Juvenal entrou preocupado na casa de Tina.
_ Más notícias... Estragou a forrageira... Tentei ligar, pra triturar o pasto pro gado, mas não ligou mais!
_ Bahhh... Logo agora, que tudo já tá meio difícil? Onde vamos achar pasto macio o suficiente pro gado? O potreiro não vai dar conta de alimentar todos...
Inês interrompeu:
_ Vou pedir pro Plínio levar o motor pra uma oficina de motores agrícolas que conhecemos. Ao menos pra fazer um levantamento de preço, sobre o conserto. Sei que a forrageira do nosso vizinho estragou e o seu Alfredo mandou consertar lá.
_ Quem sabe tu poderia perguntar o seu Alfredo quanto custou pra arrumar o motor?
_ Eu não sou muito de conversa com seu Alfredo, mas vou pedir pro Plínio ir perguntar hoje mesmo. Assim tu já vai ter uma previsão de quanto vai custar...
Tina sorriu:
_O que eu não faria sem meus amigos e vizinhos?
Teresinha chegou a tempo de ouvir a última frase da amiga.
_ Eu já acho que Deus nos coloca pessoas maravilhosas no nosso caminho... Nós somos prova disso! Deus nos trouxe pra cá com um propósito!
_ Eu também acho, Teresinha... O que eu faria sem vocês?
_ Bom... A vontade de Deus é soberana...
_ Mudando de assunto... Eu tava aqui pensando, e acho que vou adiar minhas sessões de radioterapia. O Claudino precisa mamar até completar seis meses...
_ Com essa doença maldita não se brinca, Tina. Acho que não deveria adiar, não...
_ Pois depois do sonho que tive, de ver minhas filhas no caixão, decidi adiar, sim... Vi a morte em sonho... E isso não é nada bom. Prometi ao Claudio que guardaria a vida dos nossos filhos com a minha vida, e, se necessário for, vou cumprir!
_ Mas teus filhos precisam de ti viva! De nada adianta tu não fazer o tratamento, só pra amamentar o teu nenê!
Tina olhou para Teresinha com firmeza:
_ E se tu estivesse no meu lugar, o que faria?
Teresinha respirou fundo.
_ Bahhhh... É de pensar mesmo...
_ Não tenho escolha! Os seis primeiros meses de amamentação são a imunidade da vida inteira de uma criança!
Teresinha olhou receosa:
_ E se...
_ "E se", o quê?
_ Eu ia sugerir... Que a partir do teu tratamento pro câncer, eu...
Tina olhou interrogativamente para Teresinha.
_ Pode falar, Teresinha... Agora me deixou curiosa!
_ Tá bom, Tina... Eu ia sugerir... Eu seria a ama de leite do Claudino, quando tu começar o tratamento de radioterapia. Fiz todos os exames de sangue na gravidez e não tenho nenhum problema no sangue que possa ser transmitido pelo leite... Já tô dando de mamar pra Valéria, e não me custa nada amamentar os dois... Afinal, nossos nenês só têm um dia de diferença!
Os olhos de Tina ficaram marejados.
_ Faria isso por mim e pelo Claudino?
_ Faria e vou fazer! E não aceito recusa! Tu faria o mesmo por mim! Tenho certeza!
Com lágrimas nos olhos, diante da prova de amizade de Teresinha, Tina abraçou a amiga.
_ Agora sei o motivo que Deus teve pra te trazer pra cá, Teresinha! Ele sabe exatamente o que faz!
_ Então, enxuga esses olhos e olha pro céu, pois eu e o Juvenal tamo junto contigo nessa peleia contra o câncer!
_ Eu nem sei se eu mereço...
_ Merece sim, Tina! Deus sabe que tu merece!
_ Logo termina meu resguardo e vou recomeçar a aceitar algumas encomendas de doces e salgados, pra pagar vocês... E posso dispensar a ajuda da Inês, que tá se revezando entre a minha casa e a tua!
Inês interrompeu:
_ Tu sabe que pra mim é um prazer ajudar...
_ Mas precisa descansar também...
_ Vou descansar daqui a pouco, quando for pra casa... Vou pedir pro Plínio pegar o motor ainda hoje e perguntar seu Alfredo quanto ele pagou pra consertar o motor da forrageira deles.
_ Bahhh! Um dia, quando eu conseguir recuperar minhas economias, vou pagar todos vocês, e com juros...
Inês contestou:
_ Nada feito! Te falei que não quero que me pague, nem um centavo!
