Capítulo 26

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• Fernando •

Maiara agora trabalhava no mesmo hospital que eu.

Quais as malditas chances disso?

Bem, nada tão inacreditável assim, já que eu mesmo tinha feito o que eu jurei que não faria: retornar a São Paulo. Com o meu currículo, eu poderia trabalhar em qualquer lugar do país e até mesmo no exterior, mas decidi por São Paulo pelo simples fato de eles estarem dispostos a investir muito alto para terem meu nome em seu quadro de profissionais, e ainda me ofereceram o cargo de chefe da cardiologia.

Claro, meu sobrenome tinha um peso e tanto, e eu não tinha conseguido fugir deste fato. No entanto, eu era bom o suficiente para ter dado um peso ainda maior a isso. Fui o melhor aluno da minha turma, o melhor em meu período de residência e me tornei, em muito pouco tempo, um dos cirurgiões cardiovasculares mais importantes do país.

Não era, ainda, o suficiente para mim. Eu queria ser o melhor. Ser uma referência em nível mundial. E sabia que estava muito perto disso, mesmo tendo, ainda tão pouca idade. Pouquíssimos eram os casos de cirurgiões que alcançavam o meu nível profissional antes dos trinta anos de idade.

Contudo, São Paulo ficava a vários quilômetros de distância da cidade onde eu conheci e me apaixonei por Maiara. E eu considerava que isso me deixava, também, a uma distância segura do risco de reencontrá-la. Eu sequer sabia que ela tinha se tornado enfermeira, embora ela tivesse me dito que aquele era o seu sonho.

Vivi aqueles últimos anos lutando para me iludir de que eu tinha superado Maiara. Mas reencontrá-la me fez perceber que estava muito longe disso. Queria ser indiferente a ela, e fiz um enorme esforço para ao menos conseguir fingir isso e conseguir realizar com sucesso uma cirurgia delicada, estando na mesma sala que ela.

Eu ficaria de plantão naquele dia e viraria a noite no hospital, mas aproveitei um intervalo entre os atendimentos para sair um pouco. Fui ao Jazz Bar, um estabelecimento localizado na mesma rua do hospital, o qual eu costumava frequentar por motivos musicais óbvios. O local oferecia música ao vivo três vezes por semana, e tanto a cantora quanto o pianista que se apresentavam lá eram impecáveis.

Sentei-me em uma mesa bem em frente ao palco e pedi um drink. Sabia que estava de trabalho, mas eu tinha adquirido, nos últimos anos, uma boa resistência a álcool e sabia que um ou dois drinks não alterariam em nada os meus sentidos e minha capacidade como cirurgião. Na verdade, talvez isso até mesmo me ajudasse a me acalmar um pouco de todo aquele turbilhão de emoções causado pelo reencontro com Maiara.

Contudo, eu logo percebi que tinha escolhido um péssimo lugar para fugir das lembranças de Maiara, quando a cantora iniciou a música I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free, da Nina Simone.

Parecia uma maldição...

Antes, Nina Simone me trazia lembranças do meu pai. Agora, me fazia lembrar de Maiara. Do nosso primeiro encontro e do nosso primeiro beijo. Por sorte, surgiu algo – algo pequeno, porém curioso – que fez com que eu me desviasse um pouco daqueles pensamentos. Uma criança – uma menina que parecia ter algo em torno de seis ou sete anos de idade – parou de pé bem ao meu lado, de frente para o palco, olhando encantada para a cantora.

Eu não era do tipo que tem algum encantamento especial por crianças. Na verdade, eu sequer levava muito jeito com elas. Sempre que tinha algum paciente infantil, preferia concentrar meu atendimento fazendo perguntas diretamente aos pais e evitava maiores interações com conversas com a criança, pelo simples fato de eu não me sentir tão à vontade assim na presença delas.

