Capítulo 3

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Kelly.

Já é o meu segundo dia oficial de trabalho e eu ainda não sei como me portar. Acordei bem mais cedo justamente para conseguir colocar meus pensamentos em ordem e conseguir me arrumar de forma produtiva antes de sair de casa. Afinal, não posso atender os clientes mais ricos da cidade totalmente desarrumada. Ao mesmo tempo, não quero exagerar na produção e atrair olhares desnecessários em minha direção.

Mesmo usando roupas mais longas e largas, calças ao invés de vestidos e saias, eu ainda atraído olhares dos homens. E sempre que isso acontece tenho que me controlar para não me desesperar e ter uma crise de pânico no meio da rua, dentro de um elevador, ou em qualquer lugar onde eu esteja. A impressão que tenho é que cada homem que me olha vai me pegar a força a qualquer momento, e tudo o que aconteceu há dez anos atrás irá se repetir de novo. Encaro o guarda roupas aberto e penso em tudo que aconteceu no primeiro dia de funcionamento, logo depois da organização do escritório.

Depois que eu afastei, Daniel do nosso beijo no dia anterior, ele ficou claramente desconcertado. Acho que ficou com a impressão de ter feito algo de errado. Mas o problema não é ele. Sou eu.

Daniel foi gentil comigo, me beijou lentamente. Eu não queria que ele se sentisse dessa forma, mas eu não consegui agir de forma diferente, foi mais forte do que eu.

O doutor Daniel não me olhou uma vez sequer, o que me faz quase pensar que eu imaginei aquele beijo do restaurante. Ao mesmo tempo que eu sentia vontade de ir até ele, eu me repreendia por ter esse sentimento assim tão explícito e rápido. Não faz sentido algum gostar tão forte de alguém tão rápido assim. E aquele beijo? O que as pessoas vão pensar? O que Daniel vai pensar? Que eu sou extremamente fácil! E facilmente abusável.

Ou talvez não seja nada disso. Talvez seja a minha mente imaginando que cada homem que demonstra qualquer tipo de interesse em mim queria me estuprar. As vezes eu me pego pensando que eu só queria ser uma garota normal, viver uma paquera, um romance, ou simplesmente me deixar ser beijada e tocada por um homem livremente, sem pânico, sem receio, sem barreiras. Mas graças a um garoto mimado que resolveu destruir a minha vida, isso nunca foi possível.

Tento pensar claramente naquela tarde, mas só consigo lembrar de flashes. Não sei se tenho sorte ou azar de não conseguir recordar a imagem do garoto.

O nome eu sei até de cor, lembro exatamente da casa e da voz. É bem provável que não more mais aqui, pois a casa foi colocada à venda dias depois do ocorrido. Eu nunca mais o vi depois daquele dia. Mas ele permaneceu nos meus sonhos todas as noites naquela época, e às vezes acaba fazendo parte deles hoje em dia também.

Agora sem imagens, mas com todo o resto. Ainda me lembro dos seus toques, eu ainda posso senti-los sempre que penso nisso.

Sinto uma angústia tamanha que preciso me movimentar para saber que não estou nos braços dele novamente. Vou até o banheiro fazer as maquiagem, depois escolho a roupa. Falo algo rápido e simples, para não chamar muita atenção. Encarando o espelho, sinto meus lábios formigando ao lembrar do beijo. Uma confusão enorme me atinge e eu me sinto incapaz de agir para tomar alguma decisão. Como ficar livre desses sentimentos que estão entranhados em mim? Como voltar a viver uma vida normal assim?

Fiz terapia durante algum tempo, ela me foi oferecida quando minha mãe denunciou aquele monstro assim que consegui encontrar uma forma de contar para ela, do meu jeito tudo o que aconteceu comigo. Ela ficou transtornada.

Descobri alguns anos depois, quando já era uma adolescente, tudo o que aconteceu naquela delegacia. Os policiais não acreditaram muito na minha mãe, e nem em mim quando tive que depor. Eles diziam que poderia ser tudo criação da minha imaginação , uma fantasia minha. Mas mesmo assim eles me encaminharam para uma espécie de estudo psicológico.

A equipe de psicólogos e psiquiatras que me atenderam relataram em um relatório que havia a possibilidade de ter havido um abuso sexual e aí, o meu caso foi a julgamento.

Como eu disse antes, ele era um riquinho mimado. É óbvio que só pegou uma pena leve e se mandou para longe daqui. Isso não foi o bastante para me privar do medo.

Todos os dias, sem tirar um sequer, eu tenho medo de sair na rua, de falar com homens, de viver a minha vida. O medo virou meu melhor amigo. Tento afastar estes pensamentos, pelo menos por agora. Olho pelo espelho uma última vez e saio do banheiro e vou para a cozinha, onde encontro minha mãe já acordada, preparando o café.

— Bom dia, querida. Dormiu bem? — Ela pergunta enquanto joga a água quente dentro do coador.

— Dormi sim mãe, e a senhora? — respondo enquanto vou até ela. — precisa de ajuda?

— Dormi bem. Não precisa, não quero que manche sua roupa de secretaria executiva. Tão chique. — Ela brinca enquanto deixa a panela de água de lado. — Já terminei aqui, as coisas já estão na mesa. Não teve pesadelo essa noite? — Ela pergunta passando as mãos em meus braços.

— Eu estou adorando a minha nova vida de secretária executiva. — Brinco também e me sento na mesa. — Não, nenhum pesadelo. — Decido não contar para ela sobre o meus pensamentos anteriores.

— Que ótimo, minha filha. Parece que tudo está se encaixando. Finalmente...

— Ela suspira trazendo o bule de café para a mesa e se sentando comigo.

— É . Eu e o meu chefe nos demos bem. Até almoçamos juntos ontem. Eu digo enquanto sirvo uma xícara de café para mim.

— Sei... E como ele é? É um senhor que já tem uma longa carreira? — Ela me olha rapidamente enquanto se serve.

— Não, ele tem pouco tempo de formado. Mas vem se destacando muito por sua competência. Por isso já tem clientes de fora da cidade.

— Ah e como você disse que era o nome dele? — Ela pergunta antes de começar a comer.

— Daniel, Daniel de Moura.

— Daniel de Moura. Não conheço essa família. Será que são novos por aqui?

— Eu acho que passaram um tempo fora e voltaram para cá há pouco tempo, pois o Daniel me disse que cresceu aqui, mas foi embora há muito tempo.

— O bom filho à casa torna, não é mesmo? — Ela brinca e paramos um pouco a conversa para terminar logo o café e não nos atrasarmos

Termino de comer as bolachas e tomo o último gole de café. Me disse o da minha mãe com um beijo, pego a minha bolsa e saio de casa para mais um dia de trabalho. Eu me sinto feliz ao pensar que verei Daniel novamente. Essa avalanche de sentimentos de forma tão rápida me deixa um pouco perturbada. Mas decido ignorar isso, e por um momento deixo estes novos sentimentos me inundar e tomar conta do meu coração. É algo tão bom que neste instante eu não quero e não posso frear, eu só quero sentir.

Marcas do PassadoOnde histórias criam vida. Descubra agora