O destino de Irene

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    Como sempre, Irene nem ao menos esperou o convite para entrar na casa de Edelvina. Abriu a porta da cozinha, descarregando as palavras.
    _Vina... Tu tem que me ajudar! Eu tô muito doente, e tu tem que fazer um dos teus trabalhos pra mim. E "bem amarradinho",pra dar certo.
    Ao notar que a vizinha estava à mesa , arrumando o lanche, logo puxou uma cadeira, se convidando:
    _ Mas o que temos aqui? Eu cheguei em boa hora... Vou te fazer companhia!
    Meio sem graça, Edelvina preparou um sanduíche e serviu uma xícara de café com leite para Irene. Em seguida, foi até a cristaleira, trazendo mais duas xícaras.
    _ Claro... Pode se servir, sim... A Eliane também vai nos fazer companhia no lanche. Ela tá lá fora, arrumando umas coisinhas pra um ritual.
    _ Ahhhh, eu soube que ela também faz os "trabalhos", que nem tu... Ela se parece muito contigo... Eu queria tanto que minha filha fosse parecida comigo, mas ela fugiu de casa quando tinha só nove anos.
    Edelvina ficou surpresa.
    _  Onde foi isso? Mas... Isso já deve fazer muito tempo... Tu nunca foi à procura dela?
    Irene sacudiu os ombros.
    _ Eeeu? Eu dei graças a Deus,  que provavelmente alguém deu um jeito de abrigar ela, porque...
    A mulher nem conseguiu terminar a frase, e um gemido de dor cortou o ar. Um forte tremor nas mãos fez o conteúdo quente escorrer em seus dedos...
    _ Aaaai!
    Edelvina, disfarçando, foi até a porta, viu a filha em perseguição à única galinha do terreiro.
    _ Tá pronto o café, Eliane! Tá bem quente, como tu gosta!
    _ Já vou! Vou terminar depois, porque essa maldita galinha não se deixa pegar!
    _ Mas é a única que temos. E foi tu que trouxe ela pra cá, semana passada!
    Eliane cruzou o olhar enfurecido com os olhos de Irene.  Resmungando,  entrou no banheiro, lavando demoradamente as mãos. Ao voltar, notou à contragosto que Irene ainda estava lá. Olhou com desdém a figura corcunda que parecia travar uma luta com a xícara de café. Sinalizou para a mãe, no cantinho da cozinha:
    _ O que essa senhora esquisita tá fazendo aqui, na nossa casa? Isso dá azar, deixar um "Corcunda de Notre Dame"entrar aqui...
    A moça interrompeu a frase ao encarar o olhar de reprovação de Edelvina, que falou em voz baixa:
    _ Ela veio aqui pra gente fazer umas "amarrações" pra curar ela. Vamos usar aquela galinha que tu trouxe, que insiste em não querer ficar aqui. Ela é da cor que o ritual exige.
    _ E ela tem dinheiro pra pagar? Não faço de graça!
    _ Olha, se ela não pagar, a gente faz um extra, pra essa "amarração"não funcionar. Aí, ela vai pro beleléu!
    _ Taí, gostei! Tô até torcendo pra ela não pagar... Eu ia gostar muuuuuito de ver essa véia se dar mal. Cansa minha beleza aguentar uma pessoa dessas aqui em casa!
    Irene parecia sentir o motivo pelo qual as duas mulheres estavam cochichando.
    _ Eu vou pagar a simpatia. Eu dou um jeito de pagar direitinho! Nem que eu tenha que limpar a casa de vocês, ou lavar a roupa...
    Diante dos argumentos de Irene, Edelvina decidiu:
    _ Tá certo, Irene. Vamos fazer amanhã mesmo. E se tu não tiver dinheiro pra pagar, pode trabalhar pra gente pra pagar.
      Edelvina marcou:
    _ Amanhã bem cedinho, em jejum, tu vem aqui pra gente fazer a primeira parte do ritual. A gente já deixa a galinha preta presa, pra que não fuja de novo.
     Sentindo-se vitoriosa, com as mãos trêmulas , Irene saiu gemendo de dor. Eliane seguiu a figura patética com o olhar, mascando ativamente o chiclete, não perdendo a oportunidade de ironizar:
    _ Será que essa daí tem alguma simpatia pra melhorar? Só dando um corpo novo, acho...
    As gargalhadas encheram a casa de Edelvina, que apressou-se em puxar a gaveta dos guardados dos seus costumeiros rituais.
    _ Azeite de dendê, milho, cordão, pote pra água... Tá quase tudo aqui... Só falta o bicho do sacrifício pra agradar os orixás...
    _ É melhor tu pegar e trancar aquela penosa pra não fugir. Ela não gosta de mim!
    _ Deve ser porque ela não é nossa. De onde tu trouxe ela?
    O longo silêncio foi a resposta da moça, mudando de assunto quando voltou a falar:
    _Vou tomar um banho de sal grosso... A presença dessazinha daí me deu uma sensação de que "sombras" voam ao redor dela...
    _ Infelizmente, eu também tenho essa sensação...
    Antes do dia seguinte raiar, pesadas nuvens carregando todos os pontos do céu. Irene , andando de um lado para o outro, após consultar o velho relógio de parede, decidiu:
    _ Três horas da manhã, e eu não peguei no sono ainda! Vou agora mesmo até a casa da Vina, pra fazer o ritual!
    Irene pegou a lanterna e seguiu o atalho que a levaria à casa da amiga, batendo à porta com veemente insistência.
    _ Ei... Vina! Eu já tô aqui! Abre a porta pra mim, antes que chova! Não gosto de me molhar...
    Edelvina, vestindo seu velho roupão preto, mal conseguindo abrir os olhos, descabelada, abriu a porta aos bocejos.
    _ Agora ? A essa hora? São três e meia da madrugada...Nem amanheceu ainda. Até parece que tu não foi nem dormir!
     A mulher nem esperou um segundo convite. Entrou correndo para dentro da casa de Edelvina, sem parar de falar.
    _ E não dormi mesmo, Edelvina! Eu tô muito excitada pra dormir, sabendo que loguinho vou tá boa de novo! Quando vamos fazer o ritual? Fala, vai... Fala...
