Devaneios

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    Tina não sabia o que dizer, tampouco o que fazer... Simplesmente não acreditava na cena que seus olhos insistiam em mostrar-lhe: No cemitério, dois caixões iguais, lado a lado, circundados por crisântemos brancos. O choro de Francisco e Miguel se misturavam aos murmúrios dos presentes.
    _ Coitada... Perdeu o maridoa pouco tempo! E agora, as duas filhas...
    _ Deve ter pecado muito pra ser castigada assim... Deus não deixa impune!
    _ Ela deixou o marido morrer... Deus tá fazendo justiça... Ela nem merece filhos...
     Os olhos de Tina, vermelhos de tanto chorar, procuravam em seu colo, o rostinho de Claudino. Era como se fosse esboçar a única esperança de vida que ainda lhe restava.
    _ Meu filhinho... Mamãe tá muito triste... Prometi ao teu pai que guardaria a vida das manas com a minha vida, e não consegui cumprir minha promessa...
    A vontade era de sair daquele ambiente triste.  Porém, a cena dos dois corpos inanimados das filhas, sendo velados, a impediam. Olhou para os crisântemos brancos, em seguida para os rostos pálidos das filhas, e sentiu mais uma vez aquela sensação de que estava sem chão... Apertou Claudino nos braços e seus olhos procuraram o céu, como a perguntar o motivo de Deus ter levado suas filhas... A voz silenciosa do coração clamava, enquanto mais lágrimas desceram pelo rosto de Tina.
    _ Deus... Eu não consigo acreditar! Não posso deixar as meninas partir assim... Não é justo, Senhor... Leve a mim, que estou com câncer, mas não leve as minhas filhas... Elas ainda têm uma vida inteira pela frente, e são as sementes do Claudio, que sempre foi tão bom pra todos...
    Algumas nuvens brancas pareciam misturar-se e formar os rostos sorridentes de Lenice e de Lenir. A vida das meninas, com Claudio, pareceu-lhe passar diante dos olhos... O nascimento prematuro... As travessuras da primeira infância... A queda de Lenir do cavalo... O falecimento de Claudio, que as deixara sem chão...
    _ Deus... Eu fui tão feliz com a presença delas... Mas, se é vontade do Senhor que elas façam parte do teu reino de anjos, que seja feita a sua vontade... Eu cumprirei a minha missão com o Claudino.
     Àquelas alturas, parecia até que os sorrisos das manas emanavam daquelas brancas nuvens que desciam lentamente sobre o cemitério, deixando-o coberto por uma densa névoa. A voz do pastor parecia rasgar o silêncio que imperava ali.
    _ Temos que apressar o funeral... Creio que teremos chuva!
    A névoa foi seguida por uma chuva fina, cuja água misturava-se às lágrimas de Tina... Olhou pela última vez aqueles rostos tão amados, antes que se fechassem os caixões... Fechou os olhos e orou:
    _ Deus... Cuida bem das minhas meninas... Que elas sejam anjos bons como sempre foram em vida, aqui, com a gente!
    Como num piscar de olhos, Tina despertou... Olhou para Claudino, adormecido em seus braços... Em seguida, olhou para os lados... Surpreendentemente, não estava no cemitério, mas em sua casa... Ergueu-se rapidamente, procurando o quarto das meninas, que dormiam profundamente, abraçadas aos seus travesseiros. Sentiu seus joelhos se dobrarem, e olhou para o alto...
    _ Deus... Obrigada por me devolver minhas filhas... Esse sonho serviu pra reforçar minha promessa: vou guardar a vida dos meus filhos com a minha vida!
   

