O acidente de Mary

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    _  Albertina...  Você sabe em qual estante da biblioteca estão os livros que falam sobre células tronco?
    A velha senhora, que já acompanhava a casa a muitos anos,  respondeu:
    _ Olha... Pelo que lembro, eles estão naquela estante da esquerda na biblioteca, bem no alto. Na parte superior da estante.
    Sorrindo, Mary fez reverência à enfermeira.
    _ Obrigada, nobre senhora!
    _ Mas o que esta bela senhorita quer com os livros sobre células tronco?
    _ É que eu comecei uma pesquisa a algum tempo, sobre o assunto. E eu quero tirar umas dúvidas.
    _ Quer que eu pegue os livros pra ti? Eles estão na parte superior da estante. Não vai alcançar pra pegar!
    _ Não precisa, Albertina. Vou usar a escada. Ela encaixa direitinho na estante da biblioteca.
    Albertina sorriu.
    _ Sempre encontrando soluções pra tudo! Essa menina vai longe, né Dona Francesca?
    Albertina percebeu, ao olhar para a patroa, que seus olhos estavam marejados.
    _ Eu também fico emocionada toda vez que eu vejo essa menina... Tão cheia de vida... Vamos ao banho, Dona Francesca? Depois, quando a Angela vier pra fazer a fisioterapia na senhora, vai tá cheirosa e bonita!
     De repente, a respiração de Francesca ficou ofegante, e em seguida, uma aflição incomum parecia submergir daqueles olhos azuis.
    _ Calma, Dona Francesca... A senhora sempre gostou de tomar banho. Nunca ficou aflita... Calma, senhora... Calma...
    Albertina já não sabia o que fazer para acalmar Francesca. Parecia que o mundo tinha virado pelo avesso para ela.
    _ Calma, senhora... Então vamos deixar o seu banho para mais tarde, quando estiver mais tranquila.
    No instante seguinte, viu-se o auge da aflição nos olhos de Francesca. Seus pés pareciam querer sair da cadeira de rodas, e suas mãos, antes inertes, apertavam os dedos com força.
    _ O que está acontecendo com a senhora, Dona Francesca? Está se sentindo mal?
    Os olhos de Francesca explodiram em lágrimas, olhando para a porta da biblioteca. Naquele momento, um barulho e o grito de Mary cortaram o ar.
    _ Aaaaaaai!!!
    Albertina sabia que algo estava errado, e correu até a biblioteca. A cena que seus olhos encontraram foi uma escada quebrada e a criança inconsciente, entre diversos livros caídos ao chão.
    _ Maryyyyyy!!!
    _ Fernando! Miloca! Acudem! Aconteceu uma desgraça! A pequena Mary caiu na biblioteca! E está desacordada!
    A governanta e o motorista correram para levar Mary ao hospital.
    Longe dali, em Igrejinha...
        _ Mig!!! Tu tá cego? Olha a bola!!! Cuida,  o Adriano vai fazer o gol!!!
    _ Gooooooool!!!
    Naquele momento, Miguel sentiu as pernas fraquejar e cair. Como se fosse areia nas mãos do tempo, caindo ao chão, inconsciente. Sentiu-se flutuar sobre uma branca nuvem. E sentiu que alguém segurava sua mão.
    _Mary!
    Porém, curiosamente, a irmã soltou sua mãol, desaparecendo tão estranhamente como surgira. Um grito corta o ar.
    _ Maryyyyyy!!! Volta!
    _ O que deu em ti, Miguel?
    Miguel entreabriu os olhos, porém, seu olhar estava parado, procurando aquela nuvem onde estivera com a irmã. A professora segurava-lhe a mão, massageando-lhe o pulso.
    _ Você está bem, Miguel?
    _ O que aconteceu comigo? A gente tava jogando bola e ...

