Capítulo 14

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Daniel

Eu não sei como se seguiu o almoço, como conversei, como socializei com elas. Só o que sei é que agora estou aqui, no meu carro, chorando, com a minha cabeça latejando de tanta dor, desejando mais do que tudo morrer. Eu não consigo ordenar meus pensamentos eu só consigo chorar e sentir uma angústia que não saberia descrever em palavras.

Eu só consegui dirigir uma quadra, o bastante para sair da frente da casa da Kelly. Meus olhos percorrem a rua e eu só consigo ver as bolas difusas de luz, as lágrimas e o atordoamento não me deixam ver muito mais. Meu peito me sufoca e eu sinto todos os sentimentos dos últimos anos acumulados querendo ser liberados neste exato momento.

Sinto meu corpo anestesiado, meus braços formigam e me incomodam tanto que eu sinto medo de estar infartando. Torço para que esteja certo, seria uma preocupação a menos para mim.

Eu já decidi que conversaria com Kelly assim que eu me sentisse melhor. Claro que isso seria o mais rápido possível, mas não hoje. Sei muito bem que não podemos continuar juntos e isso me dói tanto.

Na verdade é tão difícil para definir o que mais dói em mim. A minha vida inteira foi uma dor. Tento relembrar de forma clara quando foi que a minha vida começou a ser difícil para mim suportar.

E é aí que as lembranças do meu pai começam a surgir em minha mente, lembranças da última vez que o vi.

Flashback on

— Mãe? — Eu batia na porta freneticamente enquanto ouvia os gemidos abafados dela. — Eu vou sair, vou chamar os vizinhos, a polícia! Espera, não morre, por favor! Eu comecei a correr para fora da casa, mas senti braços fortes me puxarem de volta.

— Quem você acha que é Daniel? Você é só um moleque, não tem nem 8 anos ainda, mal saiu das fraudas e quer proteger a mamãe?

Ele sorria se divertindo com aquilo, enquanto eu me esforçava ao máximo para controlar as lágrimas que queriam sair dos meus olhos. Eu não podia demonstrar medo, eu tinha que ganhar tempo. Eu tinha que proteger ela e minha irmãzinha que estava dentro da minha mãe. Era só nisso que eu conseguia pensar.

— Pai, porque você faz isso, porque machuca a mamãe? — Ele fixa seus olhos frios em mim, e eu tenho que me controlar para não tremer.

— Ah filhinho, você não faz ideia do quanto é gostoso ver uma mulher contraída em seus braços. Mas um dia eu espero que você seja macho e não essa menininha, aí você vai me entender. — O seu tom de voz era frio, assim como os seus olhos.

Antes que eu pudesse responder algo a minha mãe apareceu na sala. Eu só conseguia pensar que ela estava triste e eu não compreendia tudo o que ele fazia com ela, mas eu sabia muito mais do que um garoto normal de 8 anos deveria e teria maturidade para saber.

— Daniel, vai brincar lá fora, por favor. Ela fala baixo enquanto eu continuava sem me mover, com o meu olhar fixo nela.

Eu não queria sair dali, não queria deixá-la sozinha. Contudo, fui lá para fora para não desobedecê-la, mas não me afastei. Me escondi atrás de uma das árvores, aproveitando que meus pais estavam distraídos demais para perceber que eu não estava brincando.

— Chega. Eu cansei. — Eu me esforçava demais para ouvir toda a conversa deles.

— Cansou do que mulher? Eu é que estou cansado, de você e daquele moleque insuportável. — meu pai gritava ao mesmo tempo em que se aproximava mais da minha mãe, deixando todo o meu corpo em alerta novamente

— Como eu pude ficar tanto tempo com você? Você é um monstro, um monstro. Mas agora acabou, chega. Eu vou te denunciar.

Naquele momento eu nem sequer me mexia atento, tenso demais.

Eu não consegui ouvir o que ele disse para ela, eu só via as mãos dele no seu rosto, o olhar ameaçador cravado nela. Eu já ia sair da árvore pensando em fazer alguma coisa, mas ele saiu da casa, cruzando as ruas para longe do meu campo de visão.

