LEMBRANÇA

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- Anah - um homem corre passando em frente aos meus olhos.

Suas pupilas azuis percorrendo o perímetro da casa simples em que estava. Era alto, porém de uma delgadez absurda para um homem da sua estatura.

Andava corcunda, semi serrando os olhos e circundando cada móvel empoeirado da sala, a procura da pessoa a quem chamara.

Aparentava ter uns 50 anos, porém em seu rosto, as linhas de expressão davam a entender que era bem mais velho do que a própria casa, os cabelos ralos grisalhos, com uma pequena depressão no topo da cabeça calva não melhorava em nada a visão daquele homem.

Na mesinha de centro quadrangular, mantinha-se um cinzeiro com bitucas de cigarro recém fumados, que com a brisa morna que ultrapassava a cortina velha quadriculada de verde e amarelo, que entrava pela pequena janela de madeira e ainda acendiam os restos de fumo enrolado no papel.

O homem continuava sua busca pelo próximo cômodo, a cozinha, que ainda mais miserável que a sala, permanecia com um ar triste e solitário, como se a muito tempo, ninguém a tivesse utilizado.

Uma montanha de louças sujas formavam um triângulo de base sobre a pia de inox, estavam sabiamente sobrepostos e equilibrando-se absurdamente contra a própria gravidade.

O chão repleto de gordura amarelado grudava nos chinelos de dedos do homem ali, e por incrível que pareça, uma mulher cozinhava no que suponho ser os únicos objetos ainda limpos, com o abdômen rente ao fogão e cantarolando algo.

- Anaaaahhh... - gritou novamente o homem, soltando um efeito de música de ninar e seguindo para o próximo cômodo da pequena casa, desaparecendo ao virar a esquerda em um corredor escuro que penso que o levará a algum dos quartos.

Sigo para perto da senhora, que ainda permanecia inerte em sua própria melodia, terminando e recomeçando diversas vezes, com pequenas pausas apenas para soltar a fumaça de seus lábios que voam em forma de anéis e se desintegram no ar.

Nenhum dos dois pareciam perceber minha presença ali. Porém sei que estou de alguma forma nesse lugar. Posso sentir, o cheiro do cigarro exalando e grudado nos móveis e o grude do chão fixar em minhas botas a cada passo que dou.

- Onde estou? - falo

A mulher para um momento, e engole um tanto grosso de sua própria saliva. Porém coloca novamente o cigarro entre os lábios e continua sua melodia como se eu mesma não existisse.

Passos pesados e rápidos enchem a casa de vida enquanto os risos de uma criança surgem de algum lugar.

Eu o conheço. Não a casa, ou as pessoas. Mas cada gargalhada.

Começo a andar rapidamente. Sigo pelo corredor mas estaco antes de virar a esquerda como aquele homem.

Uma criança corre em minha direção, olhando fixamente dentro dos meus olhos, gargalhando como se tudo ali não fosse estranho demais para uma criança e se aproximando cada vez mais de mim, com um sorriso enorme de felicidade.

Sou eu.

Eu em uma outra família. Talvez dois ou três anos de idade, fugindo daquele homem horrendo, mas não por medo. Eu estava brincando com ele.

Ela ultrapassa meu corpo como se eu fosse apenas um holograma e corre para o próximo cômodo.

A sigo observando seu corpinho minúsculo, os cabelos ruivos compridos demais para uma criança balançarem de um lado para o outro e ela desaparecer no próximo cômodo.

Quando enfim entro no quarto do casal percebo o quão vazio está. Os sons de sua gargalhada sumiram e ela simplesmente evaporou.

O homem surge logo depois de mim e seu sorriso diminui assim que percebe que ela sumira.

Ele coça a cabeça calva e solta um suspiro longo.

- Ela sumiu de novo? - a voz feminina da cozinha invade os corredores.

Ele apenas acena positivamente com a cabeça como se sua mulher o pudesse ver nesse momento. Sua face estava triste e decepcionada. Algo o estava atormentando.

Ele gira os calcanhares e vai até a cozinha.

- Ela está evoluindo - diz baixinho o bastante para apenas sua esposa ouvir.

Ela finalmente tira o cigarro dos lábios e amassa a ponta sobre o cinzeiro ao lado do fogão suspirando pesadamente e balança a cabeça em sinal negativo.

Ela lança um olhar para o marido mas antes que possa dizer algo, várias batidas na porta nos assustam.

- São eles - ela larga a panela no fogão e se vira em direção à pia pegando a primeira faca, erguendo na altura da cabeça o cutelo.

O homem segue até a sala e pega um rifle que se mantinha sobre um suporte na parede.

A porta rapidamente é lançada para o ar em uma explosão de luz azul. Vários homens entram em seus trages negros, com capacetes e armas grandes.

O símbolo em seus peitos me chamam atenção.

Um urso branco, porém no lugar do floco de neve havia as iniciais SPS.

"Sistema de proteção suprema" a voz de Luck soou em meus ouvidos.

Olho para o final do corredor, e enquanto pais e oficiais supremos lutavam por mim, ou melhor dizendo,  pela menina, a criança os observavam de longe. Seus olhos estavam repletos de medo e a única coisa que fazia era os observar em silêncio.

Quando um dos agentes vai em sua direção tento o segurar, o impedir de a levar. Mas minhas mãos atravessam seu corpo.

Ela fecha os olhos desaparece deixando um rastro azulado para trás.

Todos param a luta e silenciam a si mesmos.

Sorrio.

Por isso talvez minhas lembranças sempre sejam brincando de esconde-esconde.

Não era uma brincadeira justa. Para os outros é claro.

Eles a levariam, em algum momento. Porém sei que ela os faria procurar muito.

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