Por uma faca de rocambole

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Os cervos são criaturas de pouca ganância, mas orgulhosas.

Abbo ajudou o Prefeito a vestir seu casaco, um manto carmim que dava ainda mais volume à sua corcunda. Atravessaram a entrada da Prefeitura, sendo acompanhados pelo olhar do Porteiro carrancudo, o que fez a jovem pensar que não vira nenhuma mala na sala de Tan. Será que estavam no banheiro do Gabinete?

Tudo parecia mais deprimente agora que a corça tinha percebido o quão decadente estava sua cidade. Tentava ser esperançosa, mas logo seus olhos eram atraídos para uma barraca de tomates podres ou um pedinte maltrapilho. Não dá para acreditar, ela pensou. Hoje de manhã tudo estava como sempre esteve... E de fato tudo ainda estava como sempre estivera. Os cervos são criaturas orgulhosas, e esse orgulho os cegou para a situação real do bando. Como em um transe coletivo, eles foram acondicionados a acreditar que era normal trabalhar o dia todo para comprar um repolho, no fim da tarde.

– Taha!

– Saúde – o Prefeito respondeu, achando que Abbo tossira.

– Não, digo... Eu quase me esqueci... Taha é um amigo meu, ele... Ele havia me pedido para falar com o senhor sobre uma licença para dançar.

– Dançar? – Tan encarou a jovem corça, curioso. – Mas ainda estamos no outono.

– Ele já está se preparando para a primavera.

– Entendo. As exibições de dança costumam pagar bastante feno para o vencedor, mas não creio que teremos um evento neste ano. Como disse antes – o velhote olhou para os lados com seus olhinhos enrugados, assegurando-se de que não seria ouvido –, nosso bando tem pouco mais de um mês de suprimentos.

– Mas o senhor falou sobre ouro...

– Não podemos botar os cascos em nenhum ouro, ainda. Vai perceber, docinho, que corremos o risco de não sobreviver até o Festival. Entre o outono e a primavera ainda resta o inverno.

Tan tinha razão. O Festival da Primavera era um marco no calendário dos cervos. Era costume da cidade iniciar as festividades com uma série de combates entre machos solteiros, que usavam seus chifres cheios de pontas em uma bela e emocionante disputa. O vencedor seria coroado como Rei da Primavera, e teria seu casamento consumado no auge do Festival. Com certeza Taha achava isso interessante, mas Abbo sabia que o jovem cervo tinha os montes de feno como objetivo. Não havia nada mais nutritivo que um bom chumaço de feno, dava para aguentar um dia inteiro de trabalho. Doía no coração da corça saber que talvez ele não tivesse a chance de conquistar o prêmio, e provavelmente o bando já teria sucumbido antes dessa época chegar.

Depois de atravessarem uma boa parte da cidade, saindo várias vezes das estradas de terra e adentrando a orla da floresta de espinheiros que cercava trechos da cidade, o Prefeito fez sinal para pararem e em seguida apontou para a enorme construção do outro lado da rua. Abbo já a vira antes, era um grande monólito cinza, nos limites da cidade. Suas dimensões eram tão descomunais que qualquer um o confundiria com o horizonte pálido da Cidade dos Cervos. De fato, era impossível enxergar as arestas daquela construção. No centro, uma saliência circular muito alta era projetada para fora, com uma maçaneta de ferro no canto. Não havia placa que identificasse qual a função daquela obra, mas Abbo suspeitava se tratar do tal banco, sobre o qual seu chefe havia comentado.

– É aqui? – ela perguntou.

– Sim. Este, minha cara, é o Banco dos Cervos. Uma instituição falida, assim como tudo nesta cidade.

– Nunca li sobre ele nos registros da cidade, deve estar fechado há décadas... Nós podemos entrar?

– Infelizmente não. Essa é a razão dos nossos problemas.

O Banco dos LeõesOnde histórias criam vida. Descubra agora