Mudanças

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Eu olhava ao redor, e estava quase completamente escuro, se não fosse pela iluminação precária de uma lâmpada pendurada de forma grosseira no teto por um fio. Em meu lado, também ajoelhado, um homem com um capuz preto estava calmo, por mais assustadora que fosse a situação.
Lentamente um homem com roupas completamente pretas se aproximou de nós e murmurou alguma coisa, que parecia ser em uma língua que eu desconhecia. Esse mesmo homem retirou o capuz do que estava ajoelhado, que se revelou ser o tenente Simon Riley.
Não...o que aconteceu?
-Tenente...? -murmurei, com a voz voz carregada de dor.
-Você...-ele respondeu-. Você é incompetente, recruta.
Sua voz era quase como um sussurro. Algo havia dado errado...
-Mas o que eu fiz? -falei sem entender.
-O que você sempre faz.
Dois homens com as mesmas roupas pretas do primeiro se posicionaram atrás de nós enquanto conversavam.
-Se você tivesse seguido minhas ordens, não estaríamos aqui. -o tenente continuou.
O homem atrás do tenente tirou uma faca de ponta longa enquanto olhava fixamente para ele.
-Você merece uma medalha.
Essas foram as últimas palavras de Ghost antes de sua nuca ser perfurada pela faca, atravessando a garganta. Esse cena me fez gritar e chorar, mas esses sons foram abafados pela mão do homem atrás de mim.
A cabeça do tenente pendeu para o lado, e seus olhos pareciam fixos em mim, em uma última tentativa de me fazer sentir culpada. O sangue se espalhava de seu corpo inanimado enquanto tentava me concentrar em entender o que havia acontecido.
Mas eu percebi que era tarde demais quando senti a mesma faca que executou Ghost, ainda com seu sangue, encostada horizontalmente em minha garganta.
Eu mereço essa dor.

