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16 de setembro

            A noite caíra depressa, e com ela a chuva, que havia parado e deixando de perturbar os meus planos para esta noite. Sentia uma estranha euforia devorar o meu corpo, como o pressentimento de algo a vir ao de cima, apesar de as minhas expectativas se encontrarem muito reduzidas em relação àquilo que a noite tinha para me dar. Ainda assim, tentei encontrar-me a mim mesma no silêncio do meu quarto, refletindo acerca de tudo o que veio a acontecer até ao dia em que me encontro hoje, prestes a sair de casa para ir assistir a um eclipse. Felizmente ou infelizmente, Michael conseguiu reunir mais de vinte pessoas, o que transformaria o simples ato de olhar para o céu numa mini festa sobre as estrelas, portanto ele ficara encarregue de levar bebidas e aperitivos, ainda que eu achasse ser má ideia fazer uma festa ao ar livre, tendo em conta o estado do tempo, que parecia instável e demasiado depreciativo.

            A minha missão era falar com Ashton, eu prometera-o a Michael, mas sempre que pensava nas palavras para lhe dizer, e até mesmo no momento em que o diria, uma ansiedade descomunal tomava conta do meu corpo e eu acabava por não saber como fazê-lo. De certa maneira, achava que prolongar o assunto só nos traria aos dois mais alguma paz de espírito, mas é claro que me enganei redondamente, como mais tarde vim a descobrir. Ainda assim, corri para dentro do seu carro com um sorriso nos lábios, sabendo que, por esta noite ainda, o teria garantido. Ele, no entanto, não parecia tão animado quanto eu.

            – Pareces estranho. – foi a primeira coisa que disse ao entrar no carro e ao reparar nos seus olhos vermelhos, que quase pareciam ter estado a chorar. A sua boca fez um trejeito, mas depois sorriu forçadamente, como para me sossegar.

            – Sinto-me um bocado mal disposto. Só isso. – garantiu, inclinando-se para me beijar a bochecha. Eu sentia algo na sua voz trémula que encobria a mentira, mas preferi não insistir muito no assunto, com medo de o irritar. Na verdade, eu só queria que aquela fosse uma noite agradável, apesar de tudo apontar para o desastre.

           – Falei com o Michael e vão lá estar muitas pessoas. Vão haver bebidas e uma fogueira, provavelmente pessoas com instrumentos para passar o tempo. Achas que vais gostar? – falei, sobretudo para quebrar o silêncio e tornar aquela viagem menos constrangedora.

           – Vou adorar, bebé. – respondeu, assustando-me com a malicia impressa nos seus olhos.

           – Estava a pensar que depois do eclipse podíamos voltar para casa... já que tu não te sentes muito bem.

           – Eu aguento.

            – Ok... tudo bem. – acabei por me calar, sentido que aquilo não estava a fluir tão naturalmente quanto eu queria que fluísse. Era como se Ashton fosse um estranho e eu não o conhecesse, estando apenas a atirar ao ar palavras que o pudessem ou não cativar, acabando todas elas por perder o efeito no momento em que lhe chegavam aos ouvidos. Chegava a tornar-se num jogo irritante, quase repetitivo e planeado, e às vezes sentia que Ashton o fazia para me fazer sentir mal.

            Felizmente demorámos pouco a chegar ao descampado, que começava agora a perder a natureza desértica e a sua beleza imaculada para dar lugar a um grupo de jovens eufóricos que ali se viriam juntar para assistirem a um ritual pretensioso e trivial, mas que na nossa cabeça funcionava quase como um ato espantoso e religioso. Sobre a relva quase inexistente foram espalhadas mantas, e acendeu-se uma grande fogueira, mesmo apesar de aquele lugar ser protegido e haver avisos sobre o perigo de incêndio. Cerca de cinco pessoas encontravam-se reunidas à frente dessa mesma fogueira, com as mãos esticadas de forma a aquecer a pele, e sorrisos largos impressos nos rostos, como se aquela fosse a melhor noite das suas vidas e não estivesse um frio de rachar. O céu anunciava chuva, mas eu rezava para que ela só viesse pela madrugada, apenas para não corrermos o risco de sairmos daqui todos molhados e enlameados, o que conduziria ao desastre e a uma possível catástrofe, sobretudo porque Michael odeia quando os seus eventos correm mal e eu teria de ser a primeira a ouvi-lo ralhar.

Naive ಌ l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora