Irene no sanatório

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      Infância Roubada

Capítulo 33

Irene no sanatório

    Após dois dias em observação no setor de psiquiatria do hospital  Paulo Guedes, em Caxias, os médicos já não sabiam como proceder para manter Irene tranquila. Ela, estando grávida, inspirava um cuidado maior. Descalça ali com seu camisolão branco, a mulher arregalava os olhos e conversava com alguém que era visível apenas para ela.
    _ Tu cala a boca, sua peste! Primeiro tu me aparece com cabelo curto que nem um guri e depois some que nem a fumaça do meu cigarro!
    Irene mantinha o dedo indicador em riste, desferindo novos e mais agressivos xingamentos para a parede à sua frente:
    _ Fica quieta, coisa feia!!! E não vem me dizer que tu vai te esconder de novo na casa daquela professorinha de meia pataca! Aquelazinha que rapta crianças e vende pra Europa pra ganhar dinheiro... Eu é que vou ficar rica... Muito riiiiicaa!!!
    Irene soltou uma gargalhada estrondosa que ecoou pelo ambiente.  Como se tivesse sido chamada, ela virou a cabeça bruscamente. Seu olhar arregalado focou em outra direção. Apesar disso, os xingamentos não cessaram:
    _ E tu, coisa ruim! Tá com a cara do véio, já!
    Irene apertou os olhos e respirou repetidas vezes, fungando e fazendo caretas para o nada.
    _ Tô até sentindo teu cheiro, sua cria do diabo!! Tu cheira a enxofre!!!
    Repentinamente, Irene direcionou a atenção para outro lado. Girou o rosto e sua fisionomia mudou completamente. Abriu um largo sorriso, colocou as mãos na cintura e passou a girar o corpo levemente, a voz agora um tom manso e calmo:
   _ Pode tirar as fotos, seu Beckmann! E quero esse álbum bem bonito... Tá bom assim?
    Após fazer uma série de poses, caras e bocas para uma parede vazia, Irene completou:
    _ Meu marido vai pagar o álbum assim que revelar as fotos, seu Beckmann! Pode tirar mais fotos! Assim tô bonita? Oh, obrigada, seu Beckmann!
    Irene passou um longo tempo ensaiando poses para o fotógrafo imaginário. Passada a tal sessão, sentou-se no chão alegremente.
    _ Agora pode ir, senhor Beckmann! Se eu quiser fazer mais um álbum de fotos, chamo o senhor!
    Do lado externo do cômodo, a equipe médica observava Irene à distância através do visor escuro.
    _ É um caso complicado, Doutor! Ela tem visões... Conversa com as paredes como se fossem pessoas! Às vezes é difícil de entender o que ela fala! Seu linguajar é enrolado, mas se nota pelos gestos que ela parecia xingar alguém.  Agora, deu a impressão de estar dentro de um estúdio fotográfico!
    _ Ela teve a primeira crise no sábado, ao meio-dia, em casa. Veio pra cá desmaiada, mas começou a ficar agressiva quando acordou. Usamos a fluoxetina, que é um medicamento mais ameno, pelo fato dela estar grávida, mas não deu resultado. Parece que até piorou! O que sugere, Doutor?
    _ Troque por cloridrato de paroxetina! Vamos testar, pode surtir um efeito melhor e não afetar o bebê! E mantenha ela sob observação, e isolada dos outros pacientes...
    _ Pois não, Doutor.
    _ Ahhh! E avise a família que ela vai permanecer aqui. Enquanto ela tiver crises e visões é melhor manter ela sob vigilância. Ficará sob custódia clínica até termos certeza de que não oferecerá riscos para si mesma ou para a sociedade.
    _ Manteremos a família informada, Doutor. O marido dela esteve aqui na tarde de ontem e já deixamos ele a par da situação. Ele ficou de voltar hoje.

