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1 de maio

            Depois de me ter ido embora, deixando Luke à mercê da sua mágoa interior e do terrível choro que me fazia tremer, apanhei o autocarro para casa e enfiei-me na cama, acabando adormecida num igualmente lamurioso pranto. Esse foi talvez o pior dia da minha vida. Nunca me sentira tão impotente e inútil como naquele instante, em que Luke caiu de joelhos no chão e desatou a chorar, gemendo inaudíveis insultos à sua própria incapacidade. O meu objetivo sempre foi ajudá-lo, bem como ao resto das pessoas que me apareciam pela frente, mas, pela primeira vez em muitos anos, não consegui cumprir esse objetivo, rendendo-me piedosamente à tristeza refletida nos olhos de Luke e ao seu medo invulgar. Eu não me considero uma pessoa solidária ou benevolente, sou apenas uma rapariga sensível, que não fica indiferente perante as adversidades que a vida coloca no percurso de alguém. Esta vontade desmesurada de ajudar já vem de muito cedo, e eu nunca desisti, mesmo quando me diziam que era absurdo esforçar-me tanto para fazer bem a alguém que nem merecia. E, sempre que falhava, esta dor desmesurada atacava-me a alma e enchia-me de remorsos, como se a culpa fosse inteiramente minha, e a pessoa que eu não conseguira ajudar se encontrasse numa situação menos boa devido aos meus erros e às minhas teimosias. Com Luke eu sentia-me exatamente assim, e não só por tê-lo visto num estado tão vulnerável. Sentia-me assim porque, mesmo contra a sua vontade, eu insisti em tentar mudá-lo, insisti em dizer-lhe que tudo iria melhorar e que a sua solidão se transformaria numa agradável onda de compaixão. No fim de contas, ele tinha acabado por se magoar, mesmo depois de todos os avisos que a minha consciência me lançara antes de avançar, e eu não podia sentir-me mais culpada, sabendo que nada disto aconteceria se eu me tivesse levantado em silêncio e seguido caminho até à paragem, ignorando naquele dia o rapaz de olhos azuis que tanta curiosidade me dera.

            Mas agora era tarde e eu não podia mudar o rumo dos acontecimentos. Depois daquele dia atribulado e de acordar numa cama fria e coberta de lágrimas, decidi que deixá-lo sozinho fora a pior das decisões, e apressei-me a telefonar-lhe, sabendo que não me perdoaria caso algo de mal lhe tivesse acontecido. Porém não foi o som da sua voz que eu ouvi, nem muito menos o silêncio da linha, mas sim a rouquidão da voz chorosa de uma mulher, que mais tarde vim a descobrir ser a sua mãe. Ela perguntou-me o que tinha acontecido e eu contei-lhe a versão resumida da história, baixando a voz nas partes mais dolorosas, sentindo-me envergonhada por ter sido tão inconsciente. Luke era intocável e eu soube-o até certo ponto, no entanto, depois de começar a conhecê-lo melhor, alimentei a esperança de o mudar, de lhe dar uma vida normal e estável, como os rapazes da sua idade. Aproximámo-nos ingenuamente, construindo uma amizade sólida e cheia de carinho nas palavras, e nunca pusemos em causa o futuro e o que poderia eventualmente acontecer. As coisas simplesmente ruíram, e acabámos por chegar à triste realidade. O amor acabou por mudar a nossa história, que podia ter tido um final tão diferente.

            Depois disso, não o voltei a ver mais. As férias da páscoa meteram-se pelo meio e cada um voltou à sua vida. Eu pude descansar e refletir acerca de tudo, convencendo-me de que para as coisas melhorarem teria de haver uma mudança entre aquilo que o meu coração desejava e aquilo que o meu cérebro exigia. Não cheguei a nenhuma conclusão definitiva mas, depois de muitas longas conversas com Michael, e depois de escutar com atenção todos os seus conselhos, percebi que a minha vontade de ajudar o rapaz de olhos azuis não chegava a ser tão forte quanto o amor que eu sentia por ele, e daí não querer mais magoá-lo indiretamente. Não podia falar em paixão, e muito menos admitir que o amava; era algo muito indefinido que eu ainda não sabia explicar, e talvez só o tempo pudesse confirmar estes sentimentos estranhos. Eu sabia que não se tratava somente de uma amizade, havia mais. Havia a taquicardia sempre que se falava no seu nome, havia o nervosismo sempre que pensava na sua figura alta, havia o medo sempre que a afefobia aparecia na minha mente, e havia a ilusão, que tanto me fazia sofrer. Eu desejava que Luke estivesse bem, mas desejava ainda mais que Luke estivesse bem comigo.

Naive ಌ l.hOnde histórias criam vida. Descubra agora