36° Passe

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Pérola me recebe na porta com um sorriso gentil.

— Oi, querida — ela me envolve em um abraço caloroso.

— Oi, Pérola — respondo, tentando corresponder ao afeto, mas sem muito sucesso.

Quando nos afastamos do abraço, ela me olha com uma expressão de quem sente muito, quase como se me pedisse desculpas.

Mas que culpa ela pode ter de o marido dela ter mantido uma vida dupla? Me surpreende ela aceitar tão calmamente essa situação.

Eu, por outro lado, estou tão tensa que mal consigo sustentar seu olhar.

— Entre, estávamos te esperando.

Entro na casa, sentindo o aroma de comida me lembrar que minha última refeição foi o sanduíche que dividi com os cachorros na praça. Ainda assim, estou tão nervosa que não consigo sentir fome.

O lugar está impecavelmente arrumado, como eu me lembrava. Na sala de jantar, a mesa está posta com uma louça bonita e refinada e um buquê de flores frescas no centro.

Henrique aparece vindo da cozinha, segurando um pano de prato onde seca as mãos.

— Becky! Você chegou! — ele diz sorrindo e me dá um abraço forte.

— Oi, Rick — sorrio, tentando parecer mais confortável do que realmente estou.

Então Ricardo entra na sala.

Seus passos são firmes, mas há uma hesitação evidente em seus olhos quando me vê.

Ele não me intimida mais, mas a presença dele ainda pesa.

— Oi, Rebeca.

Cruzo os braços antes de ele parar diante de mim, como um reflexo para me proteger.

— Oi, Ricardo — respondo secamente.

Ele não é meu pai, tomara que não espere que eu o trate como tal.

Seus olhos claros cinza-azulados permanecem em meu rosto, como se ele estivesse me enxergando pela primeira vez na vida.

Não é o olhar severo e indiferente do nosso primeiro contato na entrevista de emprego; tampouco é o olhar exigente da primeira vez que eu estive aqui.

É um olhar interessado e ávido, como se ele quisesse me conhecer.

Desvio o olhar. Não quero conhecê-lo.

Passei a infância desejando que um dia ele voltasse para casa e dissesse que queria me conhecer. Na adolescência, passei a odiá-lo por nunca me procurar. Aos quinze anos, quando recebi meu primeiro salário, percebi que nunca precisei dele para nada. Então passei a ser indiferente a ele.

Vinte anos de ausência não são vinte dias.

Sua chance de me conhecer já passou faz tempo.

Um silêncio ensurdecedor cai sobre nós, denso e incômodo.

Pérola, percebendo a tensão, rapidamente tenta aliviar o clima.

— Essa noite é muito especial. Henrique fez o seu famoso risoto de camarão! — ela diz animadamente.

— Você cozinha? — pergunto olhando para Henrique, genuinamente impressionada.

— Ah, não muito bem, mas me esforço — ele dá de ombros.

— Não seja modesto, filho. Você cozinha maravilhosamente bem — Pérola o elogia, dando um tapinha carinhoso em seu ombro.

Henrique esboça um sorrisinho tímido. Adoro esse lado dele que não sabe lidar com elogios, eu já tinha notado isso na primeira vez que estive aqui.

Jogada de CraqueOnde histórias criam vida. Descubra agora