisas no armazém do Arlindo, muié. Acho que ele vai vender mais um tantinho fiado pra nós...
    Irene parou de repente, com o dedo em riste.
    _ O véio Arlindo já me falou mais que uma vez que não vende mais nada fiado pra nós. Lá terminou nosso crédito, mas tem a padaria da Tina, que não fica longe daqui... Dizem que os quitutes caseiros que fazem lá são de derreter na boca! Vou lá amanhã, pra ver se compro umas bolachas e pão fiado... Vai dar pra comer uns dois dias, pra nós!
    Macega olhou para Irene contrariado, pois tinha conhecimento sobre o fato de que Arnaldo estava lá.
    _ É melhor não, muié! Aquela padaria fica muito longe daqui, e tu não sabe quem tu vai achar por lá!... Tu não conhece aquela gente, é capaz deles não vender nada fiado...
    Irene deu de ombros e sorriu, tentando acertar a postura, porém, sentia as costas cada vez mais arqueadas.
    _ Eu tenho meus truques, Maceguinha! Eu boto minha melhor roupa e minha bota de salto e vou bem chique, ué! Tenho certeza que aquele pessoal, quando olhar pra mim, toda chique, vai me ver como uma possível cliente rica e  vai me vender fiado.
    Macega ergueu as sobrancelhas novamente, em tom de advertência:
    _ Tu não vai não, muié! Se tu for, vai te arrependê...
    A mulher estava decidida:
    _ Eu vô sim! Não é tu que vai dizer o que eu posso ou não posso fazer! E eu nunca comprei nada lá naquela padaria, e eles vão me vender fiado fácil, fácil...
    A madrugada seguinte, Irene saiu silenciosamente do quarto, e para não acordar macega, foi até a cozinha, segurando seu melhor vestido preto. Vestiu-o em silêncio, calçou suas botas de salto alto, saindo e fechando a porta silenciosamente.
    _ Não vô ouvir o Macega! Ele não manda em mim... E se ele  for comigo, pode estragar minha pose de mulher rica na padaria. Aquela gente vai olhar pra ele, acabado do jeito que tá, e não vão vender nada fiado pra mim...
    Irene, convencida de que seu plano seria infalível, foi percorrendo a estrada íngreme que a separava da padaria. Vez por outra dobrava o tornozelo, devido ao salto alto afundando no saibro. Parava para fumar e em seguida seguia novamente, praguejando:
    _ Essa porcaria de estrada de chão! Já poderia ter asfalto aqui! Isso cansa minha beleza!
    Com os primeiros raios de sol iluminando a padaria, Irene chegava às imediações. Arriscou e bateu palmas. Com o barulho, Francisco pulou do alto da cama beliche e espiou pela janela. Voltou ao interior do cômodo,  tocando de leve o braço de Lenir que dormia abraçada às crianças na parte inferior da beliche.
    _ Mana... Tem uma mulher estranha lá fora... Toda esquisita, tão bizarra que parece até  assombração, ou... Uma bruxa!
    Lenir ergueu-se para ver melhor. Seus olhos percorreram a janela, porém, não encontraram nada.
    _ Não vi nada. Tu tá é sonhando, Chico!
    _ Vamo até a porta da cozinha, que eu te mostro que não tô sonhando, mana. Tem alguém batendo palmas lá fora, e tenho certeza que é aquela bruxa.
    Lenir e Francisco dirigiram-se até a porta da cozinha, abrindo-a lentamente , por precaução.
    _ Quem é a senhora? O que deseja?
     Irene tentou segurar a postura ao responder.
    _ Eu moro a uns dois quilômetros daqui... Eu soube que aqui nessa padaria os doces e salgados são muito bons e eu gostaria de experimentar. Posso levar algumas amostras, pra depois fazer o pedido?
    Os jovens entreolharam-se. Após reparar o barro nos sapatos de Irene, Lenir sorriu educadamente.
    _ A essa hora? São seis horas da manhã, e estamos fechados.
    _ Eu sei que é cedo, mss eu não posso pegar muito sol e vim bem cedinho. Posso provar?
    _ Acredito que possa provar, sim senhora. No momento não estamos produzindo nada de novo. Mas ainda temos algumas amostras dentro do prazo de validade.
    Irene empinou o peito, altiva,  com os olhos brilhando diante da perspectiva de comer guloseimas.
    _ Se realmente for tão gostoso como falam, vou fazer um pedido enorme, pra daqui a uma ou duas semanas!
    Lenir olhou para as botas cheias de barro de Irene, indicando educadamente a lateral externa da porta.
    _ Por favor, pode tirar suas botas e deixar ali ao lado da porta. Calce essas pantufas, por favor.   Entre e sente-se. Vamos buscar as amostras na câmara fria da padaria.
    Irene deixou as botas no lugar indicado, arrastando os pés ao calçar as pantufas, sentando-se altiva na poltrona indicada pela moça. Lenir e Francisco dirigiram-se até a câmara fria, porém , não notaram que Claudino e Valéria espreitavam silenciosamente aquela figura patética que se esforçava inutilmente para parecer uma senhora de classe, ensaiando um cruzar e descruzar  de pernas repetidas vezes.
   _ Vem, Valéria... Essa tia tem cara de bruxa. Vamo saí daqui!
    Silenciosamente, as duas crianças voltaram para o quarto, abriram a janela e saltaram para o lado externo da casa. Ao reparar o par de botas de Irene ao lado da porta, os olhos de Valéria brilharam. Puxou o amiguinho para o lado, cochichando:
    _ Vem cá, Claudino! Tenho uma ideia! Essa tia feia com cara de bruxa tem que saí voando daqui! Temo que fazê uma coisa pra ela sumí daqui e não voltá nunca mais...
    Com os olhos arregalados pelo medo, Claudino seguiu a menina, que dirigiu-se até o porão externo da casa, onde pegou um punhado de serragem. Ao lado, encontrou um ninho de ovos de uma das galinhas de Tina. Os olhos da menina brilharam de repente.
