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ÂNGELA

Roma
14, setembro 1997

Na busca pelo telefone perdido em seu próprio apartamento, Ângela se prestava a empurrar com os pés todas as coisas que mantinha no chão. Sacos de salgadinho, roupas, papel higiênico e vários maços de cigarro eram uma das várias coisas que deixavam aquele lugar mais caótico.

E ela achou, por incrível que pareça o monte de roupas não abafaram tanto assim o som incessante do aparelho.

— Alô?

X

Aquela foi provavelmente a frase mais dolorosa que já havia dito na vida, mas também a coisa mais genuína que saiu de sua boca em algum dos dias mortíferos de sua vida. Ela realmente o amava e realmente sabia que ele não era dela, nem que poderia ser. Apollonia tinha muita garantia quando à isso.

Mas depois de seu banho tomado, decidiu então fazer da maneira certa. Não vestiu qualquer roupa que poderia lhe caber razoavelmente, nem penteou o cabelo de qualquer jeito. Ângela de fato se aprontou como se estivesse indo jantar com quem ela sonhava desde sempre. Talvez terminar de matar uma relação morta possa fazer a viver. Talvez.

X

Todos na lanchonete onde ela trabalhava a olhavam feio, a não os dois maníacos pervertidos que sempre apareciam por lá.

— O que pensa que está fazendo? Você atrasou 7 horas Ângela, 7 horas!! Eu vou descontar do seu salário sua vadia imprestável.

— Não precisa. Na verdade... Eu vim avisar que me demiti. Não precisa me dar o dinheiro, eu só... Preciso ir agora.

Ela parecia tão calma, que seu chefe aparentava uma pequena preocupação, temendo que ela esteja sedada ou drogada na pior das hipóteses. Assim, característico do grande homem narcisista que era, disse à pobre moça que se mandasse, ou então chamaria a polícia.

— Ah é? - ela riu- Vai falar o que? "Olá policia, será que podem prender uma ex funcionária minha? Ela está pedindo demissão!".

Ela dentre todo o público dali, foi a única não lúcida o suficiente para rir do que estava falando, porém quando percebeu a realidade em que estabilizava, se sentiu como um animal em exposição. Um leão perigoso que apesar de parecer sedado, ninguém tinha coragem de fingir que era qualquer outro felino. Talvez o leão só precisasse de um abraço. Mas ela não ficou ali esperando caridade dos domadores, então, saiu da jaula e fugiu para a floresta.

Floresta essa, que mesmo cheia de outros bichos fisicamente parecidos com ela, provavelmente não entendiam como se sentia. A solidão, o medo constante e a dor ficavam dentro dela, no final das contas. E se nem Fredo foi capaz de o tirar completamente, quem seria o felizardo? Ela sabia a resposta. Sabia a realidade cruel que seu pai a fez ter que enfrentar desde que lhe deu de presente de aniversário o maior trauma de sua vida.

Havia uma possibilidade mínima, como 0,1% de chance de encontrar um novo amor naquele dia. E o resto dos 99,9% indicavam a provável verdade em meio tantas outras que lhe doíam igualmente. Ângela foi feita para nascer e morrer sozinha.

Apesar disso, ela resolveu se preocupar mais em tomar a decisão de em qual das vários exposições ela veria. Os enormes arranha céus naquele dia exibiam diferentes obras, de diferentes celebridades celebridades mortas. Van Gogh, Marie Curie, Albert Einstein e Martin Luther King eram uma das personalidades homenageadas no centro da cidade. Mesmo assim, decidiu entrar no que mais fazia sentido com ela mesma. Amy Winehouse.

Existiam vários grupos diferentes por todo o prédio, sempre acompanhados por guias intelectuais que contavam diferentes partes da história da Amy. Mas havia somente um dentre todos eles que subiam para o andar de cima. Logo, sem pensar duas vezes ela os acompanhou.

A mulher que conduzia o grupo era simpática e divertida, mas nada além do controle. Porém, também era desatenta o bastante para que não percebesse que ao chegar novamente ao térreo, que faltava uma pessoa entre os 10.

A música tocava tão alto, que mesmo do terraço do prédio era possível ouvir. Ela não ligou, na verdade a música era realmente boa.

Ângela cantarolou por alguns minutos, antes de se aproximar do ponto da pequena mureta que garantia a segurança de qualquer maluco que estivesse ali, por simplesmente nada. E foi maluca o suficiente para que subisse em tal mureta, que media cerca de 30 centímetros.
Ventava tanto em Roma, quanto um nevoeiro em alvo mar, mas ela manteve o equilíbrio ainda cantando conforme sabia a letra.

I go back to us.

Foi o último verso que cantarolou, antes de se mover a mais um passo. E antes de não haver nada, ficou genuinamente feliz pelo que tinha feito. Ela sabia que tudo entre ela e Al estava morto, por isso decidiu voltar para eles. Ela realmente voltou. 

Os Solitários de 1997Onde histórias criam vida. Descubra agora