Tárcio - Júlio César.

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Finalmente havia chegado o dia de folga de Tárcio. Naquele dia ele nem sequer pensou em colocar o despertador para tocar, mas seu corpo já estava acostumado com o horário, e mesmo que o dia de ontem havia sido incrivelmente puxado, ele havia acordado cedo.

Já se fazia um ano que ele servia os outros Pastores, e por mais que fosse difícil, Tárcio fazia de tudo para olhar aqueles homens como o próprio Deus. Toda roupa que deveria lavar, todo o sapato que tinha para engraxar, toda a cama que tinha que arrumar. Deus iria vestir aquela roupa, Deus iria calçar aquele sapato, Deus iria dormir naquela cama.

Ele sentia falta de conversar com Júlio César, mas por mais que o rapaz tentasse voltar a conversar com ele, Tárcio havia achado melhor evitar qualquer contato. Ele não queria fazer mais problemas e se fosse preciso sacrificar até a amizade, ele sacrificaria, até mesmo as comidas que Júlio César às vezes deixava, Tárcio não aceitava mais. Era difícil, mas foi naqueles meses que Tárcio se apegou mais a Deus. Aquele deserto que ele passava era onde a sua comunhão havia sido reconstruída. Ele estava sempre em constante oração, poderia não ter mais ninguém fisicamente para que ele conversasse, mas tinha Seu Amigo, Deus estava em todos momentos que ele O chamava. Em suas horas vagas, mesmo cansado ele lia a Bíblia e jejuava. Às vezes sozinho se perguntava como ele havia deixado aquela comunhão se perder? Com Deus ao seu lado era tudo diferente...

Então pensou se ele estivesse bem quando tinha ido para São Paulo. Se ele tivesse pedido ajuda... Como as coisas estariam agora? Será que o casamento dele e de Bárbara seria liberado? Será que eles estariam juntos?

Era ruim ter essas questões em sua cabeça, por isso ele rapidamente se levantou. Cabeça vazia era oficina do diabo, e ele não deixaria que o diabo tentasse contra ele.

Tárcio franziu as sobrancelhas ao olhar para a cama de a Júlio César, ela estava totalmente arrumada, como se o rapaz nem houvesse chegado perto dela durante a noite.

O rapaz respirou fundo. Já fazia um certo tempo que ele estava preocupado com o seu amigo. Tárcio havia perdido as contas de quantas noites por acaso havia acordado com os movimentos de Júlio César. No começo, o rapaz apenas se virava de um lado para o outro, sem conseguir dormir. Depois, ele já não fazia mais questão. A noite inteira ele ficava mexendo em seu celular, Tárcio havia brigado uma vez com ele incomodado pela luz do celular, mas não havia causado efeito nenhum. O semblante de Júlio César estava piorando cada dia mais...

Tárcio até havia pensado em conversar com o colega, mas como o Pastor Kléber havia deixado estritamente claro que não queria ver os dois de papo, então o que restava para o rapaz era orar pela alma de seu amigo.

O rapaz deu de ombros, colocou seus chinelos e depois de fazer suas higienes matinais, ele caminhou até a cozinha onde ainda havia vários Pastores tomando café da manhã. Assim que Tárcio entrou, todos pararam de falar sobre o que quer que estivessem conversando e fingiram não estar encarando Tárcio.

Tárcio já estava acostumado com aqueles olhares, mas ele achou que depois de algum tempo os Pastores se acostumariam com ele ali.

O rapaz deu uma breve olhada por todo o cômodo procurando Júlio César, mas não havia nenhum sinal dele. Será que ele havia ido para outra igreja?

Tárcio sorriu, mas por mais que os dois não conversassem mais, Júlio César teria contado essa grande novidade para ele.

Ele pegou seu café e se sentou em uma mesa longe, quando começou a tomar, o Pastor Kléber entrou na cozinha:

-Tárcio, no meu escritório, agora! -Os Pastores começaram a sussurrar entre si quando Tárcio se levantou. -Antes que vocês comecem a falar qualquer coisa! -O Pastor encarou um por um naquela cozinha. -Vocês sabem que não é culpa dele, antes de apontar a trava do olho de seu amigo, tire a sua própria!

***

Tárcio sentou na cadeira a frente do Pastor Kléber e sem dúvida alguma, o rapaz preferia a expressão do Pastor de furioso do que aquela que ele estava.

Ele não só parecia triste, mas principalmente decepcionado.

-O que aconteceu, Pastor? Foi com o César, não foi? -Tárcio perguntou quando a espera já era insuportável.

-Por que você acha isso?

Tárcio engoliu em seco:

-Ele estava agindo estranho nesses últimos dias...

-Toma. Leia isso! -Ele entregou um papel.

O coração de Tárcio se apertou, e ele só não queria que tivesse acontecido o que ele mais temia.

Seus olhos percorreram o papel, e logo ele percebeu que era uma carta. Uma carta de Júlio César.

"Antes de mais nada, não é culpa do Tárcio.

Minhas escolhas, minhas consequências. Creio que se Tárcio soubesse dessa minha escolha, o conhecendo, diria que ele faria de tudo para me impedir.

Mas eu escolho isso, não quero que ninguém venha atrás de mim, agradeço tudo o que fizeram por mim, mas eu preciso viver a minha vida, eu sou jovem ainda e a partir desse momento estou me desvinculando de qualquer coisa que esteja ligado a Igreja."

Os olhos de Tárcio se encheram de lágrimas ao ler a última frase:

"Não serei mais Pastor."

-Isso não pode ser... -Tárcio sussurrou.

-Eu sei que é difícil digerir tudo...

-Precisamos ir atrás dele! -Tárcio se levantou.

-Tárcio, as coisas não são bem assim...

-Você leu a mesma coisa que eu li, Pastor? Ele está cego!

-Mas ele fez a escolha dele!

-Não importa! -Tárcio gritou com uma revolta crescendo em seu peito. -Ele é uma alma! Como nós pode deixar que o diabo tirasse uma alma debaixo dos nossos olhos?! O que nós estamos fazendo?! Como vamos cuidar das pessoas lá fora se não conseguimos cuidar dos que estão aqui dentro?! -Tárcio gritava e o Pastor Kléber abaixou a cabeça.

-Livre árbitro. -Foi a única coisa que ele respondeu.

Tárcio limpou as lágrimas de raiva com as costas das mãos.

-Como as pessoas podem escolher algo que não seja Deus, Pastor?

-Porque elas não O conheceram de fato, Tárcio. -O Pastor pegou um pacote preto e colocou nas mãos de Tárcio. -Quero que você vá, corte o cabelo, faça a barba e as unhas, amanhã tome banho bem cedo e vista o que está dentro desse pacote, mas só abra amanhã e só vista se realmente estiver certo do que está fazendo. Me encontre no salão.

-Mas...

-Agora, vai descansar, Tárcio. É seu dia de folga.

Canção de um servo.Onde histórias criam vida. Descubra agora