    Já quase perdendo a paciência, Edelvina bocejou e decidiu:
    _ Bom... Eu falei que tu era pra vir "cedinho", mas não falei que era pra virar a noite sem dormir e me tirar da cama no meio da madrugada! Eu não dormi o suficiente ainda, e não vou deixar de descansar, em benefício de um ritual que eu nem sei se vai ser pago. Trouxe o dinheiro?
    Diante da pergunta direta de Edelvina, Irene gaguejou:
    _ O o olha... Eu tô sem dinheiro, mas faço questão de trabalhar pra ti, pra pagar tudinho!
    _ Pois bem... Se tu tá com tanta pressa pra fazer o ritual, então, certamente não vai se importar de trabalhar antes de receber o benefício.
    Com os olhos brilhando diante da espectativa de ficar boa, Irene apressou-se em responder:
    _ Mas é claro, Vina. Não me importo, não. Posso fazer qualquer serviço pra ti! Só quero viver sem essa tremedeira nas mãos, essa corcunda, e esse monte de problema de saúde que tá me tirando o sono... Tô com umas crises de insônia terríveis!
    Edelvina abriu a porta de um quartinho sob a escadaria da casa.
    _ Então, eu te apresento a área de serviço: aqui tem um tanque, roupa suja pra lavar, roupa seca pra passar e material pra limpar a casa. Vou deitar de novo, como eu tinha planejado, até o raiar do dia. Tu decide se quer que eu faça o ritual pra ti... E que fique tudo bem feitinho!
    Diante do olhar arregalado de Irene, Edelvina continuou:
    _ Ahhhh... E lá na pia da cozinha tem a louça da janta de ontem pra lavar! O detergente e os panos de prato estão dentro do armarinho, ao lado da pia.
    Pensando que Edelvina tinha terminado, para tentar agradar, Irene dirigiu-se até a pia da cozinha:
    _ Vou começar com a louça, primeiro... Aí, quando tu acordar, pode fazer teu café sem louça suja na pia!
    Edelvina sorriu, erguendo as sobrancelhas, em tom de advertência:
    _ Ótimo! E tu já está sabendo... Sem um serviço bem feito, não teremos ritual!
    _ Não te preocupa, Vina! Vou fazer tudinho até tu levantar! Vou deixar tudo limpinho e organizado!
    Edelvina voltou à cama, se esforçando para não rir na presença de Irene. Deitou-se tranquilamente, puxando de leve um risinho irônico.
    _ Essazinha pensou que iria me tapear... Me poupe! Eu conheço ela mais do que ela imagina!
    Irene começou as tarefas  lavando a louça . Empilhou tudo no escorredor de louças, a fim de esperar a água do enxágue da louça aquecer. Correndo até a área de serviço, pegou um enorme balde, pôs todas as roupas do cesto, de molho, usando o mesmo vasilhame.
    _ Pronto! Vou deixar tudo junto no balde, assim economiza sabão em pó! Vou lavar o chão enquanto a sujeira da roupa desgruda. Depois, só passar uma água limpa e pronto!
    Começou a puxar as cadeiras, poltronas, mesa, tudo para um canto da casa. Lavou o chão, porém, não se lembrava onde Edelvina colocava cada móvel. Deu de ombros...
    _ Aaaa... Eu vou botá onde eu achar que fica melhor mesmo! Eu sou muito organizada! Assim ainda dá tempo de lavar a roupa, até ela acordar!
    Dirigindo-se até o tanque de lavar roupas, olhou para o balde de roupas em molho, tirou a primeira peça... Na blusa tinha enormes manchas avermelhadas.
    _ Estranho... Essa blusa da Vina sempre era branca... Será que ela tingiu de vermelho?
    Realmente, a blusa era branca. Porém, o fato de Irene ter colocado de molho todas as roupas do cesto, brancas e coloridas, deixaram evidente que já não tinha mais nenhuma peça totalmente branca no balde.
    _ Será que manchou?
    Deu de ombros. Esfregando e enxaguando rapidamente todas as peças de roupa, torceu-as e estendeu no pequeno varal da área de serviço.
    _ Pronto! Agora, eu mereço um pito! Um cigarrinho de recompensa!
    Esticada sobre uma das poltronas da sala, soprando a fumaça do cigarroe jogando as cinzas ao chão, Irene nem notou a presença de Edelvina, que olhava autoritária.
    _ Aqui não se fuma, dentro de casa! Terminou o combinado?
    Irene saltou da poltrona, apagou o cigarro e jogou-o pela janela, disfarçando:
    _ Tá tudo prontinho, Vina! Pode conferir!
    _ Então, vamos até a cozinha...
    Edelvina franziu o cenho ao ver as louças empilhadas, ainda aguardando o enxágue. Irene tentou justificar:
    _ Eu não tinha água quente na hora que lavei, fui esquentar água e depois esqueci...
    Edelvina quase caiu de costas quando, ao abrir a porta da área de serviço, deu de cara com todas as roupas manchadas, dependuradas no varal.
    _ Mas... O que aconteceu com essas roupas? Minha blusa branquinha... Não acredito!!!
    Torcendo as mãos, Irene procurava as palavras:
    _ Bom... Pelo menos, elas não estão mais sujas. Lavei tudinho!
    Desolada, Edelvina parou na porta da sala de estar.
    _ Que... Que furacão entrou aqui, pra deixar tudo bagunçado desse jeito?
    Irene saltou para a frente, esperando um elogio.
    _ Então... Eu não lembrei de onde tirei cada móvel, e como eu sou uma pessoa muito organizada, arrumei do meu jeito! Gostou?
    Um baque... Um corpo desmaiado ao chão. Irene, ao invés de acudir a amiga, sentiu seu ego crescer ainda mais, desferindo verdadeiras asneiras:
    _ Nossa, Vina! Tu gostou tanto do meu serviço que desmaiou de felicidade! Vou vir aqui todos os dias, limpar e organizar tua casa e lavar tua roupa!
   
