Lesly

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Sim, eu quebrei a imagem de Jesus. Fiquei me imaginando no futuro quando eu contasse isso para os meus filhos. Algumas mães contariam sobre os prêmios ganhos depois de um concurso ou de como aquele encontro foi marcante para a vida delas. Eu contaria sobre como a imagem de Jesus tinha virado pó em apenas alguns minutos.
Breno tinha uma agilidade nas mãos incrível para limpar os bancos empoeirados e em poucas horas a capela estava agradável de ficar. Abrimos as pequenas janelas para ventilar o lugar e trazer luz.

—Eu estou um caco falei sentando em um dos bancos bem limpos. Breno me deu uma pequena garrafa d'água. Dei um leve gole para limpar a garganta. Avistei do outro lado da capela os livros abandonados. — Vamos ver os livros.

Breno tossiu apenas por se aproximar. Limpei com um pano umido um dos enormes livros que podiam ser confundidos com aquelas enciclopédias que ignoramos nas grandes bibliotecas. A capa era avermelhada e estava escrita em letras douradas: Memórias.

—O que deve ser?

Abri o enorme livro e deixei apoiado sobre meu colo. Virei a folha que havia fotos de vários casais em cerimônias religiosas.

Os Mendonças, 1958. — falei lendo a a legenda de uma das fotos, que continha a imagem de um casal.

—É um álbum sobre os casamentos que ocorrerão aqui — Breno falou alisando a folha e limpando a poeira.  — Deve ter a do seus pais.

De página em página, fui procurando algum indício sobre o casamento dos meus pais. Até que chegamos no final da página e vi a foto de um casal familiar. Uma moça com o cabelo loiro curto e um rapaz com o cabelo castanho que eu conhecia como "papai e mamãe".

—Os Medley, 1990. — murmurei.

—São eles! — Breno corou.

—É são sim. — falei.

Mamãe parecia entediada na foto e dava um sorriso forçado que todos podiam perceber. Ela segurava um buquê de violetas e seu vestido branco costurado em pérolas era enorme e exagerado. Observei também papai, ele não tinha expressão alguma no rosto além dos olhos sempre cansados e confusos. Meus pais pareciam menos felizes naquela foto do que eram hoje. 

—Está tudo bem? — Breno perguntou colocando as mãos sobre meu ombro.

—Sim — menti e fechei o livro. — Vamos ver se os outros servem para algo.

Breno e eu vistoriamos a pilha de livros toda. Havia mais cinco livros sobre Memórias, três sobre cultos religiosos e os outros eram sobre a detalhada história do Cristianismo. Desistimos dos livros e fomos para a parte mais arejada da capela.

—Parece que nenhum daqueles vai nos ajudar com o trabalho. — Breno falou me encarando.

—É.

—Mas podemos fazer daqui nosso local de estudo. É silencioso e secreto— Breno sorriu quando concluiu a frase.

Apenas balancei a cabeça concordando. Olhei novamente para a pilha de livro. Foquei no livro de Memórias.
Engraçado, meus pais sempre disseram que o dia do casamento deles tinha o sido o melhor dia da vida de ambos, mas porque na fotografia isso não estava visível?
Como dizia Mia Farrow, uma das atrizes preferidas de mamãe: "A fotografia nunca se revela por inteiro quando você se desmancha por alguém. Essas relações lembram uma foto polaroid: a imagem vai aparecendo aos poucos. Algumas coisas se distanciam do sentimento original, mas isso é a vida."

Me levantei do banco e tirei o pó que encobriu minha calça jeans.

—Melhor a gente ir. Amanhã depois da aula voltamos. Já vai escurecer. — falei empurrando a cadeira de Breno para a porta de saída da velha capela.

Com um pouco de dificuldade consegui colocar a cadeira de Breno no lugar.
Fiquei feliz dele não estar mais nervoso de entrar em um carro.
Coloquei a mão sobre o bolso da calça e suspirei:

—Acho que deixei minha carteira cair — olhei pela grama na tentativa de achar — Deve estar na capela. Eu já volto.

Corri novamente para a capela, com o auxílio do meu celular procurei pelo chão de madeira, mas não havia nada. Fui até a pilha de livros e peguei o Memórias. Folheei até as últimas páginas e encontrei a foto dos meus pais. Arranquei a folha e guardei na carteira que estava no bolso da camisa.

                            ****

O céu já estava escuro quando chegamos na casa de Breno. Não apenas o céu, mas o bairro todo estava escuro.
Dona Veronica saiu de casa com uma vela. Breno acenou para a tia que venho em nossa direção.

—O que aconteceu? — Breno perguntou assim que foi retirado do carro.

—Houve uma queda de energia e não se sabe quando vai ser reabilitada — Dona Veronica falou olhando para o pó da minha blusa. — Então, como foi os estudos?

—Legal! — Breno se adiantou — Continuaremos amanhã, certo Lesly?

—Certo — falei sorrindo. — Melhor eu ir, meus pais devem estar preocupados já que não tem luz.

—Não é perigoso querida? — Dona Veronica perguntou gentilmente. — Você pode ficar aqui até voltar.

Metade de mim queria ficar, mas a outra metade sabia que eu devia ir para casa. Inventei a desculpa de estar cansada e fui correndo para a casa.

Assim que cheguei percebi que o carro de papai não estava na garagem, entrei e encontrei mamãe sentada no sofá segurando uma pequena vela.
Subi as escadas silenciosamente mas foi em vão, mamãe levantou e me viu.

—Posso saber onde você estava? — ela falou.

—Em lugar nenhum.

—Não tem essa de "lugar nenhum".

—Bom, era onde eu estava. — subi no escuro e fui para o meu quarto.

             
                              ****

Me deitei na cama encarando o quarto escuro. Parecia que na escuridão tudo ficava mais silencioso e solitário. Pensei na mamãe que com certeza ainda estava lá embaixo encarando a vela se desmanchar lentamente. Queria poder ser forte o suficiente para ajudá-la e encarar a crise no casamento. Meu pai não amava mais ela e isso estava nítido, mas por algum motivo ela se forçava a não acreditar nisso.

Com cuidado para não bater em nenhum móvel fui até a minha gaveta de meia e peguei uma pequena lanterna. Me deitei novamente na cama, ainda estava com a roupa empoeirada da capela. Peguei do bolso a foto do casamento dos meus pais.
A luz da lanterna iluminou o rosto entediado dos dois. Concluí que possivelmente papai não estava parando de amar minha mãe, talvez ele nunca tivesse a amado.



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