Pode me seguir

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Nem sempre fui desse jeito, eu juro.

Eu costumava ser uma daquelas pessoas que estão sempre alegres e de bem com a vida. Lembro muito bem disso, e de todo o resto. Ainda que às vezes pareça que é a vida de outro passando como um filme na minha cabeça, todas as noites que eu passo em claro. Aliás... Todos os dias também; o tempo inteiro.

Porque eu ainda via minha família claramente: as três pessoas que faziam sempre todo o possível para me prender em casa nas noites de sexta-feira. Ainda via meus amigos... O grupo de jovens inatingíveis que também sempre faziam todo o possível para me tirar de casa naquelas mesmas noites... Ainda via até mesmo meu quarto, com aquele espelho enorme e brilhante, que eu tinha ganhado de presente só para materializar uma piada interna.

E agora eu já não sabia dizer quando foi a última vez que eu tinha me olhado em qualquer espelho que fosse. Será que foi há três semanas? Quatro? Posso ter visto meu reflexo sem querer na janela de um carro qualquer quando tive a péssima ideia de ir até uma cidade, por puro desespero. Mas, eu estava correndo... Tinha sangue para todo lado... Acho que não valeu.

Eu não ligava para esse tipo de coisa antes. Não levava nada a sério, para dizer a verdade... Nada além da minha vida de escola, festas e garotos. Mas, agora era como se outra pessoa tivesse me matado e assumido meu lugar. Outra pessoa que eu tinha lutado por vários anos para manter longe. Pelo bem da minha sanidade e vida social.

Mas, agora ela estava em mim. Assumindo o controle. Por várias vezes me forçando para dentro de um estado de transe ou autocontemplação ao me fazer encarar minhas mãos sujas de terra e sangue por vários minutos, até que eu me perguntasse de quem era aquela pele e aqueles ossos - Porque eu queria sair do meu corpo; achar um novo; um que fosse mais confortável e que lidasse melhor com a estrada, as montanhas, e os fins de tudo o que eu via. Assim, pelo menos, eu não teria que me incomodar com aquelas porcarias que nunca me atingiram antes; não teria que provar que sou mais forte que elas.

Porque a fome não era a pior parte; doía como uma faca no estômago, mas eu dava conta depois de algumas horas. Também não era o cansaço; que se eu não me beliscasse a todo instante me faria desmaiar enquanto andava. A pior parte mesmo era o frio. Merda, eu odiava aquela porra de vento gelado que batia na minha cara 24 horas por dia - Todas as manhãs eu acordava mais cansada que no dia anterior por ter passado a noite inteira estremecendo na geada e na chuva.

Esse tipo de coisa mesmo é que jamais foi um problema para mim. Os Harlows sempre tiveram uma certa disposição de lidar com situações arriscadas de peito aberto, especialmente desde a morte do meu pai em combate. Nossa dinâmica era estranha se eu parar para pensar que foi a convivência com eles que me preparou para o apocalipse. Mas, mesmo assim... Acho que nenhum de nós poderia sequer considerar uma vida segura depois de tudo o que aconteceu; sequer considerar que qualquer lado desse grande monte de merda seria fácil. Não é - E eu odeio cada partezinha disso.

Odeio não ser mais como eu era antes; odeio ser a garota se escondendo pelas trilhas, tendo um medo aterrorizante de qualquer barulho por menor que seja, que não escuta o som da própria voz há semanas ou que só se alimenta de passarinhos idiotas o bastante para ficarem na mira da minha flecha por tempo o suficiente. Odeio estar morrendo de medo. Mas, é assim que as coisas são agora. Desde o dia em que o mundo decidiu devorar a si mesmo.

Naquele dia, no entanto, a montanha estava calma. Mais calma que eu. Tudo o que se ouvia era o som dos meus próprios passos quebrando as folhas secas debaixo de mim; tudo o que eu via era laranja e marrom - Virava meu mapa de um lado para o outro, tentando me encontrar no meio daquela confusão e chegar até o topo; para depois cruzá-lo e escalar a próxima montanha... E depois, a próxima... E a próxima... O jeito mais seguro de viajar até Fort Brave desde que saí de Denton no Texas, no outro lado do país.

Polaris - Sobreviva ConoscoOnde histórias criam vida. Descubra agora