    _ Tenho mais uma ideia! Eu acho que vamo fazê ela sumí daqui num estalar de dedinhos!
    Valéria pegou dois ovos. Os olhos de Claudino brilharam diante da perspectiva de afastar aquela mulher assustadora. Estalou os dedinhos sorrindo, e repetiu:
    _ Pluft!!! Sumiu!!!
    _Bem quietinho... Psssiu... Vem aqui...
    Pé ante pé, silenciosamente, as duas crianças foram esgueirando-se até onde Irene deixara as botas, distribuíram igualmente a serragem  no interior de ambas. Após colocarem os últimos grãozinhos de serragem, puseram um ovo no interior de cada bota. Valéria piscou para Claudino.
    _ Prontinho! Essa bruxa vai saí "voando"daqui e vai sumí pra sempre! Pluft...
    Cobrindo as bocas com as mãozinhas, as duas crianças seguraram o riso, saindo de fininho, enquanto Irene roncava. Parecia dormir profundamente na poltrona. Lenir tocou de leve o ombro da mulher.
    _ Senhora... Tá tudo bem? Aqui estão as amostras dos produtos que nossa padaria costuma fornecer!
    Irene saltou da poltrona, limpando disfarçadamente um filete de saliva que escorria pelo canto da boca.
    _ Ahh, sim... Desculpa, eu dormi muito mal essa noite. E essa poltrona macia me deixou tão relaxada que acabei dormindo.
    Os dois jovens entreolharam-se.
    _ Claro, a gente compreende. Aqui estão, senhora.
    Irene olhou gulosamente para as embalagens das amostras.
    _ Mmmm ... Parecem realmente deliciosos... Posso pagar quando eu voltar e fizer o pedido? Quero experimentar primeiro!
    _ Mas é claro, senhora. Minha mãe está no hospital no momento, mas acredito que ela volte logo. Venha fazer a encomenda quando precisar.
    Irene despediu-se, devolvendo as pantufas.
    _ Obrigada por emprestar as pantufas, e também a poltrona. Parece que eu estive nas nuvens!
    Enquanto Irene calçava as botas, fazendo uma careta a cada tentativa, os dois jovens entreolharam-se, segurando-se para não deixar o riso subir ao rosto. Irene saiu, tentando em vão caminhar corretamente, pois sentia que algo gelado e estranho se espalhava dentro das botas.
    _ Bom, mana... Espero sinceramente que ela não goste das amostras... Eu não fui com a cara dela, nem um pouquinho.
    Lenir tentou segurar a gargalhada por um tempo. Mas, assim que notou que a mulher estava longe, desatou a rir. As crianças saíram lentamente do esconderijo. Valéria, segurando a mão do amiguinho, estava curiosa:
    _ A bruxa já foi embora?
    Lenir estranhou que as crianças soubessem da presença de Irene, porém respondeu prontamente:
    _ A bruxa? Ahh, sim... Saiu "voando"!
    As crianças entreolharam-se, comemorando ruidosamente.
    _ Aeeeeeeee!!!
    Lenir inclinou-se diante do irmãozinho e da menina, séria.
    _ Meus amores... Eu estranhei que aquela tia não conseguia calçar as botas, e depois, parecia que tinha sopa dentro delas, pelo barulho que fizeram quando saiu caminhando... Por acaso, vocês dois têm alguma coisa a ver com isso?
    As crianças ficaram sérias de repente. Após um breve silêncio, Claudino, esfregando as mãozinhas, resolveu confessar, pausadamente:
    _ Mana... Aquela bruxa tinha cara de quem tava com fome, e tava roncando que nem um avião. Vai que é uma daquelas que comem crianças... Aí eu e a Valéria saímo devagarinho pela janela e... Aí achamo as botas dela e...
    Francisco olhou com seriedade para os pequenos.
    _ Então, resolveram fazer o quê? Contem pro mano e pra mana!
    Claudino segurou a mão de Valéria, em atitude protetiva.
    _ Vai... Colocar a gente de castigo? Não bota a Valéria não, mana. Fui eu... Fui só eu que...
    Lenir ergueu as sobrancelhas.
    _ Tu fez o quê, mano? Se falar a verdade, vou pensar se precisa de castigo ou não...
    _ É que a gente... Achou dois ovos no ninho do porão... E serragem... Aí...
    As crianças nem chegaram a concluir o relato. Francisco e Lenir entreolharam-se e caíram na gargalhada. Francisco abraçou Valéria e Claudino, erguendo-os ao colo.
    _ Sabe de uma coisa, crianças? Eu também tava com medo daquela bruxa. Ela parecia mais com um dragão! Vocês foram mais corajosos que nós... Vocês foram dois verdadeiros heróis! Mas só podem fazer o que fizeram, com as bruxas, como aquela lá... É capaz dela comer crianças mesmo...
    Lenir interveio:
    _ E falando em fome, vamos tomar café? Depois vamos ajudar vocês no dever de casa! De tarde tem aula.
    Francisco completou:
    _  E eu vou responder à carta do Mig enquanto vocês fazem o dever. Já faz dias que recebi a carta dele, perguntando como estão as coisas por aqui, e eu ainda não respondi... Acho que ele precisa saber da verdade.
    A ansiedade tomou conta de Lenir.
    _ E se... Se o Mig desistir do quartel quando souber da verdade sobre o pai dele não ter mais a casa? A gente conhece ele... Ele vai querer fazer justiça... E voltar pra cá.
    _ Vou escrever, mana! O Mig sempre foi sincero com a gente. É justo que nós também sejamos sinceros com ele. Depois do café, a gente lava a louça, tu ajuda as crianças a fazer o dever, e eu vou escrever pro Mig!
    Conforme planejado, após o café da manhã, a louça lavada, os quatro ajeitaram a mesa da sala para fazer as tarefas escolares e a carta ao amigo.

