Balanços

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Eu imaginava que iria demorar para me acostumar com minha mudança radical, mas toda vez que me olhava para algo que refletisse meu reflexo, me sentia a mulher mais linda e confiante do mundo.
Pouco a pouco minha saúde mental estava sendo restaurada; havia muito o que ser feito ainda, mas saber que eu estava no caminho certo me deixava aliviada.
A perfuração por bala já estava quase completamente cicatrizada, e, graças a Deus não havia mais necessidade de utilizar curativos. No começo eu fiquei hesitante em usar roupas que mostrassem essa cicatriz, mas agora, vejo que é uma parte importante do meu passado; uma parte que eu fiz o bem.
O tempo passava rápido, e quando olhei no calendário, já estava há três semanas na casa de Emily, e, por mais que ela insistisse que eu não colocasse pressão em relação ao meu futuro na área militar, simplesmente não conseguia parar de pensar nisso. Era um pouco doloroso ainda, mas tentava captar ideias do que eu poderia fazer: a área de tecnologia parecia me seduzir, e ao mesmo tempo me dar calafrios. Operador de campo? Talvez. Forças Aéreas? Nem ferrando.
***
Ao organizar meus itens no quarto, percebi que o envelope branco com o resultado das análises do drone estava guardado em uma gaveta, e eu até então não me dei o trabalho de abri-lo.
Acho que já passou da hora de descobrir o que está escrito nesses papéis. Tenho a obrigação moral de saber isso.
Enquanto Emily arrumava algumas caixas de papel do outro lado, me concentrei ao abrir o envelope.
Ao correr meus olhos pelas palavras, tive uma surpresa.

Durante as análises foram detectadas falhas de segurança e invasão de rede de Internet, ademais, a câmera de temperatura foi suspensa por um longo período, fazendo com que o aparelho funcionasse de maneira incorreta.

-Eu sabia...! -falei em voz alta, chamando a atenção de Emily.
-O que foi? -ela se aproximou, curiosa.
-Esse é o relatório das análises que fizeram em um drone que usei em algumas missões. -respondi, sucintamente-. Há uma base de dados enorme aqui e...
-Ok, ok. -ela me interrompeu-. Sem termos nerds.
-Resumidamente, isso significa que sabotaram o meu drone. Alguém, não sei como, conseguiu. -eu a encarei-. Foi por isso que ganhei essa cicatriz na minha perna, Emi. -apontei-. Porque salvei a minha equipe e evitei um mal maior acontecer... Alguém queria matar os meus colegas.
-Tá...-ela estranhou-. E quem poderia ter feito isso? Caramba, é algo muito sério.
-Eu sei quem fez isso. -franzi as sobrancelhas-. Mas não tenho provas para culpá-lo, então...-dei de ombros.
-Trabalhando com o inimigo, hein? -ela resmungou-. De qualquer forma...-ela retirou os papéis das minhas mãos e os guardou novamente na gaveta-. Você não vai se preocupar com isso porque não é da sua conta. Certo?
Eu apenas olhava para a gaveta, sem saber o que fazer. Basicamente eu estava com algo que poderia prejudicar e muito a vida de Phillip Graves, mas eu simplesmente não poderia avançar para o próximo passo. E se, mesmo que eu detestasse Graves, ele não tivesse sido o responsável por isso? É algo difícil de ser verdade, afinal tudo apontava para ele. Porém...
-Certo?! -ela repetiu, com medo da minha hesitação.
-Sim, sim. -confirmei com a cabeça, ainda pensativa.
Eu tenho que fazer algo a respeito disso, mas o que? Às vezes eu apenas queria sumir e não ter nenhum tipo de problema.
-Ufa. -ela sorriu-. Vem, agora vamos terminar isso.
Mesmo ajudando-a com os móveis e tentando distrair minha mente, não parava de pensar no que havia lido. Era preocupante e a cada minuto que passava, sentia um pouco mais de culpa por não avisar meus ex-colegas.
Ao tirar alguns itens da minha bolsa, meu coração falhou ao ver um pequeno pedaço de tecido. Era a bandeira da Áustria que König havia me dado.
