O peso da culpa

44 3 0
                                    

[...] dado uma segunda chance e trazido sua vida de volta. [...]

Natasha lhe encheu de selinhos antes de afastar sua boca da dele. Quando ele abriu os olhos diversas emoções surgiram, amor era uma delas, mas a dor era o foco de tudo. Ela passou suavemente sua mão ao redor do rosto dele escolhendo as palavras certas para seguir com aquela conversa:
- Fala comigo John
- Eu estou falando
- Não, nós falamos sobre nós dois, mas agora quero saber de você.
- Não tem nada para saber de mim – Sorriu de canto.
- Tem sim, e você sabe. Me conta. Você está completamente isolado de tudo e todos, isso não é bom. Esse foi um dos motivos por eu ter vindo, para que conversasse comigo.
- Nat eu não preciso falar nada, eu estou bem.
- John olha bem para mim, eu não estou aqui para te fazer sofrer, muito pelo contrário, quero apenas te ajudar a passar por isso. Você nunca deixou ninguém chegar perto, e a consequência disso é que sofre sozinho.
- Ah – John apertou os lábios em uma linha dura olhando para os lados e soltando a respiração pelo nariz. Com certeza não queria tocar naquele assunto. Segurando sua cintura ele a sentou ao seu lado. Natasha não gostou nem um pouco dessa separação, se fosse falar com John sobre aquele assunto queria estar o mais próxima possível, de preferencia em seu colo como estava há uns segundos atrás.
Ela respirou fundo sabendo que arrancar a história dele não seria nada fácil, mas não estava ali para desistir tão fácil, então mudou de tática. Olhou para o piano ao seu lado e lembrou que quando entrou na sala John estava tocando, seria por ali que começaria:
- Que musica estava tocando quando cheguei?
Ele olhou para ela primeiro e depois para o piano, cogitando se respondia ou não:
- Beautiful Boy do John Lennon – Ele fez uma pausa como se estivesse lembrando de algo. Ficou agitado por uns segundos movendo os olhos para os lados em busca de algum consolo – Meu pai cantava o tempo todo para mim. Lennon compôs pro filho dele, e no final da música meu pai sempre trocava Sean por John quando cantava.
- Sean era o filho do Lennon – Acrescentou.
- Sim – Sorriu rapidamente – Meu pai era fã dos Beatles, principalmente do John Lennon.
- Deixa eu adivinhar, seu nome é em homenagem a ele.
- É – Riu fracamente concordando. – Eu nasci anos depois da morte dele, e quando meu pai soube que o Lennon tinha morrido, ele fez uma promessa que o primeiro filho homem que tivesse daria o nome de John. Bom fui o primeiro e o último.
- Foi um gesto muito bonito – Segurou o braço dele lhe dando um beijo no ombro.
- É... – Abaixou a cabeça – Quando eu era criança ele cantava quase todas as noites, muito desafinado, mas nunca perdia a oportunidade de cantar. Quando eu estava crescendo ele começou a fazer cada vez mais viagens por causa dos compromissos, e para eu não me desacostumar nem esquecer do nosso momento juntos, ele gravou a música cantando. Todas as noites eu colocava no lado da minha cama e escutava. Diversas e diversas vezes ate enjoar.
Natasha permaneceu calada, não queria que ele parasse de falar, estava conseguindo entrar naquele assunto delicado pouco a pouco:
- Só que ele morreu, e escutar aquela gravação passou a ser uma tortura para mim.
- Você nunca mais escutou?
- Não, exceto na data de hoje, que é quando eu mais preciso escutar a voz dele.
- Então porque ao invés de tocar você não escuta a gravação?
- Porque eu não consegui... Lembrar de tudo e... Escutar ele cantando, é demais para mim – Levantou do banco ficando um pouco longe.
- Você devia escutar. Seu pai gravou com tanto amor, ele ficaria triste se visse esse presente como algo para lhe causar dor – Também ficou de pé.
- Não, é que você não sabe... Eu não quero contar... Eu só quero ficar sozinho – Se afastou ainda mais. Ela percebeu quando os pingos de água caíram no chão. Ele estava chorando.
- Eu não vou embora
- Ah! Por favor... Eu sei que você veio aqui com a melhor das intenções e que nos acertamos, mas hoje eu quero ficar sozinho.
- Eu não vou – Insistiu.
Ele grunhiu em frustração:
- Natasha eu não quero brigar, por favor, vai – O sofrimento em sua voz era desolador.
- John eu também não quero brigar, e não vamos, essa decisão já está tomada, eu não vou embora.
- Eu não quero ninguém comigo – Falou alto virando-se para ela – Me deixa sofrer sozinho. – A expressão de dor foi demais para ela suportar.
- Não, por que você não está sozinho – Se aproximou dele em passos largos segurando seu rosto – Você não está sozinho – Repetiu – Nunca mais vai estar. Se quer sofrer, então me deixe sofrer junto, você não vai mais passar por isso sozinho.
- Eu não posso levar você junto nisso – As lágrimas banhavam seu rosto escorrendo por suas bochechas ate a camisa.