    "Igrejinha, 20 de setembro de 1991.

    Amigo Mig!
    É com muita saudade que eu e a Lenir escrevemos esta pequena carta.
     Estamos juntos na missão de cuidar da Valéria e do Claudino. Eles dão mais trabalho pra gente que uma dúzia de vacas. A gente gostaria de ter escrito antes, porém, as coisas estão meio confusas por aqui. Infelizmente, parece que tudo desandou de uns tempos pra cá. Eu e Lenir vamos ser sinceros...
    Primeiramente, em resposta à tua pergunta, o teu pai não tá atendendo o telefone na tua casa porque ele está morando provisoriamente na minha casa, porque uma emergência levou ele a fazer uma cirurgia na vesícula. E como, ao ganhar alta, ele precisaria de maiores cuidados, ele veio ficar com a gente. Mas ele já se recuperou bastante, e tá ajudando no serviço da lida com os bichos da tia Tina.
    Depois, em resposta à tua outra pergunta, as manas estão separadas pela vontade de Deus, por enquanto. A tia Tina teve que fazer uma cirurgia no cérebro e ainda tá em coma, mas a Lenice tá lá no hospital com ela, direto, cuidando dela.
    E por último, em resposta à tua outra pergunta... Eu tô ajudando a cuidar da minha irmã e do Claudino, porque a minha mãe teve um infarto e também tá no hospital. Como eu sou menor de idade ainda, meu pai tá ficando direto lá no hospital com a mamãe, e eu, ajudando aqui em casa. Fechamos a padaria provisoriamente. Assim que a mamãe e a tia Tina voltarem e estiverem bem, a gente reabre e tudo vai voltar ao normal.
    Bom, meu amigo... Acredito que tu vai entender o motivo da minha demora em responder à tua carta, porque a Valéria e o Claudino são mais ativos que dóis furacões.
    Agora, depois de tomar teu tempo, nos despedimos ( eu, a Lenir, o Claudino e a Valéria), pois ainda temos que fazer nosso almoço e levar o Claudino e a Valéria pra escola. Aguardamos tuas férias, pra gente matar essa saudade!
    Até um dia, Mig!
   