Segurei o pequeno item em minha mão, relembrando os momentos que passamos juntos.
Como será que ele está agora? Será que sente um pouco minha falta? Hmpf... devo estar imaginando coisas. König deve ser bem requisitado em seu trabalho e não tem tempo de pensar nessas coisas. Pelo menos, não mais. No fim das contas, percebi que gostava bastante dele, até esse sentimento ser eclipsado por algo bem maior e inexplicável... esse algo tem nome e sobrenome, e só o fato de lembrar tudo o que passamos juntos nas missões, deixa meu coração acelerado. Não consigo abandoná-lo em minhas memórias, e não posso deixar de amá-lo.
Apertei meus olhos e com um alfinete, prendi a pequena bandeira em um quadro de fotos no quarto.
***
À noite, foi impossível dizer que não iria sair com Emily e Luis.
-Chegou o dia! Hoje vamos ao barrio latino, hermana! -Emily me disse, animada.
-Certo... mas não tenho roupas nesse estilo, então...
-Então eu te empresto. -ela respondeu, rapidamente-. Você não vai arrumar desculpas, e o Luis estará aqui em quinze minutos.
Fomos para o andar superior, direto para o quarto de Emily. Enquanto ela se arrumava com sua maquiagem, eu tentava achar alguma roupa do meu gosto.
O guarda-roupas dela mudou consideravelmente. Pelo jeito, as influências de Luis e da cultura latina são fortes e presentes em Emily.
Acabei ficando com um cropped branco que deixava meus ombros à mostra, e um shorts jeans confortável. Para completar, coloquei um quimono curto de praia, com estampa de flores vermelhas; o tecido era fino e quase transparente.
A cicatriz da tiro era o foco dos meus olhos enquanto me observava no espelho.
-Não liga para isso. -Emily surgiu atrás de mim, segurando em meus ombros-. Você está linda, isso é só um detalhe.
Concordei com a cabeça, com um breve sorriso.
-Aceita? -ela segurava um batom vermelho, com um olhar sugestivo.
-Nunca. -ri.
-Então vá pegar uma sandália. -ela apontou para o guarda-roupas-. Sem tênis, ok?
-Sim senhora.
Uma sandália colorida baixa, sem salto e com amarração me conquistou. Ao me olhar novamente no espelho, me senti lindíssima.
-Olha que dupla maravilhosa. -Emily se colocou ao meu lado, fazendo poses engraçadas. Ela ficava linda com qualquer roupa, mas o vestido solto e florido que usava a deixou ainda mais elegante e provocativa.
A companhia foi ouvida e então ela correu para abrir a porta. Luis, se surpreendeu com nós duas.
-Vamos logo, mi amor. -Emily disse, após depositar um beijo na bochecha de Luis-. Antes que minha querida irmã mude de ideia.
***
O barrio latino ficava bem perto da casa de Emily, nos possibilitando de caminhar até o local. E era algo totalmente diferente e único. A alegria ali não parecia ter fim.
Cores fortes enfeitavam todas as casas e o comércio do local. Bares, restaurantes... todos com a mesma temática.
Haviam muitas pessoas ali, e todos dançavam, conversavam e pareciam tão felizes e despreocupados.
Mas o que me chamou a atenção foi a música: era tão diferente e a batida me fazia querer dançar; não sei como, afinal eu era péssima nessas coisas.
Acabamos entrando em bar cheio, muito bem iluminado, diferente de alguns pubs ingleses...
Eu me sentia um pouco perdida, afinal, estava em um local diferente com várias pessoas desconhecidas fazendo coisas que eu jamais me imaginaria fazendo.
-Toma!
Emily me deu um pequeno copo com um líquido cor de âmbar, enquanto saía do local para dançar com Luis.
-Ei, o que é isso?
Ela não me ouviu. Ou, não quis me ouvir.
Fiquei ali, segurando o pequeno copo sem saber o que fazer. O cheiro era forte; se eu tomasse aquilo, tinha certeza que iria me derrubar por alguns dias.