- Eu já estou nisso, quando eu te aceitei no meu coração, também aceitei todo e qualquer problema. Eu prometi nunca sair do seu lado, que aliviaria toda a dor. Me deixe cumprir minha promessa.
- Natasha... – Sussurrou seu nome com tristeza segurando seus pulsos.
- Me conta o que aconteceu com seu pai
- Não, não – Ele tentou se afastar, mas ela o segurou perto recostando sua testa a dele.
- Desabafa comigo – Fechou os olhos tentando segurar seu choro – Eu nunca forcei você a falar sobre seu pai porque sabia o quanto era doloroso, mas agora eu quero que fale.
- Dói lembrar – Falou entre seu soluço.
- Eu sei que dói, mas a partir do momento que dividir isso com alguém, arrancar do seu peito, nunca mais vai doer, acredita em mim. – Abriu seus olhos para ver os dele, mas estavam fechados, e bem apertados.
- Eu... – Engoliu o nó na garganta. Relembrou todo o acidente e sentiu o peito latejar. Afastou-se dela bruscamente – Eu o matei.
- Co-como assim? – Ela ficou estática com aquilo.
- Se eu não tivesse chegado antes – Suas costas bateram na parede e ele deslizou ate cair sentado no chão, chorando parecendo uma criança abandonada. – Eu devia ter chegado dois dias depois.
- Eu não estou entendendo John – Andou ate ele ajoelhando-se na sua frente – Me explica, mas primeiro respira fundo.
John teve dificuldades de fazer o que ela lhe pedira, respirar fundo, até tentou, mas os soluços não deixavam. Tomou a coragem necessária e continuou:
- Eu ainda morava em Londres, mas estava com saudades de casa, então meus pais me deram a opção de vir para cá e passar alguns meses, se eu me adaptasse me mudaria de vez. – Limpou a garganta – Eu deveria chegar dois dias depois, mas estava tão ansioso para revê-los que decidi adiantar minha passagem e fazer uma surpresa chegando antes.
Natasha tocou a mão dele que tremia como se estivesse no frio:
- Minha mãe ficou tão contente quando me viu, dava pulos de alegria – Mordeu o lábio e continuou – Meu pai estava visitando meus avós nesse dia, mas minha mãe ligou para ele e disse que eu estava aqui. Na mesma hora ele entrou no carro e veio correndo para casa – Abaixou a cabeça tornando a chorar.
- Fique calmo, está tudo bem – Tomou suas mãos levando a boca para beijar cada uma.
- Ele já estava perto de casa quando atravessou a rua e um outro carro avançou o sinal vermelho acertando em cheio o seu lado... A ambulância chegou rápido no local e o levou para o hospital... Quando nos disseram o que tinha acontecido foi como se tivessem tirado o chão debaixo de mim, toda aquela felicidade simplesmente havia desaparecido no momento em que me contaram que meu pai estava muito mal em uma cama de hospital – Um grunhido de dor escapou de seu peito – Ele ainda aguentou por dois dias, e eu fiquei ao seu lado todo o tempo, não dormi nem comi nada, apenas ficava sentado ao seu lado segurando sua mão, rezando, implorando para que de alguma forma ele se recuperasse.
- Oh John... – Foi impossível segurar suas lágrimas.
- No segundo dia ele acordou e... E... Ele sabia que estava morrendo, então segurou minha mão com força – Seu peito arfava e sua vista estava embaçada por causa das lágrimas que caíam sem reservas – Eu lembro a última coisa que ele disse... Ele me olhou nos olhos, sorriu e disse "Seja forte garoto, minha diversão acaba aqui, mas a sua não e eu vou participar de cada momento" Eu me aproximei dele e com esforço tocou meu rosto e disse "Eu senti sua falta. Me desculpe filho... Não esqueça, eu te amo" E segundos antes de fechar os olhos eu também disse que o amava, e então ele se foi... Sorrindo.
Natasha sentiu o nó em seu peito sufoca-la, não podia imaginar todo sofrimento que John passou vendo seu pai morrer lentamente a cada minuto e estar impossibilitado de fazer algo para ajudar. John puxou ar para os pulmões e seu olhar escureceu:
- Depois que os médicos confirmaram a morte, eu fiquei com tanta raiva que a única coisa que podia pensar naquele momento era achar o desgraçado que o matou e fugiu sem prestar socorro.
- E você o encontrou? – Natasha lembrou o que Mary havia dito sobre John ter ficado violento e se recusar a aceitar o inevitável.
- Precisei fazer apenas algumas ligações, no mesmo dia eu fui atrás dele junto com a polícia. Quando ele abriu a porta e viu os policiais não precisou perguntar o que era aquilo, dava para ver na cara dele que estava derrotado, e aquilo me irritou, eu partir para cima dele.
- Meu Deus
- Eu queria ter dado uma surra maior, mas os policiais me seguraram e eu comecei a xingar todos eles, principalmente o homem, berrava dizendo que ele tinha matado meu pai, que havia destruído minha vida por conta da imprudência dele... E ele apenas chorava me pedindo perdão. Eu não aguentava mais olhar para a cara dele e pedi aos policiais para leva-lo.