                        *

    Miguel encontrava-se em uma estrada iluminada, cujas laterais tinham enormes plátanos que refrescavam o ar. Ele via uma menina ao longe, cujo rosto não conseguia descobrir quem era, mas que não lhe era estranho... Sentiu que, pela primeira vez, seu coração acelerava mais que o normal... Sentiu um calor intenso subir-lhe pelas pernas, indo parar no peito...
    _ Espera aí, menina... Eu já te vi em algum lugar...
    Aproximou-se lentamente, como se fosse temer alguma reação da menina... Seu rosto, agora nítido, transparecia uma leveza ímpar...
    _ Uau! Parece um anjo...
    A resposta dela foi imediata:
    _ Anjos não caminham... Anjos voam...
    Miguel parecia fascinado diante daquele jeito simples e leve da menina falar. Tentou falar, mas gaguejou:
    _ Ent... Então, tu é uma fada?
    _ Fadas também voam... E eu não tenho asas, que serviriam pra voar... Olha! Tenho braços... Servem pra abraçar...
    Miguel ficou ali, frente a frente com aquela menina que lhe estendia os braços, sem saber se deveria abraçá-la ou não...
    _ Não precisa ter medo de mim, Mig! É só um abraço!
    Diante daquelas palavras tão simples, ele não resistiu. Um abraço selou aquela sensação de bem estar que tomara conta de Miguel. Pela primeira vez, o calor de um abraço parecia misturar-se ao pulsar do coração.
    _ Tu é um anjo, sim... Ou uma fada... Só anjos e fadas trazem um abraço tão bom!
    Em uma fração de segundos, Miguel se viu sozinho. Como em um piscar de olhos, a menina desaparecera. Desorientado, Miguel acabara de despertar de um sonho estranho... Porém, ao despertar, notou que algo estranho tinha acontecido...
    _  Foi só um sonho! Estranho... Eu não fiz xixi na cama... Porque o meu colchão tá molhado?
    Miguel não sabia se conversaria com o pai sobre o ocorrido, ou omitiria.
    _ Se eu falar, é capaz dele rir de mim... Ou vai me dar uma surra ou um castigo... Ou, pelo menos, uma baita bronca...
    Com receio de ser castigado, resolveu calar-se. Porém, Arnaldo, ao entrar no quarto do filho, notou no jeito diferente dele, que tinha acontecido alguma coisa.
    _ Tu acordou diferente hoje, Miguel... Aconteceu alguma coisa? Brigou com alguém? Tá doendo o quadril?
    _ Não, pai... Só que...
    Miguel corou ao encarar o pai. Arnaldo pôs a mão no ombro do filho.
    _ Pode falar... Ou teu velho aqui não é mais teu melhor amigo?
    Miguel olhou para Arnaldo envergonhado.
    _ Não sei como falar, pai... Tu vai me dar uma bronca...
    _ Bom... Vamos fazer um trato! Primeiro, tu fala e eu escuto, sem interromper.. Depois, eu tento responder às tuas encrencas, e sem xingamentos! Fechado?
    O rosto de Miguel iluminou-se:
    _  Fechado! Tu é o melhor pai do mundo!
    _ Então, desembucha, guri! Não tenho o dia todo!
    Miguel começou devagarinho, com receio:
    _ É que... Tudo começou com um sonho diferente... Uma menina sem rosto...
    Arnaldo sorriu:
    _ Continue...
    _ Depois que ela chegou pertinho, eu vi o rosto dela... Era muito bonita, parecia até um anjo... Ou fada... Ou coisa assim...
    Arnaldo escutava Miguel em silêncio, com a mão no queixo.
    _Ela me abraçou... E eu senti umas coisas... Diferentes...
    _Mmmm... E?...
    _ Miguel passou a atropelar as palavras:
    _ E... Aí nada, pai... Eu acordei... E meu colchão tava molhado... Desculpa, pai... Mas eu não fiz xixi na cama... Não sei como ficou molhado!
     A princípio, Arnaldo fez cara de sério:
    _ E agora, meu pequeno aprendiz de adulto... Terminou?
     Miguel olhou receoso para o pai:
    _Sim... Vai me dar um castigo?
    _E o que tu acha que eu deva fazer?
    O olhar desorientado de Miguel demonstrava seu nervosismo.
    _ Não sei... Nunca me aconteceu... Meu colchão tá molhado...
    Arnaldo sorriu:
    _Pois então, de acordo com o trato, agora é a vez do capitão aqui falar...
    _ Desculpa, pai...
    _ Tu sabe que eu sou neto de índio, né?
    Arnaldo olhou pela janela, como se procurasse algo. Miguel não compreendeu...
    _ O que tá olhando, paíi?
    _ Tô vendo se tem sol hoje!
    _ E o que o meu colchão tem a ver com o índio? E com o sol?
    Arnaldo piscou para Miguel.
    _ Tudo a ver, marujo! Meu avô e sua tribo dormiam em redes. Ele sempre dizia que, se um "pequeno guerreiro" molhasse a rede, teria que estender ela ao sol, na aldeia, e dançar perto dela, até que ela esteja seca...
    Arnaldo não precisou usar de nenhum xingamento, mas suas palavras atingiram Miguel em cheio, que torceu as mãos e gaguejou:
    _Pa... Pai...  Preciso fazer isso? Não consigo dançar ainda, tô de muletas!
    A gargalhada de Arnaldo encheu o quarto.
    _ Tô brincando, marujo! Eu sei exatamente o que te aconteceu... E vou te explicar!
    Surpreso com a reação do pai, Miguel Sentiu-se mais confiante:
    _ Sabe o que me aconteceu... Como assim?
    Arnaldo tirou um livro da estante.
    _ Venha! Vou te explicar de uma maneira "limpa" o que aconteceu a esse pequeno"aborrecente"... Prefiro explicar assim do que saber que tu aprendeu na rua, de uma maneira "suja"!
    Ao abrir o livro, Arnaldo parou na página que falava sobre sexualidade na puberdade.
    _ Aqui... Vamos ler juntos... O que tu não entender, me pergunta, tá?
    Miguel foi lendo, página após página. Sua fisionomia foi ficando séria.
    _ Pai... Aqui diz que todos os meninos normalmente passam por isso, e muitas vezes...
    Miguel fez uma pausa. Em seguida, continuou:
    E o senhor já foi um menino... Isso quer dizer que o senhor...
    Arnaldo brincou:
    _ Bem capaz! Eu não! Eu nasci como um girino, depois, criei pernas e braços e me transformei num homem!
    Miguel arregalou os olhos diante da brincadeira do pai.
    _ Bahhh! Não acredito!
    _ E não precisa acreditar mesmo, marujo! Tu já sabe quando eu tô brincando!
    _ Mas... O senhor também passou por isso?
    _ E tu acha que não? Perdi a conta de quantas vezes eu acordei molhado, sonhando com meninas bonitas... Ou tu acha que não tinha meninas bonitas na minha adolescência?
    Miguel, àquelas alturas, já se mostrava mais tranquilo.
    _ Então, pelo que eu li aqui, vou dançar muito ainda ao redor do meu colchão molhado, né pai?
    Arnaldo sorriu:
    _ Eu tava brincando sobre a dança, filho! Basta colocar o colchão no sol. Tu tá dispensado da dança! Ainda mais que tu tá usando muletas! Imagino tu dançar de muletas!
   A gargalhada de Arnaldo fez Miguel rir do acontecido.
    _ Obrigado, pai! Se Deus quisesse me dar outro pai, eu não ia aceitar, não!
    _ Então, marujo... Vamo tirar esse popozão do colchão e colocar ele no sol, ou alguém vai dormir num colchão molhado essa noite!
   

   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora