Acho que só vou me lembrar daquele dia como o dia mais escuro da minha vida.
As coisas que realmente importam foram acontecendo tão rápido e tão fora de controle que elas sequer conseguiram fixar um lugar próprio na minha memória. Mas, a escuridão? Às vezes parece até que foi tudo um sonho. Que na verdade eu estava só de volta ao nosso dormitório de luzes apagadas, no meio de pessoas apagadas, tendo um sono leve demais. Porque tudo só era preto.
Enquanto eu estava lá, dentro do furgão, vendo aquela avalanche de hospedeiros desabar em cima dele... Eu não enxerguei mais nada. Foi como despencar de um abismo; aos poucos, ver a cena de um filme se tornar nublada até se acabar, de um jeito que ninguém queria; de um jeito que faltam explicações, faltam desfechos. Mas aí, do nada... A tela se escurece e sobem os créditos. Era inacreditável.
Meu corpo se recusou a entender, mesmo com a gritaria, mesmo com a confusão e a correria, mesmo com ele desaparecendo bem diante dos meus olhos. Eu não podia. Porque era ele. Porque era eu. E se fôssemos morrer, com certeza, pelo menos... Morreríamos juntos. Isso sim era justo.
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A horta já estava pronta quando demos a notícia. Algumas sementes já começavam a germinar nos canteiros de tomate, alface e maçã - E todos estavam muito felizes com isso. Vieram correndo me mostrar uma foto da primeira folhinha saindo de debaixo da terra cuidadosamente regada e adubada; o primeiro verde rompendo com o cenário de cimento nos fundos do shopping.
E quando eu vi aquilo, me esqueci da verdade por meio segundo; esqueci que a nossa pequena plantação ficaria para os bichos, para o vento e para a chuva... E sorri. Fiquei alegre como eles. O que só me fez ficar com mais raiva ainda quando a minha ficha caiu: me dei conta de que fomos longe demais com aquela fachada de nos estabelecermos "melhor"; de pensarmos no futuro distante e literalmente criarmos raízes... Quando na verdade, o que queríamos era só manter todos ocupados e distraídos.
Funcionou. Se ocuparam e se distraíram tanto que se apaixonaram pela horta - Eu nem precisava fazer planilhas. Todo mundo queria trabalhar nela dia e noite, debaixo de calor, de frio, ou do que fosse. Porque aquela terra cultivada significava mais que um contingente para toda a comida que Nick estragou. Era um símbolo. De que a gente se erguia e continuava. De que íamos ficar bem, íamos evoluir. Íamos sobreviver, afinal.
Foi essa a esperança que eu vi morrendo na cara de cada um deles quando dissemos que o portão ia cair. Metade do grupo começou a chorar de instantâneo. Vários tentaram deixar a mesa em desespero completo, e dois ou três tiveram crises reais de ansiedade, tendo palpitações e dificuldade para respirar.
Nos esforçamos muito para entregar a conclusão o mais rápido possível: a de que tínhamos conseguido contato com o Bob e que vínhamos trocando informações há alguns dias. Que o nosso grupo e a comunidade deles tinham se unido pelo propósito de achar um jeito de sairmos de lá inteiros e chegarmos seguros em Polaris. E conseguimos. Achamos mesmo uma solução. E tudo o que eles tinham que fazer era confiar na gente e se preparar.
Não foi nada fácil. Doc entrou numa de que não iria embora. Disse que era o nosso médico cirurgião e que não deixaria todo aquele equipamento valioso para trás para nos seguir para onde ele não teria nada e seria completamente inútil. Estava firme na decisão de que morreria naquele shopping... Até descobrir que Polaris tinha uma equipe de 13 médicos. 6 deles, cirurgiões. E que eles tinham classes para formar outras pessoas, já que a comunidade era um grupo de centenas; uma demanda gigantesca. Depois de descobrir isso, Doc foi o primeiro a ficar pronto para partir.
Atrás dele, a próxima pessoa que mais deu trabalho foi a Karoline. O que era compreensível. Estávamos indo para o deserto... O sonho que ela tinha de dar a luz num lugar tranquilo e confortável foi para o espaço. Além do que, a viagem seria muito longa. A barriga dela já se mostrava e ela se cansava fácil. Poucas semanas antes, disso tudo Doc recomendou que ela não fizesse esforço. Disse para o Ethan que ela era muito pequena e a criança estava crescendo mais do que o esperado. Seria uma gravidez de risco. Há muitos dias que já não a deixávamos lavar um prato que fosse e agora queríamos que ela fosse para fora conosco. Não era uma coisa fácil de se processar.
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Polaris - Sobreviva Conosco
Science FictionMeu nome é Elizabeth Harlow. Sou uma sobrevivente do advento epidêmico que atingiu as metrópoles globais no dia 04 de Junho de 2023, às 02:16am, horário de Washington, há seis meses atrás. E vai ter que me desculpar se você descreveria o dia em que...