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SANTA APOLLONIA

Varsóvia
25, dezembro 1999

Eu estou sentada ao lado de fora de casa, como de costume nos últimos dias. E apesar do frio em Varsóvia estar quebrando pouco a pouco os fracos ossos do meu magro corpo, espero continuar aqui na esperança de que meu enorme casaco me proteja pelo menos um pouco dessa nevoada.

Está perto de completar 2 anos desde a morte do Fredo e eu ainda não o perdoei, mesmo que a carta que ele mesmo me deixou aparentemente me ensinasse.

O departamento investigatório de Roma fez o possível para se envolver no caso do Al e realmente conseguiram. Uma merda de 5%, o que na época em liras valia 250 milhões. Mas, como tinham implantado o euro no continente inteiro, reduziram a mixaria para 3. Na verdade para ser mais exata: 2.8 milhões. O que com certeza não era um mal dinheiro! Pude comprar uma casa grande no centro-leste da Polônia, se quer saber; o que me custou pouco mais de 1 milhão. Metade da mixaria por uma casa sem aquecedor. Mas de qualquer modo, será muito fácil viver na Polônia com 1.6mi até final da década. Isso é claro, se eu não fosse uma viciada.

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Hoje é natal, meu dia favorito do ano. E confesso que não tenho uma das maiores ceias. Na verdade nem tenho uma. Amanhã vai fazer 1 semana que não como quase nada- um dos motivos pelo qual estou pesando 40kg . E apesar de não ter disposição para descer a enorme montanha em que eu moro, não é a única coisa que me impede. Na verdade, eu até daria as caras para a sociedade novamente se tivesse 1 euro se quer.

Mas isso não é a única merda que eu estou passando hoje. Quer dizer, nessa semana eu descobri após o sinal da TV ter pego, que minha mãe morreu de câncer. Eu não me comovi muito, ou pelo menos forcei para que não me atingisse. Mesmo assim, as duas situações "lamentáveis" que eu vivo, não me preocupam mais do que o fato de só me restar 1 frasco, exatamente 1 dose de toda heroína que torrou meu dinheiro sem dó.

Então... Eu pensei que talvez seria melhor se eu aproveitasse meu último dia drogada da melhor -ou pior- forma possível.

Eu ainda não li a carta do Al, mesmo depois desse tempo todo. Acho que não tinha sanidade o suficiente pra ler, muito menos empatia com o morto.

O Diabo é real. E ele não aparece encarnado em um cara vermelho com chifres. Ele aparece lindo... Eu aceitei isso quando descobri tudo. Ele fala que te ama como uma forma de pedir que trabalhe pra ele, e quando você for um fardo, te joga na ribanceira. Eu não torcia para que ele morresse, mas depois que soube o que aconteceu no LeClerc, agradeci à alma do Coppola por ter feito pelo menos uma coisa boa na vida.

Ao meu lado direito está a carta que o Al me deixou quando se foi e no esquerdo a seringa já com a dose final. Na minha frente no entanto, também está enfileirada as últimas gramas de coca que tenho. Acho que vou começar pelas drogas. Não deve ser nada legal ler uma carta do Diabo sóbria.

De qualquer modo, estou realmente confiante sobre o próximo ano. Espero conseguir me tratar e, talvez algum dia, trabalhar como fotógrafa novamente.

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25/01/98
É compreensível que não entenda o motivo pelo qual tomei essa decisão. Provavelmente nem sabe que eu me matei, mas prometo que daqui alguns anos, quando o sentimento de raiva e luto sumir por completo você enxergará com clareza. Por enquanto, me deixe pelo menos tentar explicar o porquê.

Eu me culpei a vida inteira por todos os velórios que fui, mesmo não tendo participação alguma. Aléssio costumava me falar quando criança, que se eu não tivesse deixado a porta do quarto da Constanza aberta, o assassino dela não teria a visto ali. O que também impediria a morte da nossa mãe algumas semanas depois.

Meu pai era o único que não me culpava por nenhuma dessas mortes. E quando ele morreu, não foi preciso Aléssio ou Marco dizer que foi culpa minha, eu sempre soube que foi. Talvez se eu tivesse ido à reunião no lugar dele, o morto teria sido eu.

E depois ainda sobra o resto da família de prêmio de consolação como o assassino do ano. A morte do Aléssio não me doeu tanto, se quer saber. De certa forma eu torcia para que ele morresse as vezes. Ou talvez eu só estava torcendo para que acontecesse comigo.

Eu preciso descansar, Lônia. E acho que vi em você a única faísca de um fogo que eu ainda poderia não deixar apagar. Sei que sabe que tudo é uma farsa. A viagem para Roma, as fotos, o nosso casamento foi uma mentira que contei para mim mesmo. Me dói saber que foi tudo em prol dos negócios. Então, considere pensar que foi em prol da família.

Você tem uma vida inteira pela frente, amore mio... Sei que tem seus problemas, e peço para que cuide deles e peça ajuda pois sei bem que precisa. É provável que Bologna a convide para o natal deste ano, acho que será muito bom se aceitar ir. Você não tem que ter uma história triste, só precisa se tocar que está viva o bastante para transformar essas perdas em marcas curáveis.

Se não aprender a lidar com o meu fim, finja que estou em qualquer parte da Itália. Toscana costuma ser meu apelido favorito para a morte. Mas por favor, não venha me visitar tão cedo.

Com amor e já saudades, Fredo.

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Apollonia Palermo morreu de overdose no mesmo dia, após ingerir em si mesma 3,5 gramas de cocaína e a última dose de heroína que lhe restava. Ela não teve tempo de ler a carta.

FIM.

Os Solitários de 1997Onde histórias criam vida. Descubra agora