                *

    Na casa de Valderez, naquela segunda-feira, algo de diferente marcou o início do dia: dois agentes fardados batiam à sua porta.
    _ Senhor Valderez Machado? Somos da polícia! Temos um mandado de busca domiciliar à sua residência!
    Valderez tentou argumentar:
    _ Olha, senhores... Não devo nada a ninguém! Devem estar batendo na porta errada!
    _ Pois nós recebemos uma denúncia anônima, Senhor Valderez. Temos um mandado, e peço que permita revistarmos sua residência.
    Valderez tirou a carteira do bolso e abriu o talão de cheques.
    _ Quanto querem pra esquecer e rasgar esse  mandado?
    O policial pareceu incrédulo por aquela ação, e encarou Valderez com autoridade:
    _ Creio que não compreendeu, senhor Valderez... Ou devo chamá-lo de "Vavá", com é conhecido nas bocas do tráfico? Caso não permita a busca, teremos que levá-lo preso por desacato e suborno!
    O dono da casa recuou diante da expressão incisiva do agente. Porém, ainda tentou argumentar:
    _ Não vão achar nada aqui, seus...
    Valderez não chegou a concluir a frase de xingamento que faria aos oficiais, pois a voz de Lili cortou o ambiente:
    _ Ninguém vai revirar minha casa! E ninguém vai botar algemas no meu filhinho! Posso saber o motivo que vocês tem pra revistar minha casa?!
    _ Tráfico de entorpecentes, minha senhora! Recebemos uma denúncia anônima que diz que nesta residência está escondida uma grande quantia de drogas.
    Lili não se conformou com a ação dos policiais.
    _ Mas isso é ridículo! Meu filho, um traficante?! Pois ponham-se daqui pra fora!
     Os policiais ainda tentaram usar da diplomacia para com Lili:
    _ Olhe, senhora... Aqui temos um mandado de busca domiciliar!
    Lili, depois de ler o tal documento que comandava a autorização para revistarem a casa, rasgou-a em dezenas de pedacinhos e  jogou-os ao chão.
    _ Pronto! Vou fazer o mesmo com vocês se não se retirarem daqui, seus "pé- de-porco"!!!
    Os agentes coraram  diante do vocabulário ofensivo de Lili.
    _ Isso é desacato à autoridade, senhora! Tanto por ter destruido o documento do mandado como pelo seu tratamento ofensivo a dois agentes da polícia!
    _ Tá pra nascer o filho da mãe que vai revirar minha casa ou botar meu filho na cadeia!
    _ Pois espero que a senhora não tenha participação no trabalho do seu filho, pois voltaremos com outro mandado e a guarda inteira armada!
    _ Pois que venham com quem quiserem! Na minha casa...
    _ Mamãe...
    Valderez até tentou fazer Lili parar de falar, porém não conseguiu. A mulher continuou os xingamentos aos agentes até eles virarem as costas e voltarem por onde vieram.
    _ Pois eu vou mostrar quem é que manda na minha casa, seus porcos! Aqui, ninguém vai revirar nada, muito menos levar alguém preso!