_ Mas vocês também têm gastos... Sei que o Juvenal pediu demissão na rádio pra ajudar meu irmão a plantar as culturas de verão. Eu não posso deixar vocês trabalharem de graça... Não tenho mais a padaria, mas faço na minha cozinha mesmo... Cada pouquinho que eu fizer vai ser lucro!
Teresinha interrompeu:
_E eu te ajudo a fazer essas coisas. Nos turnos que as meninas e o Francisco não têm aula, eles podem ajudar com os nenês...
Tina sorriu.
_ Sob vigilância, claro...
_ Creio que temos visita! Tô escutando um carro parar...
Inês despediu-se, sorrindo:
_ E eu vou fugir, antes que a visita de vocês me prenda na conversa!
Teresinha sorriu.
_ Claro... Nem gostamos de conversar...
Do carro recém chegado, saltaram duas figuras femininas. À medida que aproximaram-se, Tina notou tratar-se de duas pessoas que conhecia muito bem:
_ São Cristiane e Mara! Cristiane foi minha aluna, e Mara é como se fosse a irmã que Deus não me deu!
_ A professora do Francisco, lá em Caxias, se chamava Mara....era uma pessoa de ótimo coração... Ela era branca, e adotou um bebê indígena, que foi encontrado vivo numa aldeia dizimada por posseiros de terras... Uma história muito bonita, a dela...
As duas mulheres aproximaram-se. Tina abriu os braços:
_ Mas que surpresa agradável, minhas meninas!
_ Não tão meninas assim, Tina... Já tamo chegando nos 30...
Tina colocou o dedo indicador sobre os lábios, em sinal de silêncio.
_ Não diz isso! Aí vão descobrir a minha idade! Entrem e puxem um banquinho! Vamos matar a saudade com um mate!
_ Hoje dispensamos o mate... Não podemos nos demorar, amada! Tamo num correrio pra fazer um café colonial esse fim de semana, e pensamos em vocês!
Tina baixou os olhos.
_ Eu ainda tô no resguardo. Não posso aceitar encomendas ainda... Infelizmente, tenho que recusar encomendas maiores, porque ainda tô sem minha padaria!
As duas mulheres entreolharam-se, sorrindo:
_ Mas a gente não veio fazer encomendas... Já tá tudo encaminhado! É um café beneficente... Viemos convidar vocês e as crianças pra prestigiar, pois é feito por um grupo de mulheres que formam a Colmeia do Bem.
Tina baixou os olhos.
_ Me desculpem, minhas amadas, mas dessa vez não tenho dinheiro... Nem pra pagar um cartão de café colonial, que dirá pra toda família... Eu tô zerada, e ainda com umas contas pra pagar... Com o incêndio da padaria, tive que deixar de entregar a última encomenda, e fiquei com prejuízo...
_ Mas não viemos cobrar os cartões do café... Os cartões pra vocês serão um presente nosso... Queremos todos vocês lá no sábado de noite, inclusive tu, Teresinha, e tuas crianças... E não precisam de cartões... É um café colonial da Colmeia do Bem, que ajuda as pessoas necessitadas!
_ Sendo assim, vamos aceitar... O Arnaldo pode levar a gente. Assim, o Miguel pode ir também! Coitado daquele guri! Aonde vai ser?
_ No CTG mesmo! É um lugar tranquilo e espaçoso, pras crianças se sentirem bem! Esperamos vocês lá sábado, às sete da noite...
_ Não sei como agradecer...
_ Agradeça trazendo todos... Não esquece! Sábado, às sete, no CTG!
_ Esperamos que seja tempo bom,por causa dos nenês... São muito novinhos ainda!
_ Deus há de proteger as crianças, nos dando uma noite sem chuva!
O dia seguinte poderia ter sido normal para Tina, porém, foi marcado por uma visita inusitada.
_ Seu Alfredo... Bom dia! A que devo sua visita?
_ Bom dia... O Plínio me falou que tua forrageira estragou... Minha também tinha estragado, e gastei quase o preço de uma nova pra consertar... O motor é caro!
_ Sim, seu Alfredo. Agora tenho que me virar com pasto macio, que não precisa ser triturado, até que arrume a forrageira ou compre outra.
_ Pois eu tenho a solução pra ti!
Tina suspirou de alívio.
_ Que bom, seu Alfredo! E qual seria essa solução?
_ Eu tenho pasto macio sobrando. É uma lavoura inteira de pasto verdinho e macio!
Tina já conhecia a fama de Alfredo. Ele não dava ponto sem nó... Sabia que o pasto não seria exatamente uma "doação".
_ Tá, seu Alfredo... Me diga uma coisa... Qual seria o preço que o senhor me cobraria por esse pasto?