Quando me levantei, em completo choque na cama, meus olhos procuravam um ponto fixo do quarto para se concentrarem, em vão. Nesse momento, Emily entrou no quarto extremamente preocupada.
-Ei! -ela me olhava assustada.
-O-o que houve? -gaguejei, com a respiração ofegante.
-Eu que devo perguntar isso! Sei lá, você começou a gritar muito, achei que alguém tinha entrado na casa! -Emily colocou a mão em meu ombro enquanto analisava minhas expressões.
Então não foi real...
-Eu tive um pesadelo...-coloquei a mão em meu pescoço, não sentindo absolutamente nada de diferente.
-Seja lá o que tenha acontecido no seu pesadelo, não foi real, tudo bem? -ela me tranquilizou.
Concordei com a cabeça. Quando coloquei minha mão na testa, percebi que eu estava suando; eu me sentia visualmente horrível.
-Eu sonhei com ele. -dei ênfase na última palavra para que ela pudesse entender de quem eu estava falando.
Emily me abraçou enquanto tentava me deixar relaxada.
-Ele não está aqui, Meg, não se preocupe. -ela me olhou.
Por que eu ainda estou reagindo dessa forma? Simon havia me humilhado e de certa forma, sentia algo por ele. Por que?  Como? Eu sou uma idiota mesmo. Disse que gostava dele e foi tudo em vão... sou minha própria decepção.
***
Mesmo alguns dias após minha demissão voluntária, eu não conseguia deixar de imaginar no que os meus ex-colegas estavam fazendo ou pensando. Eu começava a sentir falta dos pequenos atos gentis de Soap, dos sermões do capitão Price e até mesmo das apostas de Gaz. E eu sentia falta dele. Mas toda vez que esse saudosismo batia na porta, eu olhava bem para o ferimento por bala que agora estava começando a cicatrizar, para me avisar das loucuras que eu já havia feito.
Os pesadelos continuavam. Não importa o quanto eu tentava me concentrar e livrar meus pensamentos das memórias dolorosas, elas permaneciam ali para me pertubar.
-Olha, Meg, já chega.
Emily disse enquanto tomávamos café de manhã. Eu sentia horrível, como se não tivesse dormido nem por dez minutos na noite anterior.
-Do que está falando?
-Dos seus pesadelos. Isso me assusta pra cacete. E, você não aceita que não está nada bem.
Desviei o olhar e coloquei a mão na testa, respirando fundo.
-Foram só algumas vezes, desculpa. -murmurei.
-Não foram algumas vezes. -ela se sentou em minha frente-. Está sendo quase todos os dias. E sério, é estranho, em um dia você parece bem e no outro está muito mal.
Apertei meus olhos.
-Eu me sinto traída por eu mesma, Emi. -balancei a cabeça-. Eu criei uma carreira inteira em minha cabeça, foquei meu sonho em apenas uma única coisa...era tudo um castelo de cartas o tempo todo, só eu não percebi.
-Não fala isso, Meg. Sério, você não é assim, eu sei que aconteceram coisas pesadas e eu nem faço ideia do que passou. -ela me observava com os olhos gentis-. Você é uma fofura, Meg, e me dói te ver passar por isso.
Eu abri um sorriso fraco com suas palavras.
-Por isso...-ela continuou-. O que acha de um psicólogo? Eu conheço uma ótima por aqui, sei que vai te ajudar muito mais do que eu.
Trabalhar na área militar poderia render inúmeros problemas psicológicos dos mais variados níveis de gravidade. Eu nunca me opus a ideia de sessões de psicologia oferecidas para os militares, como também nunca havia pensado que isso me ajudaria em alguma coisa.
-Pode ser uma ótima ideia. -dei um sorriso.
-Eu irei marcar uma sessão para você, então. -ela retribuiu o sorriso.
Deixei minha caneca de lado e a abracei.
-Obrigada por tudo o que está fazendo por mim. Não tem ideia de como é importante.
-Não precisa nunca me agradecer, Meg. Você é a minha irmãzinha, meu dever é protegê-la! No que você me permitir, óbvio...
Nos olhamos e sorrimos ao mesmo tempo. Eu sentia falta desses momentos descontraídos com minha irmã.
***
Dois dias depois de nossa conversa, fui para a sessão com uma psicóloga. O consultório ficava a apenas três quarteirões da casa de Emily, facilitando meu acesso.
Depois de passar por uma atendente simpática, fui direcionada para a sala da doutora Bethany, uma moça jovem, alta e de cabelos loiros e compridos; o suprassumo da elegância.
-Por favor, entre. -ela sorriu, enquanto abria a porta de sua sala, me dando passagem.
A sala tinha as paredes em azul-claro, me transmitindo certa tranquilidade. Me sentei na poltrona de couro no outro lado, enquanto ela fazia o mesmo em minha frente.
-E então, como você se sente, Megan? -ela abriu um sorriso caloroso.
Expliquei a ela que estava tendo dificuldades de concentração e não conseguia dormir direito, pois os pesadelos me atormentavam.
-E desde quando você está tendo esses problemas?
-Desde que eu resolvi sair de um destacamento do exército. Eu me senti tão pressionada que não aguentei.
Bethany pareceu anotar algo em sua prancheta.
-E essa pressão vinha de seus superiores? Ou você mesma colocava isso em sua mente?
-Ambos. -respondi desanimada-. Eu trabalhei minha vida toda em torno disso e quando finalmente consegui...estraguei tudo, foi um erro atrás do outro.
Bethany ouvia tudo o que eu falava atentamente, e a cada frase, buscava me tranquilizar. Tentei ao máximo relaxar para poder contar tudo e abrir meu coração de verdade...e foi a primeira vez em tantos dias que eu me senti bem de verdade. Todo esse peso que me incomodava, foi ofuscado pouco a pouco em cada palavra dita.
