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30 de março 

            Os chuviscos tocavam na minha pele como suspiros expelidos, e o vento envolvia-me de uma forma acolhedora, contrastando em demasia com o rubor assente na minha face e a tristeza que me consumia. Há minha volta passavam pessoas abrigadas nos seus chapéus-de-chuva, e todas elas pareciam muito sorridentes e bem-dispostas, como se aquela chuva inofensiva lhes trouxesse paz. A minha pele encontrava-se fria, porém quente, e eu não poderia estar mais em sintonia com o céu cinzento acima de mim, que largava na terra as suas lágrimas ambíguas e imperfeitas. Encontrava-me num misto de tristeza e alegria, e, apesar de suspeitar a que se devesse, continuava a procurar outras alternativas que o justificassem, podendo assim acalmar o turbilhão dentro da minha mente. Talvez se devesse ao cheiro da chuva e da relva molhada; talvez se devesse aos sorrisos acolhedores dos que passavam por mim; talvez se devesse ao meu cabelo molhado, que me atordoava a visão; talvez fosse até devido à frieza do meu corpo, ou somente à raiva que sentia de mim. Eram todas boas razões para explicar a incerteza vivida na minha mente, no entanto, e por mais que eu tentasse recuperar parte da minha sanidade, não o conseguia fazer de ânimo tão leve.

            Não conseguia parar de repetir na minha cabeça as palavras que trocáramos, e, apesar de já nem sequer serem totalmente a causa do meu estado deplorável, eu não conseguia ignorar o quanto tudo isto me tocava. Não conseguia parar de me lembrar dele, e de cada pormenor seu, e não conseguia parar de me culpar, e de lamentar o que aconteceu.

            – Tenho um convite. – afirmara ele, no habitual tom tímido com que sempre me abordava. Havia um rubor espalhado no seu rosto, e percebi imediatamente que Luke se encontrava muito mais nervoso que o costume.

            – Um convite? – ergui as sobrancelhas, sem conseguir disfarçar o contentamento que me dava vê-lo tão desprovido de incómodos ou pudores para tomar a iniciativa de fazer algo. Em comparação com a nossa primeira conversa, esta parecia ser uma vitória arrebatadora. – Um convite para quê?

            – Segunda-feira, depois das aulas. – explanou, fazendo uma pausa para sorrir. Era um sorriso doce como sempre, e eu senti que aquelas cinco palavras eram suficientes para me levar a aceitar qual fosse a sua proposta. – Há um sítio onde te quero levar.

            – Onde?

            – Quero surpreender-te, Sophie. – voltou a sorrir, parecendo cada vez menos tímido quando falava comigo. Encontrávamo-nos sentados no cimo do telhado da escola, junto ao muro que nos separava do mundo real. Era assim que eu agora via a situação, e já não existia o mundo comum, só o meu mundo e o de Luke, unidos numa bolha impenetrável. Nós não pertencíamos realmente àquele mundo pútrido e desgostoso, e portanto criáramos o nosso, no cimo daquele telhado ventoso e acolhedor.

            – E porque é que me estás a convidar?

            – Porque quero. – aproximou-se suavemente, mantendo ainda um grande espaço entre nós. – E porque tu vais adorar aquele sítio.

            – Estou curiosa. – afirmei, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Luke acabou por se levantar, caminhando na direção do sol que se começava a pôr, lá bem alto no céu. Ele era belo e não havia outra forma de o dizer. No entanto, eu sentia cada vez mais esta enorme vontade lhe tocar, de possuir uma prova de que toda esta situação era real e estava a ser vivida. Eu precisava de sentir a sua pele e absorve-la como minha, sentir algo mais para além da conexão que nos liga. Mas Luke nunca permitiria que eu o fizesse, e isso tornava a nossa relação algo frustrante. De que serve ter um amigo se no fim de contas ele nunca te vai poder abraçar quando mais precisas? Eu sabia que não o podia culpar por isso, mas era algo que de facto me magoava, e eu não podia ser mais complacente.

Naive ಌ l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora