A corça na Prefeitura

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O despertador puxou Abbo de seu sono como uma fraca linha içando um peixe gordo.

Aos poucos o mundo embaçado foi tomando forma ao seu redor, e a jovem corça pôde distinguir os contornos do armário de mogno, da penteadeira e dos demais móveis de seu quarto. Uma parca luz entrava pela janela, tímida e tênue, tão fraca quanto a corça se sentia após tantas noites mal dormidas. Lutando contra o desejo de se enrolar nas cobertas quentinhas novamente, ela se sentou, jogando os lençóis de lado e tateando o chão frio com a ponta dos cascos. Calçou suas pantufas cor-de-pelo e se pôs em pé. Mais um dia a aguardava, um dia normal de trabalho.

Cantarolar no banho sempre a ajudava a se animar. Como não havia mais toalhas limpas, ela se secou em um roupão, mesmo. Com o nó do casco dianteiro afastou a condensação do espelho, dando de cara com sua eu, limpa e quase pronta para a cidade, embora isso não a empolgasse tanto. Ficou ali por alguns minutos, usando o maço de capim de dentes e tentando decifrar o próprio rosto. Por toda sua vida ouviu que o mais importante para um cervo era fazer o que tinha de ser feito, ir para onde tivesse de ir, e agir como fosse melhor para o bando. Contudo, mesmo após 23 anos seguindo as regras e dando seu melhor para superar as expectativas dos demais, Abbo acordava todas as manhãs como no dia anterior. Nem melhor nem pior, um reflexo do restante do bando.

Não havia tempo para tomar café. Ela saiu apressada, pedalando sua bicicleta pelas ruas decadentes da cidade. O Sol não se movia sobre a Cidade dos Cervos: sua luz acendia e apagava todos os dias, e o céu tinha sempre o mesmo tom pálido acinzentado. Para a jovem corça isso era normal. Lembrava-se de quando ela e seu irmão Abuu, ainda filhotes, brincavam de rolar na terra molhada e fofa das plantações de repolho ao sul, e mesmo naquela época era notável a pacata uniformidade do céu.

Ela contornou a rotatória central, passando entre outros ciclistas e por um velho cervo que guiava uma carroça vazia. À direita estava a Prefeitura, seu local de trabalho. Um rapaz bastante eufórico estacionou sua velha bicicleta na calçada, depois abriu a trava dos chifres e retirou seu capacete, sorrindo para ela:

– Bom dia, senhorita Abbo! – ele disse, passando uma cor-rente de bambu pelo pneu dianteiro e travando-a com um cadeado de madeira no bicicletário da Prefeitura. – Desculpa te abordar desse jeito, mas queria saber se já conseguiu falar com o Prefeito...

– Ainda não, Taha – Abbo respondeu com pesar na voz –, não o vejo desde semana passada. Ele está em outra viagem de negócios.

– Oh – as orelhas de Taha murcharam causando um estranho efeito, como se os chifres do cervo também se curvassem com a decepção. – Por favor, tente reforçar meu pedido quando ele voltar. As coisas andam difíceis para mim e minha mãe. Nosso estoque de capim-santo já está quase no fim, eu preciso muito dessa licença para dançar.

– Prometo fazer o possível, amigo.

– Ótimo! – o cervo forçou um sorrisinho em sua cara longa, depois apanhou um embrulho do cesto de sua bicicleta e o ergueu sobre os ombros. – Bom, é melhor eu voltar ao trabalho, estes jornais não vão se entregar sozinhos.

– Jornais? Achei que esse trabalho não desse muito dinheiro – Abbo suspirou, quase que sentindo o peso dos papéis sobre as costas de seu amigo.

– Infelizmente não dá... Mas as coisas não estão piores do que sempre estiveram – Taha cumprimentou sua amiga, seguindo rumo a mais um dia de trabalho. – Devemos nos esforçar pelo bando, no fim das contas está tudo tão ruim quanto sempre foi.

A Prefeitura da Cidade dos Cervos não era mais requintada do que um prédio comercial: suas paredes foram erguidas com tijolos vermelhos feitos de barro e esterco seco, um material bastante resistente, mas pouco prático; do teto pendiam algumas lâmpadas a óleo, fornecendo uma luz bruxuleante que dançava sobre as cadeiras e balcões de mogno; além do Gabinete, em cada um dos dois andares havia uma sala de reuniões e um banheiro, todos pouco usados. O hall de entrada era uma zona deserta, não ser pelo Porteiro ranzinza que estava encarregado de abrir passagem para funcionários e visitantes. Apenas duas pessoas formavam o Gabinete dos cervos: o Prefeito e sua Secretária, Abbo. Claro, havia outros que trabalhavam para a cidade, como o faxineiro que limpava a Prefeitura uma vez por semana em troca de um maço de dentes-de-leão, e isso era o máximo que os cofres públicos podiam bancar. O som dos cascos da jovem ecoou pelas paredes do hall de entrada, enquanto ela se dirigia para sua sala. Antes que subisse as escadas, Thambo, o Porteiro, pigarreou para chamar sua atenção:

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