Capítulo 1

1.8K 478 3.6K
                                    

 Marília, segunda semana de junho de 2018.

Kelly

Chego em casa animada e confiante com a entrevista que havia feito. Finalmente a agência me chamou para um processo seletivo. Já estava começando a ficar preocupada, achando que havia feito aquele curso técnico em administração a toa. Assim que coloco os pés em meu quarto, o celular me notifica. Não consigo conter o grito de felicidade ao ler o e-mail que me aprovava como secretária do novo escritório de advocacia da cidade. Finalmente, parecia que
minha infinita maré de má sorte estava indo embora. 

Deixo minha bolsa no quarto e troco de roupa para preparar um jantar especial para contar a notícia à minha mãe. Ela ficará tão orgulhosa, disso eu tenho certeza. Conseguiremos ajustar as contas de casa e fazer algum dinheirinho sobrar. Agora, tudo vai se ajeitar... Preparo um jantar bem leve, aproveitando as coisas que estão na geladeira. Não é o que gostaria de fazer agora, mas temos que priorizar a saúde de minha mãe, que já não está tão bem, e minimizar os gastos em casa. Agora é torcer para que eu consiga dormir a noite inteira, sem ter nenhum pesadelo ou crise de insônia.

— Boa noite, minha filha! — Minha mãe entra na cozinha e me olha com estranhamento. — Que bicho te mordeu?

— O bicho do emprego! — Falo sorrindo e espero que ela se dê conta do que falei.

— Conseguiu algo na agência? — Ela pergunta, colocando as duas mãos no rosto. 

Eu aceno e ela vem até mim, me abraçando. 

— Eu te disse que tudo daria certo, Kelly. Eu disse!

— Eu sei, mãe. A senhora disse isso sim e está tudo se ajeitando mesmo. — Ela se afasta e me olha atenta. — O emprego é de secretária de advogado. Ninguém sabe quem é,
mas vai abrir um escritório lá no centro. 

— Que ótimo! Tomara que seja um desses advogados decentes, não como aqueles de porta de cadeia que acham infinitas brechas para inocentar quem é culpado. Eu sinto o remorso em sua voz ao mesmo tempo em que sinto meu peito se apertar. Sei muito bem do que ela está falando. O advogado mais caro e importante da cidade, o mesmo que inocentou aquele maldito garoto dos olhos azuis, nunca me esqueço deles. Foi a única coisa que consegui gravar.

— Não, minha filha. Não vamos entrar nesse clima novamente. Vou guardar minhas coisas, lavar minhas mãos e vir cozinhar com você. Já volto. 

Aceno para ela, mas assim que ela sai eu desmorono na cadeira. Olho aqueles legumes em cima da bancada, sinto vontade de jogar tudo fora e não comer mais nada, mas me forço a levantar e começar o jantar antes que minha mãe me encontre assim. É assim que minha vida segue nos últimos dez anos, eu apenas me forço a fazer as coisas e torcer para que a vida me corresponda positivamente.

Paro em frente ao prédio, olhando toda a sua altura. Esse seria o primeiro dia do trabalho e eu estava empolgada demais. Eu realizei todo o procedimento de contratação através da agência de empregos mesmo. O advogado me ligou ontem, pedindo uma ajuda extra, pois é um escritório novo e ele estava muito atrapalhado com o tanto de ligações e pessoas entrando e saindo para instalar os móveis, internet, computadores, sistemas de comunicação e segurança, etc. Aceitei porque estava louca para começar a fazer algo e também queria ter uma boa relação com meu chefe.

Aqui estou eu, nervosa e ansiosa, respirando fundo e criando coragem para entrar no prédio. Eu já estou com o crachá, então meu acesso foi liberado na mesma hora. Entro no elevador e as borboletas de meu estômago dançam com o som de minha alegria, eu só consigo sorrir. Assim que paro em frente à porta do escritório, ela é aberta e dois rapazes saem comentando algo sobre o outro cliente ser no mesmo prédio, dois andares acima. Ao menos responderam
meu bom dia e ainda deixaram a porta aberta. Relaxo meus ombros, respiro fundo e entro na sala.

— Esses materiais de escritório, você pode deixar aqui perto das mesas. Minha secretária está vindo me ajudar e esse serviço mais leve pode ficar com ela. — Fala o homem que está no meio da sala que deveria ser a recepção.

— Eu sou forte o bastante para ajudar a arrastar alguns móveis também. — Falo não muito alto, mas sorrindo para quem estava no ambiente. — Bom dia à todos.

O homem, que aparentemente é o meu chefe, vira-se rapidamente e nossos olhos se encontraram. Eu sorrio mais ainda, fitando aqueles olhos azuis, quase transparentes. Ele me encara de forma estranha. Sua boca se abre lentamente e sua sobrancelha esquerda arqueia mais do que parece ser normalmente, mas seus pensamentos só parecem ser interrompidos assim que mais alguém entra na sala. Não sei quanto tempo ficamos naquela troca intensa de olhares.

— Seu Daniel, aqui estão os cartões de acesso da portaria de todos os funcionários, para evitar ficar pedindo autorização na recepção. — Um rapaz muito novo entra na sala, passando
rapidamente por mim. Ele vai entregando envelopes ao meu chefe e identificando cada um. — Aqui dentro tem as chaves da caixa de correspondência...

Daniel continua olhando o que está escrito em cada um dos envelopes, mas faz um sinal para que eu me aproxime, estendendo alguns dos envelopes para mim.

— Essas chaves ficam com você. Faça cópias identificadas. Faça a identificação dos cartões de acesso e coloque em envelopes para cada funcionário.

— Aqui estão os documentos que faltavam sobre a venda da sala. Esses aqui são as normas para autorização de acesso dos clientes... — O rapaz continua falando com o Daniel enquanto eu pego os envelopes que ele me passa. — Quero também que você ajude na organização dos materiais de escritório e dos armários de processos, esse tem que ser o que tem chave. Faça cópias identificadas dessas chaves também. — Daniel fala enquanto continua verificando o
material que o rapaz traz e me dá ordens. 

Por um segundo ele para a leitura da lista de coisas que estava recebendo. Olha os envelopes em minhas mãos, depois me encara. Aqueles olhos começam a me parecer frios e sombrios. Ele ajeita a postura e me analisa mais um pouco.

— Por que você não está anotando o que eu estou pedindo? São muitas coisas... Sua memória é tão boa assim?  

Marcas do PassadoOnde histórias criam vida. Descubra agora