-Essa é a Mama Juana, uma bebida típica do meu país.
Uma voz grossa soou atrás de mim, me fazendo olhar instantaneamente, um pouco assustada e surpresa.
Um homem alto e moreno me olhava com um sorriso receptivo. Seus cabelos pretos iam até a nuca, dando um charme a mais.
-Seu país? -respondi confusa, com um sorriso.
-República Dominicana, hermosa.
Isso foi um elogio?
O homem trajava uma regata branca e por cima, uma camisa preta, curta. Sua calça jeans o deixava ainda mais estiloso, mas o que me chamou a atenção foi o seu colar, metalizado...
Ele pegou um pouco da mesma bebida que eu, e me olhou com um sorriso.
-De uma vez só.
Respirei fundo e engoli a seco. Brindamos e então tomei o líquido.
-Caramba...-tossi, sentindo minha garganta queimar. O homem me olhava com um sorriso brincalhão.
-É uma bebida afrodisíaca, é forte mesmo. -ele riu-. Onde estão meus modos? Me chamo Miguel.
Nesse momento percebi que o colar que ele usava era uma dog tag.
Não é possível.
-Megan, prazer. -respondi, ainda tentando me recuperar da bebida-. Você...
Apontei para a sua dog tag, e ele entendeu o que eu quis dizer.
-Vamos parar um lugar mais sossegado.
Fomos para a rua, e ali vi Emily dançando e bebendo com Luis. Os dois realmente pareciam aproveitar o momento.
-Coronel Miguel Ozuna. -ele sorriu, entendendo a mão.
-Recruta Megan Taylor. -apertei sua mão, e ele se surpreendeu.
-Isso sim é uma coincidência.
Miguel parecia estar próximo dos quarenta anos; alguns poucos fios brancos o denunciavam.
-Espero que esteja se divertindo aqui. -Miguel continuou-. A música latina tem uma energia incomparável... muito melhor que essa porcaria eletrônica de vocês europeus, ou da chatice da música clássica que tanto adoram.
-Ei!
O olhei surpresa, rindo.
-Estou certo, não é mesmo? -ele me jogou um sorriso levemente arrogante.
-Hm... digamos que eu não goste de nenhum dos dois gêneros que você citou.
-Isso me dá abertura para te mostrar o raggaeton então. -Miguel levantou uma sobrancelha.
-Se isso tem a ver com dança, bem, eu sou péssima, e...
-Sem desculpas.
Ele estendeu a mão para mim, com um olhar muito sedutor.
Olhei para Emily, e no momento, ela gesticulou um "positivo" com as mãos.
-Sim, senhor. -ironizei.
E lá vamos nós.
Peguei em sua mão, e rapidamente ele me puxou e colocou sua outra mão em minha cintura.
Miguel levava jeito com a dança, e não poderia dizer que não nos divertimos. Eu era péssima nesse tipo de coisa, e, mesmo assim, ele me fez sentir uma verdadeira dançarina.
É incrível pensar que eu estou agindo normalmente, dançando com um homem normal, em um local normal. Sem tiros, armas, sangue... eu senti falta disso.
No fim da noite, me despedi dele, um pouco triste. Mas, Emily conseguiu se aproveitar da situação e Luis fez várias piadas.
-As mulheres não conseguem resistir ao calor latino. -disse Luis.
-Ah, que convencido. -respondeu Emily-. Mas você se deu bem com aquele cara, hein Meg!
Ela deu um tapinha em meu ombro, enquanto eu balançava a cabeça, rindo.
-Ele é bem bonito mesmo, mas não teve nada a mais.
-Não teve nada a mais porque você é uma chata, Meg & Dia. -ela resmungou.
Apenas respondi com uma risada, negando com a cabeça.
Eu queria que as coisas fossem fáceis assim, irmã. Eu queria poder superar ele... mas é difícil. Irei tentar, mas não é certo que terei sucesso. Um verdadeiro sentimento fantasma...

Don't Let Me Down.Onde histórias criam vida. Descubra agora