Alfredo deu uma risadinha irônica.
_ Não precisa envolver dinheiro... Basta vir me visitar quando a minha patroa for pro centro!
Tina arregalou os olhos diante das palavras de Alfredo.
_ Commmmo?
_ Claro... Como tá sem homem, deve tá carente... É só me visitar, que fazemos a "troca"!
Tina teve que se controlar para não bater no homem. Sabia que não ficaria barato.
_ Pois o senhor pode esperar sentado, que não quero teu pasto! Não preciso me prestar a isso!
_ E se eu te der mais uns vinte pila em dinheiro, aceita?
Àquelas alturas, o descontrole de Tina pelas palavras do vizinho já estava pronto a explodir.
_ O senhor tá me achando com cara de kenga, me oferecendo dinheiro pra te fazer visita íntima?
A ironia de Alfredo chegou ao extremo:
_ E se eu te der cem pila, aceita?
Tina despejou toda sua revolta nas palavras que dirigiu aà Alfredo:
_ Pois ponha-se no seu lugar! Tu tem esposa e filhos! E não ouse insistir mais nessa "troca de favores", pois não sou mercadoria! E quando eu encontrar sua esposa, vou contar pra ela sobre tua tentativa!
Alfredo não recuou.
_ Pode falar o que quiser pra ela! Vou dizer que eu tava bêbado quando vim aqui! Ela ainda vai te achar a culpada! Tu não tem mais marido...
As vozes alteradas acabaram chamando a atenção de Juvenal, da casa ao lado. Juvenal atravessou o pátio.
_ O que tá acontecendo aqui, dona Tina? Precisa de ajuda?
Alfredo encarou Juvenal.
_ Ahá! Então já tem um substituto pro falecido? Esse perneta e zarolho não dá nem pro cheiro o que eu ia fazer por ti!
Tina estava prestes a explodir, tamanha era a raiva pela petulância de Alfredo. Juvenal saiu em defesa de Tina.
_ Ponha-se daqui pra fora, senhor! Ou vai ficar sem o " teu brinquedinho" aí no meio das pernas!
Alfredo encarou Juvenal com sarcasmo. Depois, dirigiu-se até Tina:
_ Tá bom, comadre... Espero que o teu gado morra de fome! Não vou fazer uma segunda oferta!
Alfredo deu uma risadinha irônica e retirou-se. Juvenal olhou preocupado para Tina.
_ Que sujeito mais inconveniente! A senhora tá bem?
_ "Bem"não estou, mas um pouco mais aliviada... Que homem horroroso!
_ Horroroso por dentro e por fora, dona Tina! Sem contar aquela barba que ele não apara nunca, o caráter desse sujeito é de um monte de esterco!
_ Sem dúvida, Juvenal. Espero que ele nunca mais apareça!
_ Acredito que não... Ele se encolheu todo quando eu falei que cortaria o...
_ Faria isso pra defender a honra de uma mulher?
_ Eu faria sim! Aquele que não sabe respeitar o "não"de uma mulher, não honra as calças que veste!
_ Obrigada, Juvenal. Deus abençoe você, por me defender.
_ Só cumpri minha obrigação, dona Tina! Tipos como esse são que nem gaviões carcará, que não respeitam nada... Eles atacam a presa, sem deixar ela se defender... Ele ainda é capaz de se fazer de vítima!
_ Eu conheço ele muito bem... Esse cidadão, na época que a esposa dele era mais jovem, jogava os anticoncepcionais dela no lixo, pra que ela engravidasse... Assim, ele mantinha ela sempre "ocupada", pra que ele pudesse sair com outras mulheres... Eles têm seis filhos.
_ Não acredito que ele fez isso!
_ Sim... fazia... Até sou madrinha de uma das filhas deles. Quero distância desses gaviões, Juvenal! Quanto mais longe melhor. Tenho meus filhos pra cuidar.
_ E faz bem! Caráter não se compra e não se vende!
Tina adentrou em casa, pensando na ousadia do cidadão.
*
O sábado iluminado deixou as crianças entusiasmadas. Francisco, com os olhos brilhando feito duas jaboticabas, estava eufórico.
_ Eu nunca fui a um café colonial! Isso é um café diferente daquele que tamo acostumado a tomar?
Tina sorriu diante das palavras de Francisco.
_ Não, meu guri... É um café como qualquer outro, mas as coisas que a gente come num café colonial são deliciosas.
_ Sabe que eu nunca fui num café colonial?
_ Pois hoje tu vai com a gente. As mulheres da Colmeia do Bem convidaram todos nós, e não vão cobrar nada.