                       *

     Um final de semana inteirinho ajudando Gioconda e Fiorella na cozinha e nas roupas da família, encontraram uma porção de roupas que não cabiam mais em Gioconda nem em Fiorella. Elas certamente serviriam em Mary.
    _ Vai servir direitinho, Pedrinho! Nós nunca usamos vestidos porque sempre ganhamos roupas de primos, e eles são todos meninos.
    _ Te agradeço, Gioconda. Assim, quando chove e não seca minha roupa logo, vou ter outra pra trocar!
     Na segunda-feira, antes do sol raiar, Mary saltou do ninho improvisado no chão. Abriu a janela e seu olhar encontrou o céu, onde uma vistosa estrela parecia querer pedir-lhe algo.
     Ficou ali, debruçada sobre o  parapeito, como se estivesse ligada àquela estranha luz de alguma maneira. Aquela estrela, entre tantas outras, parecia mais especial. Olhando fixamente sua luz, sentiu vontade de conversar com Deus:
    _ Senhor Deus... O que quer me dizer ao me mostrar essa luz? Já olhei o céu tantas vezes de manhã, mas nunca vi ela antes...
    Num lampejo, veio-lhe à mente a foto da lápide de Pedrinho. Sentiu o coração bater mais forte, como se Pedrinho estivesse dentro das suas veias.
    _ Pedrinho?
    A luz daquela estrela pareceu tornar-se mais intensa no momento que lhe escapou o nome pelos lábios. Sentiu uma paz intensa descendo sobre ela, como se alguém a cobrisse com um manto quente.
    _ Querido Deus... Eu me sinto culpada por esconder que sou uma menina. Preciso falar a verdade... Meu pai sempre me ensinou que não devemos mentir nunca! Mas é tão difícil... Me sinto tão feliz aqui com Gioconda, Fiorella e o seu Vincenzo, e quero que eles se sintam felizes comigo também! Mas ninguém pode ser feliz com mentiras... Quero dizer a eles que sou Mary, que sou uma menina!
    Mary estava a ponto de chorar. O peso da mentira lhe fazia doer o coração... Juntou as mãos e ergueu os olhos chorosos:
    _ Deus... Me ajude a contar pra essas pessoas tão queridas que eu não sou Pedrinho... E obrigada por me deixar ficar aqui com eles!
    A menina sentiu-se mais confiante. Ficou ali, conversando com o seu Deus, até os primeiros raios do sol iluminarem a casa.
    _ Já caiu do ninho, bambino?
    _ Pois sim, seu Vincenzo! Eu tava aqui, conversando com Deus. Tava agradecendo pra Ele por ter conhecido vocês! Depois que...
     Mary parou a frase no ar. Estava para contar que nunca fora feliz com a mãe, mas lembrou-se que para Vincenzo e as filhas ela era Pedrinho. E, mais uma vez, a dor da mentira tirava o sorriso do rosto da menina.
    _ Sei que tu ainda chora a morte do teu pai, mas hoje vou mandar um telegrama pra tua mãe Francesca... Vou dizer que tu voltou, e que tá aqui, esperando por ela!
    E agora? Mary sentia-se pesada feito uma rocha, como se tivesse os pés presos ao chão por um cubo de chumbo.
    _ Mãe? Francesca?
    _ Já te falei que ela tá paraplégica, bambino! E carrega no coração uma tristeza tão grande pela tua morte que não quer fazer nenhum tratamento médico. Espera morrer pra te encontrar... E se ela souber que tu voltou, quem sabe, até poderia ficar boa!
    As palavras de Vincenzo entraram nos ouvidos de Mary como navalhas e pareciam cortar o coração em retalhos. Sentiu que tinha que falar a verdade, o quanto antes. O remorso da mentira feria mortalmente o coração de Mary.
    _ Seu Vincenzo... Eu...   
    Vincenzo notou a perturbação que o assunto causara na criança, e mudou o rumo da conversa.
    _ Vou acender o fogo, Pedrinho. Me ajuda a fazer o café? Daqui a pouco, quando a água estiver quente, pode coar?
    _ Mas é claro, seu Vincenzo. Vou ao banheiro me lavar! E vou confiar em Deus, que tudo será no tempo de Deus!
    _ Primeiro vou chamar as gurias! Quero que elas me ajudem a fazer nossa comida pro almoço. Vai me ajudar a arrumar os vasos do cemitério hoje, bambino?
    _ E precisa perguntar, seu Vincenzo? Eu amo arrumar flores! Elas me fazem sentir a presença do meu pai e de Deus.
    Mary dirigiu-se ao banheiro, enquanto Vincenzo chamava as filhas e acendia o fogo. Ela lavava o rosto e penteava o cabelo, olhando o seu reflexo do espelho. Reparou que se assemelhava cada vez mais à fotografia da lápide de Pedrinho. Mais uma vez sentiu aquele torpor no corpo, por estar vivendo aquela falsa identidade.
    _ Deus! Me ajuda a contar a verdade... Essas pessoas não merecem que eu esconda que não sou Pedrinho! Tenho que contar hoje mesmo quem sou eu...
    Mary estava absorta em sua conversa com Deus, quando Gioconda bateu à porta do banheiro:
     _ Tá tudo bem, Pedrinho?
    E mais uma vez, ao ouvir chamarem-lhe pelo nome do menino, de uma maneira tão carinhosa que Irene jamais a chamaria, Mary silenciou.
   

   
   
    

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