⭒✧° Jisung

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Aquele era o momento perfeito.

As luzes estavam apagadas, o carro não estava na garagem. Apesar dos sons externo e o barulho incessante do cortador de grama do vizinho - um senhorzinho na casa dos oitenta anos que insistia em aparar a grama rotineiramente, mesmo que seu jardim não fosse composto por nada além de uma extensa coleção de pedregulhos - eu sabia que não saia nenhum som da casa noventa e sete. Eram sete e quarenta e seis da manhã, o casal já havia saído.

E não voltariam antes das seis da tarde.

Eu já vinha os observando há um tempo. 6:30 o despertador tocava; 6:35 a luz da cozinha era acesa; 6:47 o som da televisão da sala preenchia o silêncio eterno da casa. 7:40 os dois saiam, os rostos apáticos, sem trocar palavra. Em todos os setenta e cinco dias em que me posicionava no banco entre as árvores da calçada paralela, um livro jamais começado entre os dedos, eu nunca presenciei a aparição da arcada dentária do casal; era quase como se sorrir fosse uma alergia. Era uma desvantagem, já que seus olhos prendiam toda a atenção que alguém depositava em seus rostos.

Um sorriso brilhante é o que máscara um olhar obscuro.

A dor era nítida. Os olhos era como duas esferas inanimadas que se mexiam constantemente, sem foco. Era lamentável, porém, oportuno.

Era a dor que os mantinha alheios à minha presença.

Fechei o livro aberto em meu colo com uma mão; uma ação rotineira para um jovem de vinte e um anos que se diverte "lendo um romance" sentado no banco de uma ruela pouco movimentada. O bosque atrás de mim contribuía para o meu disfarce. Levantei me e limpei o pólen que caíra em minha calça - típico da época primaveril. Com um semblante nada culpado, atravessei a rua.

- Bom dia, jovem! - cumprimentou o senhor. Respondi com um aceno leve de cabeça e um sorriso brando.

O som mecânico do motor do cortador de grama juntamente com as lâminas batendo nas pedrinhas do jardim estava ficando insuportável. Flagrei o senhorzinho xingando baixinho uma tal Margaret enquanto seguia meu curto caminho.

Eu podia jurar que ele era esquizofrênico.

Foi fácil entrar na casa. Eles não trancavam a porta lateral; um ato que podia custar muito caro se alguém perigoso estivesse de vigia. Bom, alguém *perigoso*.

Eu não era.

Por que estou entrando sorrateiramente na casa de um casal desconhecido? Não sou necessitado; tenho uma quantidade decente de dinheiro, um apartamento aconchegante e um emprego relativamente bom. Também não testou atrás de ferir alguém, e não pretendo violar a casa. Por que estou aqui, então?

Apenas pela diversão.

Cada um tem seu hobbie, não é? Eu gosto de me introduzir nas casas alheias. Não sou nenhum tipo de stalker perverso, apenas gosto de olhar o interior das moradias. É um passatempo divertido.

Dei de cara com um cômodo vazio assim que atravessei a porta de metal enferrujado. A iluminação era precária, havia pouquíssima luz entrando por entre os vãos da persiana quebrada, entretanto, dava para se notar a poeira que cobria o chão. Os vãos da madeira do solo estavam cobertos por uma suave camada cinza; certamente fumavam.

O primeiro andar era sem graça; no segundo, as coisas começaram a ficar interessante. Além de incomparavelmente mais limpo, os lustres santinha funcionais, tirando os cômodos da escuridão. A janela na parede oposta a da escada permitia que os raios de sol inundassem o corredor. Caminhei até ela, os braços cruzados nas costas. A janela dava exatamente para o bosque do outro lado da rua; uma vista muito, muito bonita.

- Você quer brincar comigo?

A voz inocente gelou o meu sangue. Abaixei o olhar até me deparar com a silhueta de uma menininha. Três anos, no máximo. Eu tinha visto o casal sair; como eles podem deixar uma criança tão pequena sozinha?

Ou estaria ela acompanhada?

