MACHUCADA

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Mesmo que doesse pra cacete os ossos dos meus punhos, ainda sim não se sobrepunha à dor no meu peito.

Sempre como num replay, diversas vezes eu avistava a face de David, sorrindo como se sua vida não estivesse se esvaindo do seu corpo. E logo após a imagem mudava para a face de Érica ao me entregar para Kiron.

O fato é que eu tinha sim, ido contra as ordens do rei, e numa monarquia, ninguém além do rei tem voz e qualquer um que vá contra sua vontade é punido. Não sabia eu que seria punida de uma forma tão desumana, o que é uma tremenda ironia já que eu mesma não sou humana.

Quem eu sou?

Essa pergunta sempre rodeou meus pensamentos e assolou toda a minha vida (ou apenas a que consigo lembrar).

Pensei que soubesse. Pensei que pudesse ser alguem, ter uma identidade... Mas agora, tudo o que acreditei, o que deixei de acreditar, e o que depositei minhas crenças, ainda são um mistério. Ainda não sou quem deveria ser. Não sou humana e aparentemente, de acordo com as palavras de Kiron, também não sou sua filha, a herdeira do trono de Cyrus.

Então, quem sou eu?

Passei na primeira prova. Isso não deveria significar o contrário? Não deveria constatar a hipótese de que sou mesmo a herdeira do trono de gelo? Mas aparentemente algo mudou. Em algum momento as coisas começaram a dar errado.

Ergo os pulsos onde finos traços de sangue levam aos dedos inchados dos impactos contra um dos espelhos de gelo, e observo as algemas.

Não pareciam com o poder de Kiron. Não eram de gelo, na verdade não tinha nada que me fizesse lembrar de tal poder. Eram metálicas, com escrituras e traços profundos marcados no aço cintilante como prata. E entre cada traço, um brilho de um azul royal, vibrava com se houvesse vida ali, naqueles poucos diâmetros prateados.

Não pode ser o poder de Kiron. O gelo pode transformar as coisas, mas não gera vida à elas. Assim como meu celular, que não consegui fazê-lo funcionar aqui. Não sem entender seu mecanismo. Só posso criar aquilo que sei como funciona, assim como a espada que criei, ela não possui uma vida própria, um sistema operacional, artificial. Eu a comando, eu a...

Franzo o cenho.

A imagem de Kiron segurando a espada vem a minha mente e rapidamente percebo os traços nela escritos, traços semelhantes ao das...

Olho novamente para as algemas e traço com o indicador uma linha, seguindo uma de suas escrituras.

Será possível que eu não seja mesmo a filha de Kiron? Mas se eu não for... também não poderei ser a filha de Croos, pois ele era estéril e tão pouco posso ser filha do terráqueo que me criou.

Então uma nova pergunta surge: Quem é meu pai?

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