    Atenciosamente, Francisco."
 

    Em Santa Maria, após ler a carta, Miguel sentiu as lágrimas queimando a face, enquanto dobrava-a, decidido:
    _ Vou falar com o general Brackemeyer! Tenho férias vencidas e vou pra casa, ajudar lá. Um ano e meio aqui, e eu nunca tirei uma folga nem pra visitar o papai... E se o general Brackemeyer não liberar, vou pedir baixa e não volto mais. O pai, as manas e o Francisco precisam de mim por lá,  agora!
    Em Igrejinha, Irene abriu silenciosamente a porta de casa, entrando furtivamente. Macega , furioso:
    _ Então, onde tu foi a essa hora? Tava na casa de outro macho?
    O rubor subiu às faces de Irene.
    _ Eu... Eu fui buscar comida. Fui até aquela padaria que te falei ontem.
    Cada vez mais furioso, o homem falava aos gritos:
    _ Mas eu te falei que tu não era pra ir até lá, muié! Eu mal fecho os olhos pra dormir, e tu já corre pra lá! Tu merece mesmo é uma surra!
    Irene largou as embalagens sobre a mesa e adentrou no quarto.
    _ Eu faço o que bem entender da minha vida! Vou trocar de roupa e comer!
    _  Eu te mostro quem faz o que bem entende da vida, com uma boa surra!
    Macega puxou o cinto da calça que vestia e investiu atrás de Irene.
    _ Tu não me engana não, muié! Tu sai de madrugada pra ir atrás de macho, isso sim! Vô te mostrá quem é o Macega!
    Os gritos de Irene atravessaram a manhã deserta. Porém, ninguém ouviu, além de Macega. Tampouco viu as lágrimas que molhavam o travesseiro de Irene.
    _ É pra tu aprender a não sair num horário que pessoas normais costumam ficar em casa, e dormir. Se ainda ontem o médico falou que tu não é pra ficar sozinha, e hoje já sai sozinha, no meio da madrugada, tirando o sono das outras pessoas! Encontrou o Arnaldo lá, né?
    Irene ergueu a cabeça surpresa, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
    _ Arnaldo? Por que eu encontraria o véio lá?
    Macega aproximou-se de Irene, dando-lhe um tapinha nos glúteos.
    _ Pois é... Eu soube que quando ele saiu daqui, foi pra aquela casa, onde tem a padaria. Tu só pode ter ido atrás dele! Tava com saudade do véio, né? Tu não presta mesmo!
    O desespero tomou conta de Irene. Entre soluços, tentou justificar-se:
    _ Eu juro que eu não sabia que o véio tá lá! E eu não fui atrás dele, eu juro! Fui lá só pra pedir comida! Eu juro!
    Cada vez mais enraivecido, macega arremedando a mulher:
    _ "Eu juro, eu juro, eu juro..." Eu já tô cansado das tuas juras, Irene! Quem realmente fala a verdade, não precisa jurar... Chega de juras falsas! Deeeeu!!!
    Macega saiu, batendo a porta do quarto e girando a chave.
    _ E a partir de hoje, tu não vai mais sair sozinha. Nem de dia, nem de noite!
   

   
   

   
   
   

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