- Estou preparando o chá! - falou com ânimo pouco convincente.

Para sua idade, a garotinha falava com uma clareza impecável. Ela não exalava o brilho infantil que outras crianças emanavam, mas parecia ser tão alegre quanto. Eu acho.

- Qual o seu nome? - perguntei, seguindo-a até a porta do que supus ser seu quarto.

- Marg. Gosto que me chamem de Marg. Mamãe me chamava assim. - respondeu.

- É um nome muito bonito. Sou o Jisung. - falei, mesmo que ela não tivesse perguntado. Vi Marg balbuciar meu nome, testando as letras juntas. - Ei, Marg, sua mãe sempre te deixa em casa sozinha?

- Faz tempo que ela não liga mais para mim. Ela nem brinca mais comigo, prefere mexer nos brinquedos sozinha. - eu pude ver seus olhos pequeninos brilhando com a ameaça das lágrimas. - Acho que fiz algo de errado.

Eu podia jurar que ela começaria a chorar a qualquer instante; e eu não saberia lidar com o fato. Tentei mudar o rumo da conversa.

- Quem vai tomar o chá junto com a gente?

Marg apontou para os diversos ursos de pelúcia dispostos a nossa frente. Cada um tinha um nome e sua respectiva preferência na forma de tomar chá, e seu acompanhamento preferido. Mesmo com a pouca idade, Marg tinha um conhecimento impressionante; que criança fala sobre dívidas?

Era divertido ver suas mãozinhas brincando com a porcelana falsa. Parecia que Marg havia se esquecido que estava nesse mundo, porém, eu certamente não. Principalmente quando ouvi uma porta ser trancada e passos martelarem os degraus rumo o segundo andar. Congelei no lugar, e meus olhos aos poucos foram se arregalando; eu não costumava ser flagrado. Marg, em contrapartida, não parecia ter se tocado que alguém estava chegando perto.

De canto de olho, pude ver uma sombra passar direto pela porta, mas logo regrediu e parou no batente. Levantei meus olhos para encontrar a mulher que compunha o casal que há tantos dias eu vinha observando. Ela nao parecia surpresa ao me ver, muito menos assustada; ela sequer parecia se dar conta do que estava acontecendo. Seu olhar parecia... morto.

- O que está fazendo nesse quarto?

A voz era doce, mas parecia cansada. Crescia dentro de mim uma vontade esmagadora de a abraçar, mas lembrei do abandono para com sua filha. A compaixão se transformou em irritação.

- Marg me chamou para brincar, já que você não faz mais isso com ela.

- Quem te chamou para brincar? - perguntou, a cor lhe fugindo do rosto.

- Marg, sua filha.

- Como sabe o nome da minha filha?

- Ela me disse? - comentei em tom arrogante. Ela não estava vendo a garota brincando ao meu lado?!

- Como?

- Será que você não está vendo ela brincar aqui do meu - interrompi a frase ao me virar na direção antes ocupada por Marg. Quando foi que ela saiu dali?

- Como você conseguiu ver a minha filha?

- Do que está falando? Ela estava bem ali. - disse, apontando para o tapete rosa no qual estávamos sentados.

- Ela não tinha como estar. Ela não podia estar.

Eu podia notar o desespero crescente a cada palavra. Seus olhos estavam se enchendo de água.

Um pequeno vulto passou por trás da mulher. Marg parou e sorriu para mim.

- Ali, ela está bem ali! - apontei para o espaço entre o corpo da mãe e o batente no qual seu ombro estava encostado.

- PARE DE FALAR DE MARGARET! EU SEI QUE ELA NÃO ESTÁ ALI. ELA NUNCA MAIS VAI ESTAR.

Me apressei na direção da mulher, agora caída de joelhos no chão, o corpo tremendo com os soluços. Envolvi-a em um abraço.

Encarei Margaret, que seguia com seu sorriso estampado no rosto. Ela fez um sinal de quem pede silêncio, e seguiu correndo escada abaixo. Sem fazer nenhum barulho.

Oneshots ⭒✧° SKZOnde histórias criam vida. Descubra agora