    _ Deve ter baixado demais a glicose...
     Ademir explicou à professora que Miguel simplesmente desmaiou. Lenice resmungou:
    _A gente te avisou que a Dani tava perto do gol... E ela não perdoa... Parece até que tu ficou com as pernas derretidas na frente de uma menina!
    _ Não enche com esse papo de "menina me derreter as pernas"! Tá pra nascer a menina que vai fazer minhas pernas tremer!
    _ Não sei, não...
    Miguel começou a atropelar as palavras.
    _ Pois eu também não entendi o que aconteceu comigo... De repente, não senti minhas pernas, e desabei.  E parece que apaguei! Encontrei minha irmã, segurando minha mão, mas ela sumiu de repente.Acho que abandonei as muletas muito cedo.
    _ Venha, Miguel... Eu te ajudo a levantar.
    _ Obrigado, profe! Se bem que... Eu queria ter continuado desmaiado, porque assim eu ainda ia tá de mão de mãos dadas com a minha irmã... Tô com muita saudade dela!
    _ Eu sei que vocês eram muito unidos, Miguel... Confia em Deus, que um dia ela vai voltar.
    Miguel olhou para o céu...
    _ A gente era muito unido, sim... Não imagina o quanto...
    Na Itália, após o atendimento à Mary, e diversos exames...
    _ Infelizmente, é um quadro estranhamente complicado... A menina perdeu o movimento das pernas. Deve ter sofrido algum trauma na queda.
    Fernando e Miloca não conseguiam acreditar nas palavras do médico.
    _ Não pode ser! Uma criança tão cheia de vida... Como vamos contar isso pra ela?
    _ Ela parece uma criança esperta e sensata. Creio que vai compreender, se a gente contar da maneira certa.
    _Mas... Ela vai andar de novo? É uma criança, ainda...
    _ Não sabemos. Por ser uma criança, pode ser que as células se regenerem com maís facilidade... Aí, quem sabe... Vamos conversar com ela? Quanto mais cedo falarmos a verdade, menos ela sofrerá...
    O médico e o casal de serviçais de Francesca que levaram Mary ao hospital aproximaram-se do leito de Mary.
    _ Podemos conversar?
    A menina sorriu, animada.
    _ Vieram me trazer uma boa notícia, né?
    Após a frase de Mary, os presentes naquele hospital entreolharam-se, temerosos para dar a cruel notícia para Mary.
    _ Bom... Não é exatamente uma boa notícia...
    _ Eu sei que é uma boa notícia, doutor. Eu tava sonhando agora a pouco que vocês têm uma boa notícia... Então, não pode ser ruim!
    Duas grossas lágrimas brotaram dos olhos de Miloca. Como poderia dizer àquela menina cheia de vida que costumava rodopiar pela casa inteira, que ela não poderia mais andar? O médico respirou fundo e começou:
    _ Bom... Infelizmente, você não vai...
    Ao olhar para os olhos daquela menina tão feliz, o médico hesitou:
    _ Pode falar, Dr! Eu sei que o senhor vai falar uma coisa boa...
    Os olhos do médico, àquelas alturas, já marejados, diante da criança com tanta vivacidade.
    _ Mary... Eu preciso ser sincero com você... Não tenho uma boa notícia... Você teve uma lesão na coluna, e, por enquanto, vai ter os movimentos das pernas limitados...
    _ É por isso que eu não sinto minhas pernas?
    O médico baixou os olhos, tristemente.
    _ Sim. Serão feitos mais exames, claro... Mas a princípio, uma cadeira de rodas vai te ajudar... Vamos fazer de tudo pra fazer você andar de novo.
    Mary olhou no fundo dos olhos do médico e abriu um sorriso.
    _ Então, Dr! Eu não te falei que era uma boa notícia?
    Ainda com os olhos marejados, o médico, a governanta e o motorista entreolharam-se, sem compreender.
    _ Como...?
    Mary segurou a própria perna, que se mantinha inerte.
    _ Agora vou sentir exatamente o que a dona Francesca sente. Ela é como se fosse minha mãe, pois eu sinto que ela me ama de verdade... Minha mãe nunca se importou comigo...
    _ Mas... Não vai poder andar... Vai ter que usar uma cadeira de rodas...
    _ Então, eu vou ser oficialmente a fiel escudeira da Dona Francesca!  Exatamente o que ela fizer, eu vou fazer também... E depois, quando nós duas voltarmos a caminhar, vamos passear de mãos dadas nas praças da Itália... E até visitar o Brasil... Meu irmão... Meu pai... Tô com saudades deles.
    Pasmo diante da reação da menina, o médico procurou as palavras:
    _ Mary... Sabe o que significa o que lhe falei?
    Mary sorriu.
    _ Sei exatamente, Dr! O senhor me disse que eu não posso mais caminhar, mas não falou que não posso mexer braços e ler... Eu vou continuar minhas pesquisas... Vou estudar muito mais... E vamos curar a Dona Francesca!
   

INFÂNCIA ROUBADAOnde histórias criam vida. Descubra agora