Miguel não perdeu a oportunidade de fazer um comentário. Passou a mão na barriga...
_ Comida de graça... E ainda mais, gostosa de dar água na boca... Mmmmm! Vou alimentar minhas lombriguinhas...
Arnaldo olhou pelo retrovisor, chamando a atenção do filho.
_ Miguel! Tu parece que não come a dias! Tá sempre com fome...
_ Mas eu tô sempre com fome, paí! Preciso ganhar músculos, pois quando eu conseguir caminhar sem as muletas, vou voltar pro Kung Fu!
_ Quando tu voltar a caminhar, vai entrar num treinamento menos violento. Tu já viu o resultado desse daí!
Miguel fez um muxoxo.
_ Tá bom, pai!
_ Tamo chegando. Tá aí o CTG! E já tem bastante gente! Vou deixar vocês aqui e volto pra buscar vocês ali pelas dez da noite. Eu e o Juvenal combinamos de resolver umas coisas lá por casa.
Tina, Teresinha e as crianças entraram no CTG, já repleto de mesas organizadas. Ao fundo, próximo à cozinha, o bifê de delícias coloniais.Tina, Teresinha e as crianças procuravam por mesas desocupadas para prestigiar o evento.
_ Aqui, Tina! Reservamos uma mesa maior pra vocês! Vai ter umas apresentações artísticas primeiro e depois podem entrar na fila do bifê!
Tina estranhou o fato do grupo já ter reservado mesa para elas.
_ Deve ser por causa dos nenês...
Após as apresentações artísticas, a presidente do grupo Colmeia do Bem pegou o microfone e fez uso da palavra:
_ Eu represento cada mulher que faz parte do nosso grupo, que trabalha somente em benefício de pessoas que realmente precisam. E o lucro do café colonial de hoje será destinado a uma família muito especial, que está presente no nosso evento. Eu convido pra fazer uso da palavra, a nossa ex professora, e agora amiga-irmã, Tina!
O coração de Tina saltou quando seu nome foi chamado. Ergueu-se rapidamente, sem saber o que dizer.
_ Venha, Tina... Nosso grupo tem uma surpresa pra você!
Tremendo da cabeça aos pés, Tina aproximou-se do palco do CTG. A representante da Colmeia do Bem continuou:
_ Como sabemos que você tá realmente precisando de "uma mão", o grupo decidiu te dar "várias mãos"... E de mãos dadas iremos longe!
Ainda desconcertada, Tina apertou a mão da mulher e balbuciou:
_ Muito obrigada.
_ Mas não é só isso! O lucro do nosso café colonial de hoje será revertido pra tua família, por toda luta que teve, e sabemos que terá...
Tina fixou os olhos em Mara e Cristiane, que sorriram.
_ E agora, passo a palavra pra senhora Lisandra. A Lisi é presidente do grupo de mulheres Girassol, da Solitária Alta.
Lisandra aproximou-se do palco e pegou o microfone.
_ Boa noite, pessoal. Sejam bem-vindos a esse evento mais que especial. Sei que todas as mulheres que estão aqui hoje representam colibris na vida da nossa família benefíciada. Colibri é um beija-flor. Deus o colocou na natureza pra ajudar a produzir frutos e sementes.
A essas alturas, Tina não sabia se falava ou se tremia.
_ O grupo Girassol fez uma rifa, cujo lucro será repassado também pra tua família, Tina. Sei que não terá como trabalhar, em função de um problema de saúde. E eu, como representante do grupo, sei que não posso resolver as coisas por vocês, mas essa ajuda vai tornar as coisas um pouco mais leves pra encarar! Que o teu tratamento seja eficaz, pois queremos te ver muito tempo por aqui ainda!
_ Na minha época de professora, eu só cumpri minha obrigação com seus filhos, e até com alguns de vocês, que foram minhas alunas. Agradeça a todas pelo carinho.
_ Agora queremos ver você fazendo esse tratamento pra curar esse câncer, e seguir direitinho as orientações médicas pra tudo dar certo. E queremos te ver curada!
Tina sentou-se meio sem graça.
_ Bahhh!O que posso dizer a esse adorável bando de colibris? Que Deus abençoe todas vocês sempre!
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INFÂNCIA ROUBADA
RandomHistória baseada em fatos reais. ALERTA DE GATILHOS: contém violência, abusos, suicídio e morte. Não indicado para menores de 18 (dezoito) anos e/ou pessoas sensíveis aos assuntos abordados. Miguel e Mary são duas crianças, irmãos... Após a tenta...