Claudio, desesperado, bateu à porta da casa do amigo:
_ Arnaldo! Acorda, homem! Acuda! Aconteceu uma desgraça!
Arnaldo, ainda atordoado pelo sono:
_ Fala, meu amigo! O que te traz a me acordar às cinco e meia de um domingo?
_ Aconteceu... A Pitanga...
As lágrimas rolavam pelo rosto de Claudio. Arnaldo, que nunca tinha visto o amigo chorar, sentiu a seriedade do assunto.
_ O que houve, meu irmão? Parece que caiu o mundo aos teus pés!
_ É assim mesmo que eu me sinto... A minha vaquinha caiu do barranco essa madrugada... Quebrou o pescoço e...
Pitanga era a vaca leiteira de maior valor de toda a pastagem de Claudio.
_ Caiu? Como assim?! Morreu?
_ Parece que alguma coisa tava me avisando... Tive um pesadelo sobre ela, mas não levantei. Sonhei que a Katrina, a vaca-mãe, me pedia socorro... Foi terrível! Depois, quando fui procurar elas, vi Katrina na beira do barranco, como se quisesse salvar a filha dela.
A expressão desolada de Claudio deixava transparecer a tristeza que a situação lhe causara. Arnaldo colocou as mãos nos ombros do amigo.
_ Vamos, homem. Contra a morte não existe remédio... Vou calçar minhas botas. Vamos ver se posso ajudar. Se ela acabou de morrer, tu ainda pode aproveitar a carne.
Claudio enxugou o rosto banhado de lágrimas. Tirou o chapéu e colocou a mão na cabeça...
_ Bahhh! Nem pensei em como vou contar pras crianças... Elas vão chorar muito quando souberem.
_ É... Não é bom deixar as crianças verem a cena.
_ Elas amavam brincar de montar a Pitanga... Ela era mocha e mansinha feito um cavalo.
_ Vamos arrumar uma equipe pra fazer a carneação. Vamos chamar mais uns vizinhos... Consegue chamar o Xóx, o Alemão e o Paulo?
_ Vou chamar também o Alceu e os Wolff.
_ E eu já trago o trator pra subir ela do barranco de onde ela despencou. Temos que agir rápido, para não estragar a carne!
_ Vou até em casa falar com a Tina. Ainda não tive coragem de falar pra ela.
_ As meninas vão ficar tão tristes... Ainda bem que o Miguel tá lá na casa do Juvenal, ele ficaria desolado, também.
_ Se nós, que somos adultos, temos dificuldade de entender a morte, que diremos das crianças?!
_ Vou pegar uma corda e levar a Katrina até a cocheira. Ela continua no topo do barranco, e não vai sair dali enquanto o corpo da Pitanga estiver lá embaixo. São bichos, mas elas têm alma sob o couro...
Claudio entrou na caminhonete com os ombros caídos. Enquanto procurava os amigos para que ajudassem na carneação, tentava pensar em uma maneira de contar para as crianças que a vaca que elas montavam havia morrido na queda do barranco. Decidiu que não deveria mentir, tampouco omitir. Deixou Tina a par da situação e entrou no quarto das gêmeas:
_ Meninas... Acordem... Tenho uma má notícia pra vocês.
Lenir esticou os braços, com um bocejo...
_ Paiê... Hoje é domingo... Precisamos levantar cedo pra quê?
Lenice, mais atenta ao que o pai falara, saltou imediatamente da cama, esfregando os olhos:
_ Falou em "má notícia", pai? Quem morreu?
Claudio encarou a filha, surpreso:
_ Como sabe que vou falar que alguém morreu, filha?
A menina juntou as mãos e explicou, imitando a voz grossa do pai:
_ Pai... Tu sempre fala: "pra tudo tem solução, menos pra morte".
Lenir sentou na cama, ainda sonolenta.
_ Morreu alguém que gostamos?
Claudio sentiu a garganta apertar, mas tinha decidido falar a verdade. Olhou para as filhas com tristeza no olhar. Sua voz quase não saiu:
_ Infelizmente, se foi alguém que vocês gostavam muito... A Pitanga.
A expressão incrédula das manas transparecia o quanto gostavam da vaquinha.
_ Não pode ser! Não se enganou, pai??!
_ Eu também pensei ser impossível de ter acontecido, mas aconteceu um acidente naquele barranco no fundo do potreiro.
Lenice, com os olhos marejados, indagou:
_ E a Katrina? Como vai ficar, sem a filha?! Uma não ficava longe da outra!
