Herdeira De Gelo

ENCURRALADA

Passo o restante da tarde me martirizando por não ter conseguido responder. Mas o que me incomodou mesmo foi a reação de Luck. Não intendi o que ele quis dizer, ou o que me espera nesse tal jantar.

Preferia que ele tivesse gritado, esperneiado, me chingado. Tudo é melhor do que essa dúvida que me corrói. Essa sensação nada boa, a de que estou muito, muito ferrada. E o que quer que tenha nesse jantar não é nada bom.

Três batidas leves na porta ecoam pelo quarto.

"Não seja o Luck. Não seja o Luck" desejo me encolhendo na cama. Ponho rapidamente o lençol sobre mim e  fecho os olhos. Fico imóvel esperando que quem quer que seja, entrar.

Passos leves clicam no piso de gelo do quarto. Prendo a respiração esperando o pior. Um vento morno passa por meu rosto "está próximo!" . Contenho minha ânsia de abrir os olhos e continuo imóvel sob o lençol fino.

- Senhora? - meu coração vem para a boca.

Abro os olhos e vejo Érica sorrindo gentilmente com uma bacia e um jarro de porcelana detalhadas com ouro.

Engulo rapidamente meu coração para o seu lugar. Sento na cama me encostando na cabeceira.

- O que é isso? Já falei que posso tomar banho sozinha - falo emburrada lembrando da manhã de ontem quando ela quis me ajudar a banhar.

- Vou retirar a casca - disse acenando para a perna.

Empurro a perna para fora da cama alcançando a beirada da bacia que fora pousada no chão.

Ela lentamente banha minha perna com um líquido branco e usa a outra mão para massagear e ir retirando os pedaços grandes da "casca" que se desprende do restante. Em poucos minutos minha perna estava totalmente livre daquele material negro.

Examino a perna a procura da fratura, ou de alguma cicatriz, nem que fosse um pequeno hematoma. Mas está totalmente limpa, sem qualquer mancha que denuncie sua lesão.

- Viu? Eu lhe disse que podia confiar nas gosmas do Mestre Filegein - exclamou ela animada.

Sorriu meio sem graça por ter duvidado. Claro, na Terra as lesões demoram semanas até estarem totalmente cicatrizadas. Essa gororoba dele mudaria tudo se os terráqueos soubessem de sua existência.

- Luck a avisou sobre o jantar? - Érica perguntou sem olhar nos meus olhos. Interpretei tal ato como a conclusão de que meus pensamentos sobre o jantar estavam certos.

Ela caminhou com a bacia até o criado mudo e a pousou ali, junto com o jarro, fingindo mexer em algo lá dentro.

- Pode me dizer. O que me espera nesse jantar? - vou direto ao ponto

Ela gira os calcanhares mostrando sua face, totalmente obscura, triste. A feição cansada de antes agora ainda mais nítida. A pena, o receio estampado em seus olhos.

- Nada de mais - ela sorri mexendo em alguns fios de seu cabelo que teimam em sair da touca cinza.

Franzo o cenho observando tal movimento. É algo involuntário, que com certeza nem ela saiba o porquê de fazê-lo. Mas por experiências anteriores, sei que está nervosa, assim como na outra noite em que tive um ataque de nervos ao me deparar com a morte iminente.