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PARTE I

25 de agosto

            A sensação que me invadia o peito não podia ser comparada com nenhuma outra. Era uma tempestade, mas ao mesmo tempo uma calma solarenga, que depois se transformava no maior naufrágio vivido. Eram as ondas do mar, que me acolhiam nas suas águas, que me revolviam como uma cama de seda, mas que me atiravam e lançavam violentamente contra as rochas escarpadas e impiedosas da costa. Afogava-me, respirava, fechava os olhos, tremia e esperneava. Era um beijo quente sobre a luz da noite, com o coração a disparar. Uma carícia desprevenida e indolente. Era o vento, que me congelava a pele e a arrepiava, deixando cortes na minha alma e no meu corpo. Era a chuva, e a neve. Era o gelo e também o fogo. Era tudo e ao mesmo tempo nada. Eram as estrelas no céu, como uma explosão noturna de brilho e luz, que me cegava. Era a fraqueza do cair no sono, adormecer e não acordar. Era a música. A música dele. A voz. A harmonia. O tom. Tudo. Era a sensação mais maravilhosa e desconcertante. Deixava-me apavorada e em êxtase, ansiosa e recatada. E só deixei de a conseguir sentir no momento em que ouvi a voz de Ashton, já no interior de minha casa, a cumprimentar os meus pais e a dizer-lhes que o concerto seria demorado, que não sabia a que horas me poderia trazer de volta. Tive de respirar fundo, como se me preparasse para a batalha. E era mesmo uma batalha. Uma batalha com duas frentes, mas apenas um vencedor.

           Não estava habituada a usar saltos altos, por isso tropecei quando tive a ideia me ir ver ao espelho uma última vez, na esperança de haver algo de errado com o meu vestido que me permitisse demorar mais e inventar uma desculpa que me soltasse daquele aperto. No fundo, eu queria muito ir. Queria muito ouvir a voz de Luke e vê-lo num palco, embalado pelos instrumentos que o acompanhariam, a si e à sua alma. Mas, por outro lado, assustava-me a ideia de poder não me controlar. Ashton ia estar sempre ao meu lado, o que tornava tudo muito pior. E se eu não soubesse escolher o lado certo? E se eu acabasse por magoá-lo? E na verdade, percebi que tinha falhado. Desiludi o Luke. Iludi o Ashton. Falhei. Falhei com tudo a que me obriguei. Falhei comigo mesma e falhei com eles os dois.

            Pela primeira vez, usava um vestido comprido de gala. Sabia da importância do evento, e sabia ainda que não valia a pena dar o meu pior quando podia dar o meu melhor, já que não havia nada a perder. Por isso, comprei este vestido azul, fluido e carismático, e arranjei o meu cabelo, pintei as minhas unhas e maquilhei o meu rosto, parecendo outra versão de mim. Parecia mais velha, mais triste, mais elegante. Comprovei-o quando me pus em frente do espelho, com os saltos a magoarem-me os pés, que se tinham habituado a usar nada mais do que uns velhos ténis.

            No instante em que vi o meu reflexo, tive vontade de chorar. Sabia que estava pronta, mesmo que no fundo não me sentisse preparada, mas enfim, aquilo tinha de ser assim, quer eu concordasse ou não. A data já estava marcada, Ashton já estava à minha espera, e eu não podia voltar a falhar. Respirei fundo uma vez mais, consciente de que, assim que eu saísse daquele quarto, já não havia como voltar atrás. Desci as escadas em silêncio, com a minha mão trémula a deslizar pelo corrimão de madeira, áspera em contacto com a minha pele. Depois, assim que vi Ashton parado à frente da porta, com um grande sorriso nos lábios e um blazer preto moldado ao tronco, a mesma sensação revoltante voltou a assolar-me. Mesmo do fundo das escadas, apoiada no degrau, com as pernas a tremerem e os meus lábios a teimarem em curvar, conseguia sentir o cheiro do seu perfume, misturado com o cheiro intenso do tabaco. O seu cabelo parecia mais curto, à exceção da franja encaracolada, que lhe dava um ar mais inocente e matreiro. Balançava-se nos seus sapatos envernizados, com os meus pais a uns metros de distância, ambos fascinados pela beleza que os rodeava. Dessa forma voltei a tentar sorrir, com a minha pele húmida devido ao calor e ao nervosismo. Ashton, por fim, estendeu a mão e puxou-me para perto de si, já com a porta entreaberta para nos deixar sair daquela casa. Obrigou-me a dar uma volta sobre mim mesma, de modo a apreciar o vestido requintado com que nunca me vira, e sorriu apaixonadamente, quase de uma forma surreal, que me lembrou as nossas últimas conversas azedas e sem sentimento. Depois de tudo, Ashton ainda parecia tão apaixonado por mim como da primeira vez em que mo confessou, mas eu não podia afirmar o mesmo acerca de mim.

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