Eu nunca soube para onde tinha ido. E não sabia que depois daquele dia eu não voltaria a vê-lo novamente.

Flashback off

A dor no meu peito aumenta mais, como se ainda fosse possível. Eu não consigo respirar normalmente. É difícil até para puxar o ar.

Pensar no meu pai me dá nojo, mas eu sinto ainda mais nojo de mim por um dia ter agido como ele.

— Não, eu não sou como ele, não sou. Eu agi errado uma única vez, o que eu fiz não é o que eu sou. Não faz parte da minha essência.

Eu digo isso para mim mesmo a cada segundo, na tentativa de não enlouquecer de vez. Mas talvez fosse bom que eu enlouquecesse de verdade. Só assim eu perderia a noção de tudo ao meu redor, do mal que causei a Kelly e a sua família e também à minha própria.

Eu pensei que minha mãe não fosse aguentar quando ela soube o que eu fiz. Ela passou por muito sofrimento na época que eu fui a julgamento e sempre me disse que acreditava em mim, que eu não seria nada daquilo, que eu não era um estuprador.

Flashback On

Eu cheguei em casa cansado depois de mais um dia longo. A casa estava aparentemente vazia. Caminhei pela sala e cozinha, não tinha ninguém, Subi as escadas na direção dos quartos.

Ignorei o quarto de brinquedos. Era um lugar maravilhoso, onde eu gostava tanto de ficar, mas naquele momento eu nem conseguia sequer olhar para aquela porta, que agora estava sempre fechada. A minha mãe procurava mantê-la assim quando eu estava em casa.

Procurei ignorar esses pensamentos com uma força de vontade quase que sobre humana e me dirigi rapidamente até o quarto de dona Kátia. Abri a porta lentamente. Minha mãe está tão distraída, absorta olhando algumas fotos.

— Mãe, tudo bem? — Eu perguntei preocupado,me sentando ao seu lado, sem conseguir olhá-la direito.

— Oi, meu amor. Eu não te vi chegar. — Ela me olhou surpresa. Quando eu a vi atentamente, as lágrimas quiseram cair mais uma vez por meus olhos e eu tive que me esforçar e muito para não chorar.

Os seus olhos expressavam muito cansaço, eles estavam fundos com olheiras ao redor. Parecia apenas uma sombra da mulher linda e vaidosa que ela havia sido um dia.

Mesmo com tudo que ela passava com meu pai e todas as humilhações naquele relacionamento, eu jamais a tinha visto tão abatida. Lhe abracei apertado enquanto desejava com todo o meu coração que ela fosse forte, que aguentasse tudo aquilo que eu mesmo tinha causado.

— Eu te amo, mãe. Eu te amo. Me perdoe, por favor. Eu sei que tudo isso um dia vai passar e eu prometo que eu nunca mais vou te dar nenhum desgosto, eu prometo. A senhora sentirá muito orgulho de mim. Eu viverei a minha vida inteira para isso daqui para frente. — Eu falava já soluçando com as lágrimas inundando o meu rosto.

Minha mãe me apertou mais, fazendo carinho pelos meus ombros e costas.

— Eu já te perdoei, meu filho. Há muito tempo. Eu sei que sentirei orgulho de você. Você vai estudar e tenho certeza que será um grande advogado e ajudará muitas garotas como aquela menina a encontrarem algum alívio para os seus corações. Eu acredito nisso.

Flashback off

E eu realmente vivi minha vida inteira fazendo de tudo para dar muito orgulho à ela. Eu a ajudava sempre que podia, aprendi a cozinhar, a fazer todos os serviços doméstico. Fui estudar fora e me formei com louvor, sendo um excelente aluno.

Nunca mais fui o playboy que eu era até o maldito dia, por mais que eu ainda tivéssemos um ótimo padrão de vida graças ao que meu avô nos deixou, eu nunca mais esbanjei, não fazia mais festas, não ia mais a baladas. Eu deixei de ser um moleque para ser um homem.

Mas agora a única coisa que eu sinto é medo, medo de não ter mais forças para cumprir o que mais prometi, medo de não conseguir mais seguir em frente.

Marcas do PassadoOnde histórias criam vida. Descubra agora