Algo importante foi esquecido

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Quanto mais ela ficava na Cidade dos Leões, mais o tempo parecia voar.

A burocracia e os joguetes do servidorismo estavam entranhados na jovem, que executava suas tarefas cotidianas com maestria. Embora seu novo chefe fosse de longe menos querido que o velho Tan da Cidade dos Cervos, o trabalho em si era o mesmo. Durante uma semana a corça acordou bem cedo, reuniu-se com leões de vários setores e auxiliou na elaboração da nova imagem do Prefeito dos leões. Assim como Abbo planejou de início, nada mudaria no Governo, porém tudo seria apresentado com enfoque no bem coletivo para denigrir os que contrariavam o leão-mor.

A jovem entrou no quarto carregada de sacolas, fechando a porta com um coice, atrás de si. Deixou as compras sobre a mesinha de centro, aliviada por sair daquele gélido temporal de fim de outono. Seu casaco estava encharcado, assim como a juba falsa sobre sua cabeça, a qual ela atirou para o lado antes de chavear a porta.

– Está se adaptando rapidamente à cidade grande – alguém falou em suas costas.

Abbo virou seu focinho, desinteressada. Depois foi até o banheiro, onde despiu o casaco marrom de algodão, vestindo seu costumeiro terno azul.

– Eu me lembro de uma corça mais apavorada, sabe – a voz continuou, grave e penetrante. – Ela estava apressada em saltar sobre o palanque, no Grande Comício, achando que seria fácil roubar a chave do Banco dos Leões.

A jovem voltou para o quarto, pondo-se a desfazer suas sacolas. Retirou delas um cacho de bananas, meia dúzia de maçãs e um saco de tangerinas, frutos maduros e vistosos. Depois apanhou um memorando que estava ao lado, tentando se lembrar do horário de sua reunião com o Secretário do Transporte.

– E de repente olha só para você: indo a reuniões no Gabinete; cuidando da agenda de Tukufu; planejando o Banquete de Cervos... Afinal de contas, qual é seu objetivo aqui, mesmo?

– Ruffles e eu teremos um convidado, hoje. Se for ficar aqui, ao menos tome um banho de areia – a jovem disse para o leão mais-ou-menos-encardido.

Asani estava sentado sobre a cama da corça, espiando sem muito interesse o ratinho cinza que folheava um livro infantil do idioma leonino, entre suas patas inferiores. Abbo achou que seria de grande ajuda conhecer as palavras básicas da escrita dos leões, mas seus esforços foram infrutíferos, de modo que Ruffles assumiu tal desafio.

– Então o mesmo arranhão que simboliza bacon pode ser usado para torresmo? – o pequeno rato perguntou para o leão rabugento.

– Sei lá, tanto faz – Asani deu de ombros. Mesmo não tendo mais pulgas, sua orelha continuava a coçar. Podia ser algo pior, ou podia ser apenas reflexo de uma vida privado de areia limpa. – Não ligo pra como se chamam, eu não os como. E qual a diferença? Pretendem morar na Cidade dos Leões, agora? Você sabe que não é um leão, não sabe, corça?

– Claro que sei – Abbo deixou o memorando de lado, desistindo de decifrar o que estava escrito.

– Sabe? De verdade? A cada dia que passa você fica mais parecida com um de nós. Até no cheiro – Asani se levantou, pisando nos livros que o ratinho lia. – Você tem cheiro de leão. Será que finalmente se esqueceu daqueles pedaços de carne apodrecendo dentro do banco?

A jovem encarou o outro com raiva no olhar, mas não podia contestá-lo como queria. Aproximou-se da janela fechada, observando o vidro alvejado por pingos de chuva. Vez ou outra, relâmpagos esparsos iluminavam as nuvens negras, e, em sua mente, apenas uma frase definia um dia tão tristonho quanto aquele: o Sol está chorando.

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