Capítulo 16

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Levamos poucos minutos até a tigela que a tia Filipa tinha separado para nós duas esvaziar completamente, embora eu tenha sido a responsável por comer praticamente a tigela inteira sozinha, enquanto Lenora espremida no pequeno sofá da sala ao meu lado, ela me mantinha a par dos últimos acontecimentos. Mas o que eu podia fazer? Se os bolinhos doces estavam, exatamente, como eu lembrava quando criança: eram macios, devido ao tempo que era preciso entre sovar a farinha branca com água e um pouco do caldo doce, não muito para que não fique em excesso e nem pouco para que não fique sem o sabor do caldo e a doçura necessária, exatamente a medida perfeita. Eles possuíam uma crosta dourada e crocante, devido ao tempo no forno e por serem banhados no caldo doce antes de irem ao forno. O caldo doce era feito com melaço e algum saborizante que eu nunca sequer soube exatamente o que era, mas proporcionava um sabor ao mesmo tempo doce e levemente amargo, assim que mordiamos respingava um pouco do caldo o que causava uma mistura de sabores e texturas. Tia Filipa recheava os bolinhos com o mesmo caldo doce e acrescentava um pouco mais da farinha branca para dar consistência ao recheio. Eu ainda me lembrava quando ficávamos em pé próximos ao forno ansiosos para que a tia Filipa tirasse os bolinhos do forno e logo em seguida rechear-los e em poucos minutos esvaziávamos as tigelas, com eles ainda quentes. Jonathan conseguia farejar de longe o cheiro, antes até mesmo de nós duas e era o primeiro a atravessar a sala até a cozinha. Mas isso fora em outro tempo. Em outra vida. Não somos mais crianças de modo que nossas preocupações não são mais resumidas em quanto tempo levamos até comer toda a tigela e correr para fora da casa para continuar com a brincadeira. Lenora havia dito que além do número de guardas e Duplicados ter sido muito maior do que normalmente seria em dia de vacinação, o que não foi nenhuma surpresa para mim, levando em consideração que eu presenciei junto com Alexia os enormes caminhões sairem da fronteira em direção a Cirta abarrotado de guardas e Duplicados. O continente também fez a "colheita" antes da aplicação das vitaminas, o que eu não esperaria acontecer tão cedo. Como as vitaminas do sol repõe não só a falta de vitamina D no nosso corpo mas também nutre a falta de outros nutrientes. Uma vez por ano são extraídos do nosso organismo uma pequena amostra de sangue para constatar se de fato o que tomamos está surtindo o efeito necessário ao nosso corpo. Geralmente o continente extrai essa amostra de sangue no final de cada ano, segundo nos foram ensinados desde que nascemos e começamos a necessitar das vitaminas para o funcionamento do nosso organismo. É quando os registros de todos os distritos de trabalho são encerrados e os rendimentos daquele ano são discutidos e comparados, o que não faz o menor sentido o continente fazer a colheita agora, quando não estamos no final do ano e enquanto uma ameaça rebelde está tão próximo de suas fronteiras. Pensei sobre isso durante todo o caminho de volta até minha casa. Quando mesmo a contragosto Lenora já dava sinais de cansaço e tinha se rendido de vez ao sono, ali mesmo na sala. Então eu havia me despedido dela e saído da casa. Em poucos minutos estava de volta em casa e embora a porta não tenha sido totalmente trancada, minhas irmãs já deviam está na cama, pelo silêncio que encontrei assim que entrei. Ótimo, tudo o que eu menos queria, agora, era ver Sofia pronta para um segundo interrogatório. O peso das últimas horas tinha, de fato reivindicado meu corpo, eu precisava descansar. Então sentei mesmo que por alguns minutos no sofá da sala para aliviar um pouco o peso sobre meus ombros das horas e quando me dei conta, já havia adormecido, um sono pesado e sem sonhos.

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As duas semanas seguintes se passaram como um borrão. Jonathan ainda estava se recuperando dos machucados ocasionados do nosso primeiro encontro com os Retalhadores, Kayla acampava em seu quarto todos os dias para checar pessoalmente se os unguentos curativos estavam sendo usados corretamente e levar suas refeições, já que cada passo que ele se atrevia a dar ainda exigia um certo esforço. Depois que eu relatei ao Noah o que havia acontecido no primeiro encontro com os rebeldes dois dias após o primeiro encontro, claro que ocultando algumas partes, ele não havia esboçado nenhuma reação ou comentário, o que eu achei estranho, levando em consideração o quanto ele está focado em recuperar seu objeto perdido. Ao invés disso, tratou de me colocar em toda e qualquer missão que surgia na Alcova, junto com a equipe, durante as duas semanas seguintes. Então, em um dia eu estava montando guarda com Verona e Kayla enquanto Kira e Thitos recebiam um novo carregamento do continente em um dos túneis subterrâneos e no outro eu estava sozinha acampada no Mercado do Peso aguardando o momento em que conseguiria furtar ou negociar as peças que o Noah precisava. Não houve nenhuma notícia sobre os Retalhadores durante os dias que se seguiram, as próximas distribuições das vitaminas ocorreram sem mais surpresas, ainda com a mesma quantidade de guardas e Duplicados resguardando os distritos de distribuição. E nenhum sinal deles, parecia que nada havia acontecido, nenhum boato nos galpões de trabalho, nenhuma movimentação, era como se eles estivessem evaporado o que não era um bom sinal. Sofia estava cada vez mais ausente em casa. Nós não nos falávamos direito desde nossa última e fracassada tentativa de conversar, embora todas as noites compartilhavámos a mesma cama. Os pesadelos continuavam na maioria das noites, mas já conseguia levantar sem acordar todo mundo comigo. Eu saia cada vez mais cedo para ir ao galpão de costura e voltava muito tarde das missões da Alcova, quando elas já estavam todas na cama. Sofia não parecia se importar, de toda forma com o que eu estava ou não fazendo. Era como se eu tivesse me tornado uma estranha dentro da minha própria casa. Mas era mais fácil assim, sem perguntas, sem cobranças. Eu havia finalmente terminado o expediente no galpão de costura à alguns minutos atrás e estava agora próximo ao rall de entrada da Alcova, hoje possivelmente seria um daqueles dias em que o Noah me colocaria acampada no Mercado para negociar algumas de suas peças ou me colocaria de guarda por horas em um beco escuro e sujo, ouvindo Verona e Kayla resmungarem do mau cheiro enquanto Kira e Thitos recebia mais um carregamento destinado ao Mercado. Mas não foi nenhum deles que eu encontrei encostado na parede, sopesando o peso do corpo entre os pés. A maioria dos seus machucados haviam sido cicatrizados quase que completamente, exceto pela fina e quase imperceptível cicatriz em sua têmpora escondida levemente pelos seus cabelos castanho avermelhado, como cascatas soltas e com as mechas levemente bagunçadas, mas de todos os cortes esse era de longe o que deixaria marcas devido a profundidade que tinha sido a pancada. De resto ele estava como sempre fora, inabalável e ainda mais belo. E eu não tinha muita consciência do porquê mais não sabia como reagir a sua presença ali, eu tinha certeza que ele se recuperaria, isso era nítido, embora sua situação a duas semanas atrás dissesse o contrário, mas ele sempre fora forte e vê-lo depois de todos esses dias em que praticamente mal saia do quarto... algo se ascendeu em meu peito e eu não soube bem o que, mas me peguei dizendo, com uma voz que eu mal identifiquei como minha:

OS RETALHADORESOnde histórias criam vida. Descubra agora