Até posso ver o sol, é claro, se imaginar que há um sol ali, escondido sobre as densas nuvens.
Já se passaram horas que estou aqui, fitando esse céu. E alguns minutos que começou a nevar.
Vou matar ele. Matar Luck! Como pôde me deixar aqui sozinha? Com uma perna inutilizavel? Com fome? E sem ter mandado ninguém para vir me buscar?
Acho que minha bixiga tem algo contra mim. Toda vez que estou nervosa ou em uma situação de extremo perigo, ela alerta e parece que vai estourar a qualquer momento. Poderia ter um botão, ou um horário, tipo: das 19:00 as 23:00 ela acionava, porque aí, eu estaria no conforto do meu quarto.
Não pense em água!
Não pense em água!
Não está funcionando...
Aquilo no céu é uma árgora?
Um rosto aparece no meu campo de visão.
Observo o rosto familiar do rapaz com quem lutei no avião surgir logo acima do meu.
- O que está fazendo? - pergunta curioso.
- Estou tomando um banho de sol. Não está vendo? - pergunto
Ela ergue a cabeça e analisa o céu por um momento.
- Se não percebeu, o sol não aparece aqui em Cyrus - debochou.
Fecho os olhos e espero pacientemente que ele vá embora.
Não vou pedir. Sou orgulhosa de mais. Esperarei que outro alguém apareça e me leve para dentro.
- Você está bem? - abro os olhos e encontro os dele preocupados.
- Será que não passou por sua cabecinha oca que eu não consigo andar? - cuspo.
Ele faz um enorme "oh" com a boca, acenando a cabeça positivamente.
Ele se arrasta, agachando-se ao lado da minha perna, e por um longo momento pensamentos rondam sua cabeça, decidindo qual será sua ação seguinte.
Enfim, ele me pega cuidadosamente pelos braços e me guia de volta para dentro do castelo.
Durante todo aquele momento em que me carregava, sua face mostrava todo o esforço daquilo. Não que seja difícil me carregar, era mais como se ele estivesse incomodado comigo.
Não há nada pior do que depender de alguém, principalmente quando esse alguém é o cara que você deixou inconsciente dentro de um helicóptero, e o mesmo que nesse momento sustenta uma carranca pior do que a do meu pai, e olha que ninguém supera a dele.
- Não se preocupe. Não vai precisar amputar - ele solta um sorrisinho.
- Nossa, fico muito aliviada - ironizo revirando os olhos.
- Luck deu uma surra em você - ele gargalhou alto.
Ai que vontade de amassar essa cara!
- Pode rir a vontade. Vai rir muito mais quando eu disser pra todo o reino que você levou uma surra de mim no helicóptero - rio sem graça.
Espero que ele clame por perdão, mas ele faz o contrário: ri ainda mais.
Sinto vontade de descer de seus braços e dar um mortal para trás, assim como aquele garoto do filme "Karatê kids", mas aí lembro que talvez nem consiga me manter em pé, então contenho minha ânsia de matá-lo e o deixo rir um pouco mais antes de dar minha última tacada e esperar o xeque mate.
- Vou. Transformar. Você. Em. Estrume - falo pausadamente.
Observo satisfeita ele engolir em seco. Seu maxilar range, o sorriso diminui, e em seus olhos, uma sombra negra se instala.
- E como faria isso princesa? - pergunta sarcástico.
Trinco os dentes.
É claro que eu não faria isso. Nem se quisesse, não sei como conseguiria tal façanha. Mas ele não sabe. Foi só um blefe, sou incapaz de matar uma mosca, quem dirá um idiota com essa gargalhada gostosa.
- Luck me disse que posso transformar tudo o que eu quiser - falo mantendo minha face triunfante.
É mentira. Mas ele não sabe. Tecnicamente, ele disse que posso transformar qualquer coisa, então...
- Luck não sabe de nada - diz por entre os dentes.
- E você sabe? - arqueio uma sobrancelha.
Sinto vontade de cruzar o braço sobre o peito, mas quando se está sendo carregada nos braços de alguém, tal movimento se torna quase impossível.
- Os ossos de tifonianos são diferentes dos de um terráqueo. São mais fortes e poderosos, até mesmo os que não têm poderes, em suas veias corre o sangue poderoso de sua linhagem. Mesmo que alguém tente transformar um tifoniano (o que é quase impossível), a transformação será instável, além de ser imprevista, sem que saibam o que acontecerá com o enfeitiçado.
Obviamente, minha cara foi de "tacho". Sabia que não era tão fácil assim.
Ele me olhou indeciso sobre falar algo ou não. Sua face era tão transparente quanto água e qualquer pensamento dele, poderia ser percebido em seus pequenos movimentos. Como agora, que ocila entre olhar para mim, ou para o final do corredor em que seguimos.
- Sou um dos últimos da linhagem dos Nascidos de Gelo. Um dos poucos sangues puro que sobraram da miscigenação das casas. - ele exita - Minha família é muito tradicional, querem que eu me case com uma Nascida de Gelo e duvido que o rei permita que uma de suas filhas case-se com um simples sargento. - ele da uma risadinha, optando por fitar apenas o corredor.
- Você deveria se preocupar mais com o que Kira vai pensar da proposta - gargalho.
- Que? Ela deveria me agradecer! Tem muitas que querem esse lugar - afirma ele balançando positivamente a cabeça.
- Que mentira! - gargalho.
Ele faz um muchocho com a boca e se não estivesse comigo em seus braços, com certeza espalmaria a mão sobre o peito para enfatizar seu drama.
Quase senti pena dele, mas logo seus lábios se curvaram e uma gargalhada gostosa soou por eles.
Logo quando avistei a porta do meu quarto, uma sensação ruim, triste e vazia tomou meu ser.
Nossas risadas cessaram, e a única coisa a ser ouvida era esse incômodo silêncio.
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Herdeira De Gelo
FantasyHannah, uma garota como qualquer outra da sua idade, com apenas a preocupação de não saber o que cursar quando terminar o ensino médio, se vê em uma situação inexplicável no momento em que suas ações se tornam questionáveis. Depois do estranho e tem...