_ Eu sei, filha. As duas sempre se lambiam... Parecia que mostravam pra todo mundo que o amor de mãe e filha atravessava a fronteira das espécies. Muitos seres humanos não têm o amor que muitos bichos sentem.
Lenir olhou chorosa para o pai.
_ Mas pai, o que vamos fazer?
_ O tio Arnaldo vai usar o trator para trazer a Pitanga até aqui. Como ela acabou de sofrer a queda, podemos aproveitar a carne e eu vou pedir pra algumas pessoas que conheço pra ajudar. Vocês, levantem da cama e ajudem a limpar algumas panelas da cozinha.
Claudio levantou-se e saiu para tirar Katrina do local da queda, e Arnaldo já chegava com o trator para içar o corpo de Pitanga barranco acima e levar até a casa.
A tristeza estampada no rosto de todos revelava o que se passava no coração de cada um. Homens feitos, com lágrimas nos olhos, tentavam esconder o sentimento de desconsolo, ainda mais quando viram as meninas se aproximando do local onde aconteceria a carneação.
_ Temos que apressar isso, minha gente, ou as moscas se achegam! Meninas... É melhor vocês não ficarem aqui. Guardem apenas boas lembranças da Pitanga.
_ Tá bom, pai... Pena que o Mig não tá aqui. Vamos ajudar a mãe na cozinha.
As gêmeas voltaram para a casa enquanto ágeis mãos manejavam as facas que abriram o couro e extirparam o bucho. Em pouco tempo estavam destrinchados e dependurados os pedaços do animal, para que se esvaísse o excesso de sangue da carne.
_ Como vai fazer pra guardar tanta carne, Claudio? É uma vaca grande! Não quer vender uma porção? Estive até pensando em abater um dos meus terneiros, mas eu gostaria de deixar crescer um pouco mais. Assim não ficaria num prejuízo tão grande.
_ Posso vender, sim, mas só entre amigos. Ela era uma vaca saudável e as vacinas dela não são recentes. A carne tá própria pro consumo, então só me diga qual peça gostaria de comprar.
Arnaldo entrou na conversa:
_ Se tu tiver um rolo de arame farpado e grampos de cerca, posso refazer a cerca da beira do barranco enquanto vocês terminam aqui. Assim tu não vai ter que tirar outra vaca acidentada do buraco!
Claudio entregou as ferramentas para que Arnaldo refizesse a cerca e Katrina pudesse voltar ao potreiro, e voltou para junto dos companheiros.
_ Terminamos! Agora, vamos fazer a limpeza daqui! O sangue atrai moscas e urubus, temos que enterrar os dejetos e os restos pra não ficar nenhum cheiro!
Os amigos de Claudio voltaram aos seus lares no final da manhã daquele triste domingo.
_ Agora posso liberar a Katrina. Está prenha de oito meses e deve estar querendo pastar.
Claudio soltou a vaca e o pobre animal não seguiu o rumo do pasto, mas foi até o local do acidente. Arnaldo voltava de onde refizera a cerca. Os dois homens observaram o comportamento da vaca.
_ Ali na beira do barranco não tem mais pasto. Ainda bem que a cerca tá refeita!
_ Vamos tocar ela pra parte do potreiro onde ela pode pastar.
Claudio e Arnaldo estavam prestes a afastar Katrina dali quando a expressão dos olhos da pobre vaca fez com que os homens recuassem.
_ Olha, Claudio! Ela tá chorando... Vamos respeitar o momento de despedida dela. À tardinha, antes de buscar o Juvenal, voltamos aqui e a levamos para a cocheira.
Katrina ficou ali parada durante horas, olhando o vazio onde Pitanga caíra. As lágrimas do pobre animal não pareciam cessar. Ela era uma mãe velando a partida da querida filha.
Quando Claudio e Arnaldo retornaram no final da tarde, ela permanecia com o olhar fixo no local da queda de Pitanga.
_ Vamos tentar levar ela pra cocheira, pra que ela esqueça esse trauma...
Claudio colocou cuidadosamente a corda em Katrina, mas ela recusou-se a sair do local.
_ O que tem contigo, Katrina?
_ Parece em transe...
_ Só Deus pra explicar isso, meu amigo!
Katrina pareceu ter escutado a última frase de Claudio. Ergueu a cabeça e soltou um mugido tão alto que chegou a assustar os dois homens que ali estavam. Depois daquele estranho mugido de despedida, e apenas depois desse último adeus, é que a pobre mãe fez menção de sair dali, porque agora sua filha descansava.
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...