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6 de setembro

            Mesmo com ainda três semanas antes das férias, a escola já andava uma correria, tentando todos estudar o máximo que podiam para recuperar as notas do segundo semestre, e que, tal como eu, se arrependiam de ter descurado os estudos durante os últimos tempos. A minha maior inimiga era a famosa matemática, que sem a ajuda de Luke se veio a complicar de dia para dia, de aula para aula. Obrigada a pedir ajuda ao meu melhor amigo, encontrava-me agora sentada à sua frente, com um caderno quadriculado cheio de exercícios por resolver aberto à frente dos meus olhos. As minhas mãos geladas só encontravam caminho para os bolsos do casaco, na tentativa falhada de se tentarem aquecer, e Michael não parecia muito satisfeito com a minha falta de atenção. A verdade é que eu não conseguia parar de refletir acerca dos meses que haviam passado, e as coisas tornavam a repetir na minha cabeça, quase como um vídeo antigo, cheio de nostalgia e memórias angustiantes, aquele tipo de sensações que só apetecem ser repetidas vezes e vezes sem conta.

            As gotas da chuva coladas ao vidro da janela lembravam-me lágrimas, e com elas a tristeza subjacente de quem as verteu. O cheiro a café vindo do bar lembrava-me os encontros com Ashton, nomeadamente aquele em que encontrámos Lucas, o gato, abandonado numa rua singela e sombria. A forma como Michael mexia no cabelo era excruciante, mas ainda assim encontrava nela a recordação dos seus sermões e quase sorria ao pensar que, se o tivesse ouvido, se não tivesse sido tão cega, as coisas podiam neste momento ser muito mais positivas. Mas não. Ao invés ali estava eu, sentada a olhar e a escutar a chuva, lembrando todos os pedaços de história que ficaram pendentes em mim. Só queria um pouco dessa eternidade inconsciente, apesar da ironia ser mais forte e quebrar até o mais pequeno pedaço de destino. Sim, porque neste momento já nem isso me valia nada.

            – Vá lá, estamos nisto há horas. – Michael murmurou, irritado. Via-se que estava aborrecido comigo, sobretudo por me encontrar tão calada e pensativa. Ele preferia quando eu me abria e lhe contava o que me arreliava, mas eu não conseguia. Era difícil expressar em voz alta aquilo que me consumia, por mais voltas à cabeça que eu desse.

            – Podes ir-te embora, se quiseres. – afirmei, num tom calmo e convidativo. Não queria maçá-lo mais e era óbvio que nenhum de nós sairia dali com aqueles exercícios resolvidos. O meu cérebro estava demasiado cansado para fórmulas e sinais. – Não estamos aqui a fazer a nada.

            – Tu pelos vistos estás. – limitei-me a encolher os ombros. – Sabes o que me fazes lembrar, Sophie? Fazes-me lembrar aqueles doentes mentais que focam o olhar numa coisa e não descolam enquanto não têm um ataque de raiva ou coisa parecida. Vais ter algum ataque depois dessa contemplação toda?

            – Já tive ataques demais. – mordi o lábio. – Não achas?

            – Sem dúvida. – confirmou. – Mas não achas que agora é preciso ganhar coragem para te ergueres? Não podes ficar assim para sempre.

            – Acho que já passei a fase da raiva. Agora estou na reflecção.

            – E a seguir vem o quê? O momento em que te lembras de decidir o que queres?

            – Eu sei o que quero.

            – A sério?

            – Ouve, eu não quero discutir. Muito menos contigo. – olhei-o nos olhos, reparando nas manchas negras abaixo destes. Michael parecia cansado, talvez demais. – Precisamos ambos de descansar, pelos vistos.

            – Não vou negar que concordo contigo nesse aspeto. – sorriu. – Mas a sério, Sophie. O que vem a seguir?

            – Se eu soubesse... – um suspiro profundo abandonou-me os lábios, mas não deixei de sorrir, contemplando a chuva e as gotículas que deslizavam pelo vidro. Era tudo tão simples quando se olhava para uma janela coberta de chuva, tudo tão mais pacífico. – Michael... tu chegaste a falar com o Luke?

Naive ಌ l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora