Hora do jantar

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As grandes feras se moviam vagarosamente, todas seguindo a mesma direção. Alguns se queixavam do trabalho, outros ansiavam pelo primeiro prato quente que viam em dias. Diferentemente dos leões, Abbo sentia que seus passos há muito deixaram a trilha certa. Ela seguia o leão das fitas, aparentemente indo jantar. Algumas tendas simples de armação e lona foram erguidas no caminho, e leões operários entravam e saiam delas.

– Vamos dormir aqui? – a corça perguntou para seu companheiro, esperando ouvir uma resposta melhor que o grunhido que ele soltou. Ela concluiu ter encontrado o leão mais indiferente do bando, e por ora isso era reconfortante. Uma grande lona servia de teto para várias mesas enfileiradas à frente, e ao menos trinta leões ocupavam seus lugares, aguardando o que lhes seria servido. A corça desfilava entre as feras famintas, tentando ser o mais discreta possível. Seus olhos não desgrudavam do leão encardido, com medo de confundi-lo e passar a seguir outro qualquer. Os operários se acotovelavam nos assentos mais próximos ao fogaréu, afiando suas garras na madeira maciça das mesas. Ao invés de disputar as primeiras porções com dezenas de outros, o leão das fitas seguiu multidão afora, buscando a mesa mais distante. A jovem achou esse comportamento um tanto estranho baseado no que vira desde sua chegada à cidade.

Abbo se sentou na cadeira oposta ao seu companheiro. A julgar pela agitação que tomou conta das primeiras fileiras, o jantar começou a ser servido. Meia hora havia se passado e nenhum alimento pousou sobre a mesa deles, deixando-a em estado de alerta. Isso só pode ser proposital. Ele sabe que eu sou uma corça! Ele não se importa se será servido ou não porque trouxe a própria comida!. Temendo precisar correr por sua vida, a corça puxou assunto enquanto procurava uma possível janela de fuga:

– S-sabia que o Sol não é tão rasteiro, de onde eu vim?

O outro pôs as patas sobre a mesa, olhando distraidamente de uma para a outra. De vez em quando exibia suas garras, tão afiadas quanto suas presas. Abbo continuou falando pelos cotovelos, muito tensa e nervosa:

– G-geralmente não fazemos festas grandes como essa, só na Primavera. A minha juba é de verdade, igual a sua... porque sou um... leão... Embora já tenham dito que não pareço um... eu sou, sim.

O leão encardido fitou-a com seus olhos, dois grandes orbes dourados que pareciam penetrar o disfarce da corça-leão. Por fim alguém se aproximou da mesa deles, depositando dois pratos entre a presa e o predador.

– Nossa, que bom! Parece que seremos servidos, enfim! – Ela disse, e só depois percebeu que o prato do leão estava vazio. Eu sabia, eu sabia! Ele vai tentar me comer, e será agora!

O outro, no entanto, voltou a se concentrar em suas patas. Parecia aguardar por algo, embora sua expressão enigmática não transparecesse nenhum pensamento. O prato sob o focinho da corça fumegava, e seu odor rançoso chamou a atenção da jovem. Uma bola disforme e marrom fora posta na sua frente, da qual escorria um caldo escuro e melequento. Ela cutucou o jantar com a ponta dos cascos, buscando decifrar o que era aquilo.

– Isso... é algum tipo de repolho? – ela arriscou, expondo seu palpite para o leão distraído. – Pela textura não... Deve ser abóbora, mas tem um cheiro esquisito... Como roupa suja em água quente...

– Isso é carne – o outro respondeu, sem dar muita importância. – Acho que é coxão duro, cozido com alho.

– Não, não pode ser – Abbo riu, reagindo automaticamente à afirmação de que tinha um animal cozido à sua frente, servido em um prato de louça. Levou um segundo para se tocar de que estava na Cidade dos Leões, cercada pelas feras carnívoras que povoam o imaginário dos cervos... e que, nas mesas à sua volta, peças de cinco quilos de carne cozida eram devoradas com gosto por elas: suas garras seguravam firmemente os pedaços de animais mortos, e a gordura derretida escorria por seus lábios; alguns batiam na mesa, exigindo mais comida, enquanto outros quebravam ossos entre os dentes para chupar o tutano macio de dentro.

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