No final da sessão, a leveza e o sorriso em meu rosto predominavam.
-Espero você na próxima sessão. -disse Bethany, satisfeita-. Oh, e não se esqueça do chá de camomila. Parece bobo, mas ajuda muito.
-Não me esquecerei. -lancei um sorriso.
Ao sair do consultório, me sentia até mesmo renovada.
É uma sensação tão boa e libertadora me livrar desse peso, mesmo que por alguns momentos.
Tive uma surpresa agradável ao ver minha irmã me esperando com seu carro estacionado.
-Vamos? -ela sorriu, colocando seus óculos escuros.
-Achei que estivesse trabalhando. -sorri, surpresa.
-E estava, Meg & Dia, mas agora vamos para o salão de beleza. Já temos horário marcado, então sem desculpas.
"Meg & Dia"? Faz tanto tempo que não ouço esse apelido criado a partir de um trocadilho com minha banda favorita...sempre foi o apelido que eu mais gostava.
-Tudo bem então. -levantei uma sobrancelha enquanto entrava no carro.
-Você está com um sorriso enorme no rosto, isso é tão fofo. -ela disse, enquanto dirigia.
-A sessão foi melhor do que eu pensava. -respondi.
-Eu sabia! Agora, para completar, hora de mudar um pouco. Nem que seja só cortar as pontas do cabelo, Meggie.
Toquei meus cabelos, sorrindo. Eu gostava dele comprido, embora quase nunca tivesse tempo para cuidar dos meus fios da maneira como necessitavam. Mas, logicamente, nunca deixei meu cabelo em um estado trágico; eu ainda tinha um pouco de vaidade.
Ao chegarmos no salão, ela logo tratou de começar suas unhas enquanto eu folheava uma revista, em busca de inspirações para os cabelos. Até que um corte em particular me chamou atenção.
Quando sentei na cadeira, a simpática e baixinha cabeleireira me perguntou o que eu gostaria de fazer, enquanto tocava suavemente meu cabelo.
-Eu quero fazer isso.
Apontei para a revista. A cabeleireira me olhou surpresa.
-Mudança radical. -ela sorriu-. Então vamos nessa.
Depois de lavar meu cabelo, senti mechas enormes caírem no chão, uma a uma. Meus olhos estavam fechados pois eu não queria estragar minha própria experiência.
Isso me deixa ainda mais leve...
-O que acha de raspar a lateral? Está super na moda e você vai ficar linda. -a cabeleireira comentou.
Hm...
-Eu topo.
Sentir a máquina deslizar pelos meus fios foi estranho no começo, mas depois abri um sorriso quando ela terminou.
-Uau, pode abrir os olhos.
Ao obedecer, uma alegria inundou meu coração e alma.
Meu cabelo que antes ia até a metade das costas, agora estava na nuca. A parte comprida pendia para o lado direito, contrastando com lateral esquerda raspada de forma baixa.
-Eu me sinto demais. -o sorriso já estava marcado em meus lábios e não se desfazia.
-MEG? -Emily parou ao meu lado, olhando surpresa para o espelho-. Cacete, por essa eu não esperava. Você está uma gata!
Minha autoestima foi até a Lua com essa mudança.
Ao olhar para as mechas no chão, me despedi mentalmente de uma versão antiga de mim mesma, e quando voltei meus olhos para o espelho, dei boas-vindas ao meu novo "eu".
***
À noite, Emily e Luis pareciam empolgados para um encontro.
-Onde vocês vão vestidos desse jeito?
Perguntei, enquanto tentava me concentrar em meu livro no sofá. Ambos estavam com roupas coloridas: Emily com um vestido solto vermelho e Luis com uma bermuda e uma camisa florida azul.
-Vamos para o barrio latino, hermana.
Ouvir essa resposta de Emily, me fez rir. Luis me explicou que o "barrio latino" nada mais era do que um pequeno pedaço em Liverpool, com a extensão de uma rua fechada onde moravam latinos. Todos os finais de semana os residentes se organizavam e faziam festas muito alegres para todos que quisessem participar.
-Parece muito legal. -pontuei.
-Isso é um "sim, vou com vocês"?! -disse Emily empolgada.
Pensei por alguns segundos e balancei meu livro.
-Ah, Meg! -ela lamentou-. Você está mais bonita ainda agora, tenho certeza que se for conosco, vai se divertir e arrasar alguns corações. Por favor!
Emily uniu as mãos em uma súplica.
-Hoje não, sério. -dei uma risada-. Mas semana que vem eu irei, podem contar com isso.
-Aí sim. -Luis sorriu.
-Certo. -respondeu Emily-. Mas se você começar com desculpas semana que vem, te arrasto pelos cabelos.
-Quero ver conseguir.
Passei a mão pelos meus fios curtos, enquanto ela revirava os olhos e balançava a cabeça, indo embora com Luis.
Quando retomei minha leitura, uma frase me fez sentir algo único.

"...e o sentimento que tenho por ela devora tudo. Tenho tanta coisa, mas sem ela tudo para mim é como se nada existisse."

-Werther...-sussurrei-. Todo o seu sofrimento e devoção, no final, foram em vão. Do que adiantou seu sacrifício?
Eu obviamente não iria ter respostas vindas de um livro.

"...todo o meu coração estava pleno naquele momento; a lembrança de certas coisas passadas insistia em tomar minha alma, e as lágrimas me subiram aos olhos."

Fechei o livro e o devolvi para a estante, cansada o suficiente e sem querer refletir os dolorosos pensamentos de Werther.
Todo esse sentimento não deveria estar me machucando.
Eu sinto, e ao mesmo tempo, me proibia de fazê-lo. Um pedaço de meu coração foi arrancado, dias atrás, e não saberia se conseguiria recuperá-lo...

Don't Let Me Down.Onde histórias criam vida. Descubra agora