Não era o caso de eu ser um monstro que odeia criancinhas. Era apenas indiferente a elas e, por consequência, não tinha muito jeito para interações. No entanto, aquela menina chamou a minha atenção pela forma como olhava para o palco. Em seguida, ela começou a balançar o corpo no ritmo da música e a cantar junto, incialmente com a voz bem baixinha, mas aos poucos foi aumentando.

Uma criança fã de jazz... Aquilo já era inusitado quando eu próprio tinha o tamanho daquela menina. Atualmente, era bem mais. Havia mais uma coisa que chamou a minha atenção nela. Não era apenas o fato de aparentemente gostar daquele ritmo – algo notório na forma como ela dançava – e de conhecer a letra de uma canção tão antiga.

A menina, mesmo sendo tão pequena, cantava bem. Era afinada e tinha uma voz bonita, o que fez com que eu me desligasse completamente da cantora profissional que se apresentava no palco e passasse a olhá-la, quase que hipnotizado. Havia algo de muito familiar naquela menina. Algo que de alguma forma levou minha mente de volta ao dia em que conheci Maiara.

A pequena, parecendo perceber que estava sendo observada, olhou para mim e sorriu. E isso pareceu me hipnotizar ainda mais. Novamente: eu não era do tipo que se derrete por crianças. Mas tinha algo de familiar e de encantador naquela garotinha.

Bettina:Oi! — ela disse.

Fernando: Oi — respondi.

Percebendo que ela estava sozinha, pensei que poderia estar perdida e me levantei da minha cadeira, abaixando-me diante dela.

Fernando: O que uma garotinha como você faz em um lugar como esse?

Emendei mentalmente o quanto era perigoso aquela menina tão pequena estar sozinha em um bar. Especialmente pelo fato de ela aparentemente não ver o grande problema que era puxar assunto com adultos desconhecidos. Existiam pessoas ruins no mundo, e aquela criança tão simpática e inocente seria um alvo fácil.

Bettina: Eu vim comer batata frita — ela respondeu, parecendo bem feliz com isso.

Fernando: Então você veio com alguém, não é?

Bettina: Sim, vim com a minha mamãe.

Fernando: Menos mal. Não deveria sair de perto dela, pode ser perigoso.

Bettina: Eu só queria chegar mais perto pra ouvir melhor a moça cantando Nina Simone. Você conhece a Nina Simone?

Tive vontade de rir.

Fernando: É, eu conheço. Mas você conhece?

Bettina: É a minha cantora favorita.

Fernando: Sério? Bem, é a minha também.

O sorriso no rosto dela aumentou ainda mais, e pareceu iluminar tudo ao redor. Outra vez, senti algo familiar. O jeito dela de sorrir era muito parecido com alguém. Novamente, a lembrança do primeiro dia que vi Maiara veio com força à minha mente. Forcei-me a voltar para a situação atual. A menina disse que tinha ido até ali com a mãe, mas não havia nenhum adulto perto dela, o que poderia indicar que estava perdida.

Tomei fôlego para perguntar onde estava a mãe dela, mas nesse momento meu celular tocou. Peguei o aparelho em meu bolso e olhei para o visor, vendo que era do hospital.

Fernando: Fique bem aqui, tudo bem? — falei com a menina. — Eu já volto e vou ajudar a encontrar a sua mãe.

Ela assentiu e eu me levantei, afastando-me do palco para conseguir ouvir bem a ligação. Atendi quando já estava próximo à porta. Fui informado que havia chegado um paciente no pronto socorro que precisaria passar por uma cirurgia de emergência. E, como a doutora Mendes não estava na cidade e não havia nenhum outro cirurgião cardiovascular de plantão, eu deveria voltar imediatamente para o hospital.

Encerrei a ligação dizendo que já estava a caminho. Voltei até a minha mesa para pagar a conta e para resolver a situação da garotinha, ajudando a procurar por sua mãe.

No entanto, ela já não estava mais lá.

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Não me matem 😬

O fruto do nosso amorOnde histórias criam vida. Descubra agora