- Ele foi indiciado?
- Sim, mais de dez anos. – Olhou para além das janelas de vidro como estivesse novamente no local, na casa do motorista – E antes de sair um garoto, de mais ou menos 14 anos veio correndo na minha direção perguntando o que estava acontecendo, eu respondi que o estava levando preso, o menino tentou me impedir de leva-lo e disse "Ele é meu pai" e eu respondi da forma mais fria "E ele matou o meu". O garoto ficou paralisado no lugar me olhando, eu entrei no carro e escutei os gritos de uma mulher atrás da viatura.
- Era a esposa?
- Era. – Concordou balançando a cabeça – Ela veio atrás de mim, na minha casa, me acusando de injustiça, dizendo que o marido não fez por mal, eu me enfureci falei tudo o que estava engatado na garganta, mas minha mãe apareceu e a botou para correr. Depois disso nunca mais ouvi falar deles.
- Eu sinto muito John
- Mas eu não paro de pensar que se tivesse esperado, chegado dois dias depois como havia marcado a passagem, que se não tivesse vindo antes, talvez ele ainda estivesse vivo. Foi culpa minha tudo isso – Abraçou os joelhos recostando sua testa sobre.
- Não, isso não é culpa sua, de forma alguma. Foi um acidente John, ninguém poderia premeditar isso.
- Eu devia ter chegado depois
- John escuta, isso não tem nada a ver com você, não foi sua culpa está entendendo?! Não foi, para de se sentir assim, não carregue algo que não lhe pertence. Você não o matou, não é culpa sua, mas sim do outro motorista.
- Como pode ter certeza? Você não estava lá – A olhou cheio de tristeza.
- Nem você estava – Ficou próxima dele para segurar seu rosto – John, meu amor, isso nunca foi culpa sua, nunca, nem deveria ter passado pela sua cabeça algo tão terrível como isso.
- Se eu tivesse esperado...
- Poderia ter acontecido a mesma coisa você estando ou não aqui – Disse antes que terminasse de falar – Poderia acontecer com qualquer um, seu primo, seu amigo, sua mãe, eu.
- Não – Respondeu no impulso segurando os braços dela – Você não. Eu jamais superaria isso.
- Foi só um exemplo, nada vai me acontecer. O que eu quero que você entenda é que não estava em seu poder decidir se aquele acidente ia ou não acontecer.
- Mas...
- Mas nada, você nunca foi o responsável. Entenda isso de uma vez, a culpa não é sua, nunca foi e nunca será. E vou repetir isso quantas vezes forem necessárias.
- Como pode ter tanta certeza que não apressei as coisas?
- Porque eu acredito em fatos, e tudo o que me contou e o pouco que eu sei, nenhum deles aponta para você. – Esticou-se mais para ficar bem próxima de seu rosto – Se você não acredita em si mesmo, então acredite em mim. Você. Não. Tem. Culpa. – Falou pausadamente olhando diretamente para seus olhos.
- Eu poderia ter esperado – Balbuciou.
- Arg! Agora escute bem John Harris porque você já está me dando nos nervos, chegando uma hora depois, ou antes, seu pai teria pegado o carro para voltar para casa, e seu acidente aconteceria de qualquer maneira, pois eu sei muito bem que mesmo estando alegre com sua chegada ele não veio correndo feito um louco pelas ruas. E tem mais, se acha que vai me mandar embora só para poder participar de uma corrida de carros, dirigindo feito um maluco apenas para desafiar a morte, saiba que está muito enganado, eu não vou arredar o pé daqui.
- Como você... – Arregalou os olhos em surpresa.
- Sua mãe. Você vai parar com essa maluquice, mesmo que tenha a melhor das razões eu não vou deixar que participe disso. Se eu não consegui te impedir, pode contar que eu vou junto, assim seria a minha e a sua vida que estaria arriscando, se um morrer o outro também vai. Agora que tenho você nunca mais sairei do seu lado, nem que eu precise ser sua sombra, mas por Deus, eu nunca mais vou deixar você sozinho. Então esqueça de uma vez essas ideias idiotas de que por sua culpa seu pai morreu e que por causa disso arrisca a vida em corridas clandestinas. – Falou cheia de determinação e raiva.
John ficou boquiaberto com as exigências impostas por ela, não que estivesse achando ruim, mas ficou muito contente em saber que alguém se preocupava tanto com ele a ponto de querer participar de algo perigoso, como as corridas, que a maioria dos pilotos corre apenas por dinheiro e trapaceiam para isso. Ele sentiu como se sua respiração estivesse voltando ao normal, uma parcela daquela culpa havia sumido, depois de tudo o que escutou e a convicção com que ela falou afirmando não ser culpa dele o acidente tiraram um baita peso de suas costas:
- Quem é você para falar assim comigo? – Perguntou mostrando um sorrisinho de canto.
Ela suspirou sorrindo, segurando o rosto dele aproximando o seu e respondeu:
- Sou a mulher da sua vida – Olhou em seus olhos antes de beija-lo.

Continua...

Simply, I love youOnde histórias criam vida. Descubra agora