   
   
   
                            *

    O primeiro raio de luz despertou o pequeno Cisco, que dormia encolhido dentro da chocadeira, em um pequeno ninho de folhas secas, improvisado por Lenir e Francisco. Claudino, ao ouvir os primeiros pipilos do pintinho, saltou preocupado da cama. Apressou-se a acordar Lenir e Valéria.
    _ O Cisquinho tá acordado! Acorda , mana! Acorda, Valéria! Ele deve tá com fome e com frio...  Vamo pegá ele e dá comidinha pra ele... Logo vai dá sol e aí ele vai passiá com a gente! Vamo botá ele dentro do teu cabelo, pra ficá quentinho....
    Os cuidados com o pequeno pintinho órfão já haviam se tornado uma rotina diária. Para dormir, a pequena chocadeira servia para aquecer o pequeno animalzinho, e durante o dia, por vezes era levado para passeios ao sol, enrolado entre as mechas dos longos cabelos de Lenir ou de Valéria. Claudino, por vezes, ficava amuado:
    _ Eu quero ter cabelo grande também, mana. Quero levar o Cisquinho pra passiá como tu e a Valéria...
    A irmã, tentando contornar a situação, foi logo sugerindo:
    _ Eu tenho uma ideia! Ele só fica no meio dos nossos cabelos porque tá com frio...
    Com o pequeno pintinho enroscado em seus longos cabelos, Lenir adentrou na casa. Sem entender, o menino fez beicinho:
    _ Tô com saudade da minha mãe... Ela sim que ia ter uma ideia boa pra eu levar o Cisquinho pra passiá sem ele sentir frio...
     Claudino não segurou o choro. Valéria tentava consolar o amigo. Abracou-o, enxugando as lágrimas no rosto dele.
    _ Não chora, Dino... Não quero te ver triste. Aí eu fico triste também, e vô chorá também... Tu é que nem um irmão pra mim...
    As duas crianças ainda estavam abraçadas quando Lenir saiu da casa, segurando uma pequena blusa de moletom.
    _ Aqui, mano... Vem vestir!
    Sem compreender, o menino enxugou as faces banhadas em lágrimas com as costas da mão, reclamando, apontando para o pequeno pintinho enroscado entre as mechas do cabelo da irmã:
    _ Não sou eu que tá com frio, mana. É o Cisco!
    _Aqui! Veste!
    O tom imperativo de voz de Lenir fez o menino vestir o moletom. A irmã subiu o capuz e aninhou cuidadosamente o pintinho sobre o cabelo do menino.
    _Pronto! Agora, o Cisquinho não vai ficar com frio se ele estiver no teu cabelo!
    Os olhos do menino brilharam de alegria quando, ao olhar-se no espelho, viu que cisco estava dormindo, aninhado entre os cabelos e o capuz de Claudino. O menino caminhou cuidadosamente para que o pequeno órfão não caísse.
    _  Vô levá ele pra passiá, Valéria! Vem comigo?
    Lenir, ao ver a alegria das crianças, sorriu para o céu:
    _ É... Como diria a mamãe: "Obrigada, meu Deus... Obrigada, meu Pai"!

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